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## Índice

* Processo civiliza-DOR.
* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
* Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.

### Kultur e Zivilization

    O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
    da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
    científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
    
    [...]
    
    Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
    útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
    apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
    A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
    expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
    Kultur.

    [...]

    O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
    superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
    autoimagem do estrato intelectual de classe média.

### Vanguarda

    Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
    não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
    manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
    sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
    Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
    descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
    mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
    pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
    membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
    maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
    em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
    cortesã.

    Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
    ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
    solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
    Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
    geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.

    [...]

    E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
    andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
    Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
    murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
    um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
    ver um burguês entre seus membros.
    
    “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
    aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
    de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
    que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
    guardadores de porcos.”

    Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
    formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
    livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
    referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
    situação social muito específica.

    No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
    as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
    dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
    bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
    quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
    como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
    de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
    fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
    médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
    pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
    a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.

    Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
    ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
    cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
    conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
    título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.

    O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
    avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
    semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
    de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
    August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.

    [...]

    De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
    paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
    aristocrática na Alemanha.

    [...]

    A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
    é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
    A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
    Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
    flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
    erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
    oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
    ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
    sociedade onde se integram, são interesses marginais.
    O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
    e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
    política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
    a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
    fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
    política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
    Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
    arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
    do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.

    [...]

    Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
    alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
    com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
    com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
    descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
    anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
    de 1827):

        Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
        Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
        porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
        chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
        país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
        Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
        é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
        isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
        fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
        viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.

        Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
        reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
        rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
        de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
        ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
        transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
        pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
        onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
        essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
        todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
        desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
        no seu 24o ano de vida.

    [...]

    Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
    disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
    importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
    essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
    ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
    média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.

### Civilização como máquina automática em constante reforma

    No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
    de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
    Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
    indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
    despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
    decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
    ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
    parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
    em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
    concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
    inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
    reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
    capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
    uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
    
    [...]

    A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
    todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
    verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
    civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
    governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
    florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
    de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
    do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
    que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
    crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
    permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
    de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
    conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
    desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
    governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.

    [...]

    Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
    conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
    Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
    Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
    uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
    variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30

    No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
    civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
    frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
    caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
    civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
    estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
    não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
    completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
    conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
    nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
    moral.”32

    O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
    crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
    da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
    “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
    expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
    intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
    medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
    em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
    “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
    nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
    reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
    designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
    individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
    sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
    encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
    A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
    civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
    processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
    não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
    lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
    barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
    sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.

    Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
    movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
    estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
    no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
    ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
    ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
    moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
    complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
    membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
    para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
    Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
    população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
    condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
    burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
    processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
    interna do país pelos reis.

### Ruderia

    Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham.

    [...]

    A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento
    “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro.
    Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este
    decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante
    descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens
    excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante.
    O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no
    braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida,
    enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano,
    preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
    com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o
    pé. O mesmo se aplica ao escarro.

    Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a
    mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas
    de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar
    alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por
    exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos
    dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou
    estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas
    preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós,
    materializações de uma estrutura mental e emocional diferente.

    [...]

    Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de
    mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para
    nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos
    tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes
    para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as
    quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e
    rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras
    mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz
    Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende
    as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente
    perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as
    mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um
    dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa.

    Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam
    extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no
    casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca
    comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer
    a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não
    é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta:
    “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e
    demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na
    quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em
    algum lugar.”

    [...]

    Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens
    alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã:
    cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são
    apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e
    crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava
    as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas
    a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar
    da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas
    escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em
    seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e
    molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho
    melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o
    vinho não lhe serve, procure outras acomodações.

    [...]

    Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões,
    tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e
    para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum
    emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou
    tentar soltar ventosidades intestinais).

    [...]

    É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse
    um porrete: segure-as sempre com os dedos.

### Conduta

    A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos
    sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo
    um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que
    na Idade Média.

    Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa
    era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares
    segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes.
    Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre
    a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente.
    Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de
    que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam
    sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados
    sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro
    à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal
    da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o
    aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o
    Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma
    direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos
    adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo
    menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes
    origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de
    grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade.

    Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e
    em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma
    hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos
    de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova
    aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento
    uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura
    alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma
    extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é
    neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e
    outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em
    sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não
    bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso
    e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e
    não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em
    conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
    semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente.  As
    regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito
    ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36

    [...]

    A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com
    frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém,
    mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse
    momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a
    pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se
    imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e
    relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um
    superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para
    inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência
    física.

    Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de
    comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle
    social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda
    a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de
    boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais,
    evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos
    séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só
    conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas.
    Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo
    de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de
    policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o
    modelo de comportamento.

    [...]

    8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo
    porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer
    — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais
    curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única
    fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere.
    Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento
    dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma
    série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do
    processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções,
    o patamar, que se alarga, da aversão.

    [...]

    o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não
    como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de
    movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes.

    [...]

    Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e
    os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as
    pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem
    cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se
    tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo
    hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É
    errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes
    com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se
    assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca,
    lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o
    pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um
    dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados
    em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por
    grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma,
    como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em
    conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.]

### Dinâmica

    A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos
    poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”.

    As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns
    aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa
    ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes
    discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se
    aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande
    extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro
    do que na primeira versão.

    [...]

    Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo
    assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as
    tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em
    diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de
    conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento
    ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas,
    através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global
    clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são
    ouvidas em conjunto.

    Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia
    de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias
    origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento.

    De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de
    corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige
    principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na
    corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso.

    Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a
    atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo
    particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho,
    que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o
    autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes
    bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que
    poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos
    têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender
    os refinamentos da polidez.”

    Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de
    livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é
    importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são
    escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo
    dos fechados círculos da aristocracia de corte.

Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:

    O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as
    honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar,
    o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o
    comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se
    supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do
    interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que
    demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte
    espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados
    e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem
    assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação
    da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que
    estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é
    desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo,
    sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o
    movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte
    sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do
    comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e
    acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de
    desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o
    avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
    como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
    natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.

Tecnologia:

    Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
    série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
    notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
    uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
    classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
    civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
    força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
    sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
    garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
    permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
    tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
    novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
    outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
    observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.

    O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
    consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
    igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
    refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
    esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
    ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
    rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.

Forma da curva:

    Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma:
    em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da
    sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em
    seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo
    aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma
    conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um
    novo padrão de maneiras à mesa.

    Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido,
    embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da
    conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância
    como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha
    o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a
    base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e
    produzem torna-se mais importante que suas maneiras.

"Delicadeza" e padronização:

    É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a
    sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por
    várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela,
    também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação
    extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir
    que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo
    texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a
    sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a
    própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão
    delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam
    mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a
    colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas
    queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente
    na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim.

    Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos
    estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa
    mudança.

    Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa
    está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é
    servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo
    estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social.

    Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim
    dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo
    não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e
    instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no
    emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas
    investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais
    insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de
    comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como
    o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão —
    como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo
    — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização
    em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo
    na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para
    atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a
    condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o
    desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada
    vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos
    desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande
    lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo
    por algumas modificações.

Transmissão e abrangência da análise:

    A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma
    sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense
    para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na
    França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser
    considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos
    movimentos individuais.

    [...]

    a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito
    simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais
    abrangente.

Fala, jargão a partir de um duplo movimento:

    Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de
    movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a
    aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é
    influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo
    para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no
    século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de
    propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à
    régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro
    exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima
    a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte
    gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz
    também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para
    os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente
    assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em
    uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos
    círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de
    la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na
    burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente
    burgueses”.

    [...]

    Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte
    tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas
    linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”,
    “afetadas demais”.

    [...]

    10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta
    incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de
    passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e
    incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar
    expressões?”

    Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à
    primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a
    esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os
    membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as
    usam.

    [...]

    “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que
    não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza
    que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as
    leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.”

    Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem.
    Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta.
    Os juízos de valor são apodícticos.

    [...]

    Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito
    novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo.
    Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens
    du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são
    conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade.

Motivos ou razões "higiênicas":

    A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte
    do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também
    evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas
    argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que
    outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma
    expressão linguística é preferível a outra.

    Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX.
    Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as
    mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais
    rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”.
    Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses
    costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século
    XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as
    pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações
    racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras.

    [...]

    Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na
    formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais
    e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes
    foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na
    motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas
    para motivar a “fala correta”.

Tendência ao aumento do embaraço:

    Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de
    embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte
    e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem
    exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta
    em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não
    aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do
    embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica,
    os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a
    estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se
    difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau
    de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente
    racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais.
    Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham
    “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com
    outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob
    pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será
    parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos
    tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte
    esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a
    “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de
    sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de
    uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro
    lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica
    nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A
    estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a
    despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta
    conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por
    uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e
    eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a
    experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente
    inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente,
    talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não
    esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será
    confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que
    condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de
    comportamento.

Difusão e cristalização:

    Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a
    “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do
    comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam
    sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras
    desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas
    estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente
    pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a
    segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e,
    por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela
    certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para
    classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo,
    condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem
    possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento,
    um avanço no patamar do embaraço.

    O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —,
    processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de
    mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma
    cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza
    em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da
    cristalização como causa da transformação.

### Família como unidade de consumo

    O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes
    pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais
    importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59
    como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em
    seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como
    fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos,
    mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a
    família torna-se basicamente uma unidade de consumo.

### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável

    Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram
    suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual
    maneira, suprimem essas características em seus alimentos.

    [...]

    A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se,
    com raras exceções, ao trincho do animal inteiro.

    O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte
    importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser
    julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que
    o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém,
    é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue
    ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o
    processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este
    ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que
    ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo
    avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a
    transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas,
    constitui uma típica curva civilizadora.

    Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a
    fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais
    que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi
    efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo
    é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente
    reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa.

    [...]

    Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que
    as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a
    suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras,
    oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar
    de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação
    inescapável.

    À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas
    configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no
    emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As
    instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada
    vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador
    é tão limitado quanto possível.

    Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume
    há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há
    muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente
    incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem
    eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao
    fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China,
    não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de
    funcionários públicos eruditos.

### Pedagogia da proibição

    Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas,
    mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de
    dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
    difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
    amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez
    sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos
    através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente
    reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente
    alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como
    natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses
    sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente
    de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar
    alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é
    repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado
    com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o
    hábito, sem ser induzido por outra pessoa.

    Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à
    força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que
    um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo
    adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas
    por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta,
    a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o
    fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são
    moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão
    externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado
    neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La
    Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os
    dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros
    um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as
    mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a
    marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de
    qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora
    inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente
    reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole
    que opera mesmo contra seus desejos conscientes.

    Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão
    do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em
    forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar
    processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um
    paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e
    psicogênese.

    [...]

    Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função
    de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada
    para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é
    bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim
    de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social,
    muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a
    renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos
    de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente
    com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente
    aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como
    vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a
    referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para
    condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde
    recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos
    e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel
    importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se
    perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo
    praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de
    racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é,
    fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos
    adultos.

    [...]

    Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de
    natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se
    opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais
    tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para
    compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX
    é que aparece uma ligeira relaxação.

Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas
geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua:

    Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar
    como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito
    instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo
    a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é
    encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais
    sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo
    que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas —
    adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito
    delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas
    envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que
    nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da
    Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes
    altas.

    Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as
    referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”.
    Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras
    que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao
    associativamente as lembre é evitado.

    Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o
    processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66
    sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado
    antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse
    tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é
    sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se
    adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do
    processo civilizatório.  4. No início, essas funções e sua exposição são
    acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso
    mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão
    naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram
    portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra.

    [...]

    Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se
    encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado
    acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos
    beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os
    Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a
    interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na
    corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso
    dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio.

    O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
    elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus
    socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa,
    compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior,
    governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a
    principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de
    impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se
    particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
    socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.

### Segunda natureza

    No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas
    próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No
    estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não
    havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um
    hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está
    sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas
    quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões
    sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da
    pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto
    muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se
    torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a
    interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada
    vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente
    inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos
    primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de
    seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em
    um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas.

    [...]

    Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
    não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
    modelada segundo a estrutura social.