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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-06-13 10:45:09 -0300 |
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Um dinamismo social específico desencadeia outro de natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades. + +Tecnologia: + + Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta + série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam + notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge + uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na + classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da + civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em + força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na + sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca, + garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes + permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da + tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de + novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e + outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que + observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se. + + O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do + consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca + igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso + refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a + esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o + ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente + rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez. + +Forma da curva: + + Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma: + em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da + sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em + seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo + aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma + conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um + novo padrão de maneiras à mesa. + + Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido, + embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da + conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância + como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha + o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a + base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e + produzem torna-se mais importante que suas maneiras. + +"Delicadeza" e padronização: + + É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a + sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por + várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela, + também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação + extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir + que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo + texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a + sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a + própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão + delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam + mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a + colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas + queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente + na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim. + + Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos + estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa + mudança. + + Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa + está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é + servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo + estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social. + + Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim + dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo + não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e + instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no + emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas + investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais + insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de + comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como + o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão — + como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo + — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização + em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo + na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para + atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a + condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o + desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada + vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos + desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande + lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo + por algumas modificações. + +Transmissão e abrangência da análise: + + A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma + sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense + para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na + França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser + considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos + movimentos individuais. + + [...] + + a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito + simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais + abrangente. + +Fala, jargão a partir de um duplo movimento: + + Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de + movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a + aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é + influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo + para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no + século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de + propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à + régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro + exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima + a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte + gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz + também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para + os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente + assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em + uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos + círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de + la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na + burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente + burgueses”. + + [...] + + Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte + tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas + linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”, + “afetadas demais”. + + [...] + + 10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta + incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de + passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e + incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar + expressões?” + + Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à + primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a + esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os + membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as + usam. + + [...] + + “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que + não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza + que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as + leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.” + + Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem. + Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta. + Os juízos de valor são apodícticos. + + [...] + + Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito + novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo. + Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens + du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são + conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade. + +Motivos ou razões "higiênicas": + + A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte + do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também + evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas + argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que + outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma + expressão linguística é preferível a outra. + + Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX. + Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as + mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais + rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”. + Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses + costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século + XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as + pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações + racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras. + + [...] + + Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na + formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais + e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes + foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na + motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas + para motivar a “fala correta”. + +Tendência ao aumento do embaraço: + + Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de + embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte + e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem + exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta + em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não + aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do + embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica, + os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a + estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se + difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau + de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente + racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais. + Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham + “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com + outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob + pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será + parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos + tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte + esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a + “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de + sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de + uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro + lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica + nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A + estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a + despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta + conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por + uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e + eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a + experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente + inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente, + talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não + esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será + confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que + condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de + comportamento. + +Difusão e cristalização: + + Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a + “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do + comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam + sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras + desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas + estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente + pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a + segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e, + por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela + certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para + classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo, + condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem + possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento, + um avanço no patamar do embaraço. + + O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —, + processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de + mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma + cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza + em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da + cristalização como causa da transformação. + +### Família como unidade de consumo + + O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes + pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais + importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59 + como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em + seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como + fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos, + mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a + família torna-se basicamente uma unidade de consumo. + +### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável + + Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram + suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual + maneira, suprimem essas características em seus alimentos. + + [...] + + A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se, + com raras exceções, ao trincho do animal inteiro. + + O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte + importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser + julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que + o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém, + é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue + ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o + processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este + ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que + ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo + avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a + transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas, + constitui uma típica curva civilizadora. + + Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a + fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais + que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi + efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo + é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente + reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa. + + [...] + + Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que + as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a + suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras, + oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar + de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação + inescapável. + + À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas + configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no + emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As + instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada + vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador + é tão limitado quanto possível. + + Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume + há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há + muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente + incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem + eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao + fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China, + não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de + funcionários públicos eruditos. + +### Pedagogia da proibição + + Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas, + mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de + dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações, + difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais + amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez + sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos + através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente + reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente + alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como + natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses + sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente + de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar + alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é + repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado + com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o + hábito, sem ser induzido por outra pessoa. + + Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à + força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que + um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo + adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas + por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta, + a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o + fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são + moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão + externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado + neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La + Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os + dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros + um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as + mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a + marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de + qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora + inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente + reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole + que opera mesmo contra seus desejos conscientes. + + Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão + do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em + forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar + processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um + paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e + psicogênese. + + [...] + + Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função + de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada + para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é + bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim + de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social, + muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a + renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos + de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente + com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente + aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como + vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a + referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para + condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde + recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos + e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel + importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se + perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo + praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de + racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é, + fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos + adultos. + + [...] + + Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de + natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se + opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais + tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para + compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX + é que aparece uma ligeira relaxação. + +Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de +boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre +os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas +numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas +geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na +sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos +desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras +épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua: + + Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar + como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito + instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo + a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é + encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais + sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo + que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas — + adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito + delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas + envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que + nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da + Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes + altas. + + Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as + referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”. + Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras + que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao + associativamente as lembre é evitado. + + Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o + processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66 + sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado + antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse + tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é + sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se + adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do + processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são + acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso + mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão + naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram + portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra. + + [...] + + Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se + encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado + acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos + beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os + Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a + interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na + corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso + dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio. + + O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por + elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus + socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa, + compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior, + governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a + principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de + impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se + particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem + socialmente requeridas dos impulsos e das emoções. + +### Segunda natureza + + No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas + próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No + estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não + havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um + hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está + sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas + quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões + sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da + pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto + muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se + torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a + interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada + vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente + inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos + primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de + seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em + um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas. + + [...] + + Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso + não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social + modelada segundo a estrutura social. |