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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-06-13 10:45:09 -0300
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@@ -4,6 +4,9 @@
* Processo civiliza-DOR.
* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
+* Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
+* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
+* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
### Kultur e Zivilization
@@ -526,3 +529,496 @@ Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
+
+Tecnologia:
+
+ Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
+ série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
+ notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
+ uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
+ classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
+ civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
+ força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
+ sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
+ garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
+ permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
+ tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
+ novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
+ outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
+ observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.
+
+ O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
+ consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
+ igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
+ refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
+ esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
+ ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
+ rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.
+
+Forma da curva:
+
+ Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma:
+ em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da
+ sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em
+ seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo
+ aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma
+ conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um
+ novo padrão de maneiras à mesa.
+
+ Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido,
+ embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da
+ conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância
+ como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha
+ o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a
+ base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e
+ produzem torna-se mais importante que suas maneiras.
+
+"Delicadeza" e padronização:
+
+ É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a
+ sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por
+ várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela,
+ também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação
+ extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir
+ que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo
+ texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a
+ sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a
+ própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão
+ delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam
+ mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a
+ colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas
+ queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente
+ na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim.
+
+ Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos
+ estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa
+ mudança.
+
+ Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa
+ está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é
+ servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo
+ estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social.
+
+ Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim
+ dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo
+ não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e
+ instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no
+ emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas
+ investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais
+ insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de
+ comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como
+ o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão —
+ como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo
+ — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização
+ em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo
+ na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para
+ atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a
+ condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o
+ desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada
+ vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos
+ desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande
+ lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo
+ por algumas modificações.
+
+Transmissão e abrangência da análise:
+
+ A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma
+ sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense
+ para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na
+ França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser
+ considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos
+ movimentos individuais.
+
+ [...]
+
+ a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito
+ simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais
+ abrangente.
+
+Fala, jargão a partir de um duplo movimento:
+
+ Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de
+ movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a
+ aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é
+ influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo
+ para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no
+ século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de
+ propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à
+ régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro
+ exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima
+ a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte
+ gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz
+ também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para
+ os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente
+ assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em
+ uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos
+ círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de
+ la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na
+ burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente
+ burgueses”.
+
+ [...]
+
+ Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte
+ tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas
+ linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”,
+ “afetadas demais”.
+
+ [...]
+
+ 10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta
+ incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de
+ passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e
+ incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar
+ expressões?”
+
+ Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à
+ primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a
+ esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os
+ membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as
+ usam.
+
+ [...]
+
+ “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que
+ não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza
+ que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as
+ leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.”
+
+ Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem.
+ Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta.
+ Os juízos de valor são apodícticos.
+
+ [...]
+
+ Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito
+ novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo.
+ Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens
+ du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são
+ conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade.
+
+Motivos ou razões "higiênicas":
+
+ A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte
+ do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também
+ evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas
+ argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que
+ outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma
+ expressão linguística é preferível a outra.
+
+ Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX.
+ Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as
+ mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais
+ rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”.
+ Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses
+ costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século
+ XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as
+ pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações
+ racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras.
+
+ [...]
+
+ Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na
+ formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais
+ e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes
+ foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na
+ motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas
+ para motivar a “fala correta”.
+
+Tendência ao aumento do embaraço:
+
+ Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de
+ embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte
+ e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem
+ exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta
+ em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não
+ aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do
+ embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica,
+ os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a
+ estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se
+ difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau
+ de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente
+ racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais.
+ Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham
+ “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com
+ outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob
+ pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será
+ parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos
+ tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte
+ esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a
+ “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de
+ sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de
+ uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro
+ lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica
+ nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A
+ estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a
+ despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta
+ conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por
+ uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e
+ eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a
+ experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente
+ inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente,
+ talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não
+ esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será
+ confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que
+ condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de
+ comportamento.
