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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-06-18 12:19:01 -0300 |
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Talvez não seja muito importante, mas, de qualquer maneira, não é um + espetáculo particularmente doloroso. Sentença, execução, morte tudo isto é uma + presença constante nessa vida. Elas, também, não foram ainda removidas para + trás da cena. + + [...] + + por exemplo, na obra de Breughel, um padrão de repugnância que lhe permite + trazer para as telas aleijados, camponeses, cadafalsos, ou pessoas que se + aliviam de necessidades corporais. Mas o padrão visto neles está vinculado a + sentimentos sociais muito diferentes dos que vemos nesses quadros em que + aparece a classe alta de fins do período medieval. + + [...] + + Essas cenas de amor são tudo, menos “obscenas”. O amor é apresentado nelas como + tudo o mais na vida do cavaleiro fidalgo, torneios, caçadas, campanhas, + pilhagens. As cenas não são especialmente ressaltadas. Não sentimos em sua + representação coisa alguma da violência, da tendência para excitar ou + gratificar a satisfação de desejos negados na vida, característica de tudo o + que é “obsceno”. Esse desenho não nasce de uma alma oprimida, nem revela nada + de “secreto” mediante a violação de tabus. + + [...] + + Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão + a impulsos e sentimentos de forma incomparavelmente mais fácil, rápida, + espontânea e aberta do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e, + em consequência, menos reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente + entre extremos. + + Mas tais restrições e controles se faziam em uma direção diferente e em grau + menor que em períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole + constante, quase automático. O tipo de integração e interdependência em que + viviam essas pessoas não as compelia a abster-se de funções corporais uma na + frente da outra ou a controlar seus impulsos agressivos na mesma extensão que + na fase seguinte. Isto se aplica a todos. Mas, claro, para os camponeses, a + margem para agressão era mais restrita do que para o cavaleiro — isto é, + restrita a seus pares. [...] Uma restrição de ordem social às vezes se + impunha ao camponês pelo simples fato de que não tinha o suficiente para comer. + Isto certamente representa um controle de impulsos do mais alto grau e que + afeta todo o comportamento do ser humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e + esta situação social dificilmente lhe tornava necessário impor controles a si + mesmo quando assoava o nariz, escarrava, ou pegava vorazmente comida na mesa. + + [...] + + A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais + espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem + social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma. + Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles + e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o + equilíbrio das emoções e, de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que + o indivíduo procura e consegue. + +### Autocontrole como resposta ao avanço da interdependência + + Quanto mais avançam a interdependência e a divisão de trabalho na sociedade, + mais dependente a classe alta se torna das outras e maior, por conseguinte, a + força social destas, pelo menos potencialmente. Mesmo quando ela ainda é + principalmente uma classe guerreira, quando mantém as outras classes + dependentes sobretudo pela espada e o monopólio das armas, algum grau de + dependência dessas outras classes não está de todo ausente. Mas é + incomparavelmente menor, e menor também é, conforme veremos em mais detalhes + adiante, a pressão vinda de baixo. Em consequência, o senso de domínio da + classe alta, seu desprezo pelas demais, é muito mais franco, e muito menos + forte a pressão sobre ela para praticar moderação e controlar seus impulsos. + + [...] + + Um novo comedimento, um controle e regulação novo e mais extenso do + comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessário ou possível, são + agora exigidos do nobre. São resultado da nova e maior dependência em que foi + colocado o nobre. Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu + castelo, do castelo que é sua pátria. + +### Para uma teoria sobre civilizações + + como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em + longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado + o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência + humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas, + e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em + uma direção particular? Essas mudanças são indicadas na fala diária quando + dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que + antes, ou que as de outras sociedades são mais “incivis” ou menos “civilizadas” + (ou mesmo mais “bárbaras”) que as da nossa. São óbvios os juízos de valor + contidos nessas palavras, embora sejam menos óbvios os fatos a que se referem. + Isto acontece em parte porque os estudos empíricos de transformações a longo + prazo de estruturas de personalidade, e em especial de controle de emoções, dão + origem a grandes dificuldades no estágio atual das pesquisas sociológicas. À + frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo + relativamente curto e, em geral, apenas problemas relativos a um dado estado da + sociedade. As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por + conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na + maioria dos casos. + + O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo. A sua + compreensão pode ser facilitada por uma curta indicação dos vários tipos que + esses processos assumem. Para começar, podemos distinguir duas direções + principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior + diferenciação e integração, e as que tendem para menos. Além disso, há um + terceiro tipo de processo social, no curso do qual é mudada a estrutura de uma + sociedade, ou de alguns de seus aspectos particulares, mas sem haver tendência + de aumento ou diminuição no nível de diferenciação e integração. Por último, + são incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua + estrutura. Este trabalho não faz justiça a toda a complexidade dessas mudanças, + porquanto numerosas formas híbridas, e não raro vários tipos de mudança, mesmo + em direções opostas, podem ser observadas simultaneamente na mesma sociedade. + Mas, por ora, este curto esboço dos diferentes tipos de mudança deve bastar + para indicar os problemas de que trata este estudo. + + O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a + suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo + nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares — + mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante + grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e + encontrar comprovação factual. + + [...] + + A demonstração de uma mudança em emoções e estruturas de controle humanas que + ocorre ao longo de muitas gerações, e na mesma direção ou, em curtas palavras, + o aumento do reforço e diferenciação dos controles — gera outra questão: é + possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade + com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira + tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e + integração social? O segundo volume trata desses problemas. + + No tocante a essas mudanças estruturais a longo prazo da sociedade, falta + também prova empírica. Tornou-se, por conseguinte, necessário no segundo volume + dedicar parte do mesmo à descoberta e elucidação das ligações factuais nesta + segunda área. A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo, + tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser + demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou + possível. O processo de formação dos Estados nacionais, discutido no segundo + volume, constitui um exemplo desse tipo de mudança estrutural. Finalmente, em + um esboço provisório de uma teoria de civilização, elabora-se um modelo, a fim + de demonstrar possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas + da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles + emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível + mais alto de diferenciação e integração como, por exemplo, visando a uma + diferenciação e prolongamento das cadeias de interdependência e à consolidação + dos “controles estatais”. + + [...] + + Facilmente se pode compreender que ao adotar uma metodologia voltada para + ligações factuais e suas explicações (isto é, um enfoque empírico e teórico + preocupado com mudanças estruturais de longo prazo de um tipo específico, ou + “desenvolvimento”), abandonamos as ideias metafísicas que vinculam o conceito + de desenvolvimento à noção ou de uma necessidade mecânica ou de uma finalidade + teleológica. + + [...] + + este estudo nem era de uma “evolução”, no sentido do século XIX, de um + progresso automático, nem de uma “mudança social” inespecífica no sentido do + século XX. Naquele tempo isto me pareceu tão óbvio que deixei de mencionar + explicitamente essas implicações teóricas. A introdução à segunda edição me dá + a oportunidade de corrigir essa omissão. + + [...] + + A situação é semelhante no tocante a grande número de outros problemas aqui + estudados. Quando, após vários estudos preparatórios que me permitiram + investigar a evidência documentária e explorar os problemas teóricos + gradualmente emergentes, o caminho para uma possível solução pareceu mais + claro, tornei-me consciente de que este estudo ajuda a solucionar o renitente + problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim + chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números + de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda + ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como + mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo + prazo. + +### Os limites de conceber as coisas como um mero jogo de cartas + + A fim de exemplificar este fato, bastará discutir a maneira como o homem que é + atualmente considerado o principal teórico da sociologia, Talcott Parsons, + tenta colocar e solucionar alguns dos problemas aqui estudados. É + característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em + seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de + sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente + elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão + incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção + pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas: + cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente. + As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais + diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a + polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva. Parsons concebeu + originariamente essa ideia, segundo nos diz, analisando os tipos de sociedade + de Tönnies, a Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A + “comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a + “sociedade”, pela neutralidade afetiva. Mas, ao determinar as diferenças entre + diferentes tipos de sociedade, e diferentes tipos de relacionamentos dentro da + mesma, ele atribui a essa “variável de padrão” no jogo de cartas, como a + outras, um significado inteiramente geral. No mesmo contexto, Parsons trata do + problema da relação entre estrutura social