+
+Difusão e cristalização:
+
+ Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a
+ “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do
+ comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam
+ sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras
+ desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas
+ estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente
+ pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a
+ segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e,
+ por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela
+ certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para
+ classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo,
+ condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem
+ possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento,
+ um avanço no patamar do embaraço.
+
+ O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —,
+ processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de
+ mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma
+ cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza
+ em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da
+ cristalização como causa da transformação.
+
+### Família como unidade de consumo
+
+ O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes
+ pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais
+ importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59
+ como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em
+ seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como
+ fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos,
+ mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a
+ família torna-se basicamente uma unidade de consumo.
+
+### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável
+
+ Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram
+ suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual
+ maneira, suprimem essas características em seus alimentos.
+
+ [...]
+
+ A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se,
+ com raras exceções, ao trincho do animal inteiro.
+
+ O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte
+ importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser
+ julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que
+ o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém,
+ é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue
+ ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o
+ processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este
+ ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que
+ ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo
+ avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a
+ transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas,
+ constitui uma típica curva civilizadora.
+
+ Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a
+ fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais
+ que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi
+ efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo
+ é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente
+ reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa.
+
+ [...]
+
+ Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que
+ as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a
+ suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras,
+ oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar
+ de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação
+ inescapável.
+
+ À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas
+ configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no
+ emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As
+ instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada
+ vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador
+ é tão limitado quanto possível.
+
+ Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume
+ há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há
+ muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente
+ incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem
+ eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao
+ fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China,
+ não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de
+ funcionários públicos eruditos.
+
+### Pedagogia da proibição
+
+ Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas,
+ mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de
+ dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
+ difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
+ amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez
+ sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos
+ através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente
+ reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente
+ alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como
+ natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses
+ sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente
+ de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar
+ alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é
+ repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado
+ com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o
+ hábito, sem ser induzido por outra pessoa.
+
+ Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à
+ força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que
+ um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo
+ adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas
+ por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta,
+ a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o
+ fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são
+ moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão
+ externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado
+ neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La
+ Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os
+ dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros
+ um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as
+ mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a
+ marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de
+ qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora
+ inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente
+ reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole
+ que opera mesmo contra seus desejos conscientes.
+
+ Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão
+ do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em
+ forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar
+ processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um
+ paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e
+ psicogênese.
+
+ [...]
+
+ Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função
+ de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada
+ para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é
+ bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim
+ de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social,
+ muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a
+ renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos
+ de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente
+ com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente
+ aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como
+ vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a
+ referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para
+ condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde
+ recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos
+ e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel
+ importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se
+ perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo
+ praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de
+ racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é,
+ fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos
+ adultos.
+
+ [...]
+
+ Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de
+ natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se
+ opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais
+ tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para
+ compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX
+ é que aparece uma ligeira relaxação.
+
+Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
+boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
+os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
+numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas
+geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
+sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
+desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
+épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua:
+
+ Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar
+ como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito
+ instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo
+ a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é
+ encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais
+ sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo
+ que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas —
+ adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito
+ delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas
+ envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que
+ nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da
+ Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes
+ altas.
+
+ Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as
+ referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”.
+ Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras
+ que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao
+ associativamente as lembre é evitado.
+
+ Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o
+ processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66
+ sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado
+ antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse
+ tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é
+ sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se
+ adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do
+ processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são
+ acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso
+ mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão
+ naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram
+ portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra.
+
+ [...]
+
+ Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se
+ encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado
+ acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos
+ beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os
+ Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a
+ interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na
+ corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso
+ dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio.
+
+ O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
+ elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus
+ socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa,
+ compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior,
+ governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a
+ principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de
+ impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se
+ particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
+ socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.
+
+### Segunda natureza
+
+ No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas
+ próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No
+ estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não
+ havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um
+ hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está
+ sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas
+ quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões
+ sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da
+ pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto
+ muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se
+ torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a
+ interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada
+ vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente
+ inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos
+ primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de
+ seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em
+ um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas.
+
+ [...]
+
+ Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
+ não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
+ modelada segundo a estrutura social.