e personalidade.2 Indica que + conquanto antes os tivesse interpretado simplesmente como “sistemas de ação + humana” estreitamente vinculados e interatuantes, agora pode declarar com + certeza que, em um sentido teórico, eles são fases, ou aspectos, diferentes de + um único e mesmo sistema de ação fundamental. Ilustra isto com um exemplo, + explicando que o que no plano sociológico pode ser considerado como uma + institucionalização da neutralidade afetiva é, essencialmente, o mesmo que no + nível da personalidade pode ser considerado como “na imposição da renúncia à + gratificação imediata, no interesse da organização disciplinada e dos objetivos + a longo prazo da personalidade”. + + [...] + + [1] in Talcott Parsons, Essays in Sociological Theory (Glencoe, 1963), p.359 e segs. + + [...] + + O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é + um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz + retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em + vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das + pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções — + mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere + uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva, + que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de + sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas. + + [...] + + Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e + tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a + análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento + da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico. + + [...] + + As categorias básicas selecionadas por Parsons, no entanto, parecem-me + arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não + comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria + científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e + simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes + individuais. + +Construções auxiliares desnecessariamente complicadas: + + O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da + sociologia é mais complicada, do que simplificada, por uma sistemática redução + dos processos sociais a estados sociais, e de fenômenos complexos, + heterogêneos, a componentes mais simples e só aparentemente homogêneos. Este + tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização + apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda + pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso, + descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do + epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente + complicadas, a fim de fazer com que concordem com os fatos observáveis. Não + raro elas parecem nuvens escuras das quais, daqui e dali, caem uns poucos raios + de luz que tocam a terra. + +Processos: + + Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias + sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos. Conforme + demonstrado neste estudo, a relação entre o indivíduo e as estruturas sociais + só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e + evolução. Só então será possível construir modelos de seus relacionamentos, + como é feito aqui, que concordam com fatos demonstráveis. + + [...] + + Sem jamais dizer isto clara e abertamente, Parsons e todos os sociólogos da + mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se + referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”. Assim — para dar apenas um + exemplo —, Parsons adota a noção, já desenvolvida por Durkheim, de que a + relação entre “indivíduo” e “sociedade” é uma “interpenetração” do indivíduo e + do sistema social. Como quer que essa “interpenetração” seja concebida, o que + mais pode essa metáfora significar, senão que estamos tratando de duas + entidades diferentes que, primeiro, existem separadamente e que depois se + “interpenetram”?3 + +Segue uma ótima crítica à sociologia estrutural/estática que enxerga sociedades +como sistemas em repouso e que apenas buscam o repouso quando ocorre algum acidente +perturbando seu equilíbrio homeostático. + +### Humildar: sacar mais qual é a real e não se iludir + + Muitos dos artigos de fé sociológicos pioneiros não foram mais aceitos pelos + sociólogos do século XX. Eles incluíam, acima de tudo, a crença em que o + desenvolvimento da sociedade é necessariamente uma evolução para o melhor, um + movimento na direção do progresso. Esta crença foi categoricamente rejeitada + por muitos sociólogos posteriores, de acordo com sua própria experiência + social. + + [...] + + Se, no século XIX, concepções específicas do que devia ser ou do que se + desejava que fosse — concepções ideológicas específicas — levaram a um + interesse fundamental pelo desenvolvimento da sociedade, no século XX outras + concepções do que devia ser ou era desejável — outras concepções ideológicas — + geraram pronunciado interesse entre os principais teóricos pelo estado da + sociedade como ela se encontra, negligenciando os problemas da dinâmica das + formações sociais, e sua falta de interesse por problemas de processo de longa + duração e por todas as oportunidades de explicação que o estudo desses + problemas proporciona. + + [...] + + O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas + procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o + arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas + sociais. Isto porque só poderemos reunir conhecimentos sociológicos adequados o + suficiente para serem usados na solução dos agudos problemas da sociedade se, + quando equacionamos e resolvemos problemas sociológicos, deixamos de subordinar + a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções + devem ser. + +A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. |