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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-06-19 08:34:57 -0300 |
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Acostumamo-nos a imaginar que + tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana — + nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este + lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a + Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem + como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim + deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche. + + Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste + em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou + mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é + um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um + processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal + interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele + constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o + passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna + como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que + prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto + pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor. + Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou + esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo + lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.* + + É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se + civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em + mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai + pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à + luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas, + sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da + cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria + civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade. + + Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que + a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão + do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse, + Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à + ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento + das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir, + e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora. + + [...] + + Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao + contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um + “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora + seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado + à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de + nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida + melhor, ou uma cura. + + [...] + + O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe + um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que + fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na + escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma + medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os + historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a + medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou + “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa + a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade + que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível, + menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu + ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um + caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por + mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos, + vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval. + +### Notas + +Do Capítulo I: + + Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as + culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem, + decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas, + crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem, + como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta + de Newton.” ### Kultur e Zivilization @@ -2022,6 +2109,46 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático. [...] + Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os + primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam + as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes + industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a + ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas + de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com + sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um + futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no + futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento + da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais + emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o + desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças. + Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento + social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre + doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela + época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de + importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a + fatos verificáveis. + + Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra + razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização, + cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que + ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um + passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados + dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os + que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida + tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os + adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes + classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação + ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor, + no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes + dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro + mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o + progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes + das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se + identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses + como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim. + + [...] + O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas @@ -2031,4 +2158,242 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático. a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções devem ser. -A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. +A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial: + + Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua + oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com + ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a + ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que + exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de + influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O + que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da + prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que + deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi. + + [...] + + Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as + pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como + ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira” + realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras + começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas + concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um + indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social” + igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza + do problema. + +### Indivíduo como sujeito aberto + + No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em + uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual + usado aqui, realmente significa. + + [...] + + Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico. + Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo + “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber + seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o + processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são + ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da + humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a + compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a + chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de + conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a + “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia + causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem + precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo + inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade. + [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber + processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações + formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender + os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de + imagem do homem e da sua percepção de si mesmo. + [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o + que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de + todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir + importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua + vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as + pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes, + formando configurações mutáveis entre si. + + [...] + + A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias + estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito + aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos, + isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a + processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária + convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da + Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio + isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é + “exterior”. + + [...] + + Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na + literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a + incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...] + Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência + eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra + explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio + no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as + formam? + + [...] + + Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos + conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários + para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para + heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na + capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos + científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente + aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária, + irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de + seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um + conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por + conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido + de maior autocontrole pelo homem. + + [...] + + Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o + desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de + objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para + consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças + rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez + contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo + espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento + nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções, + desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau + mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do + mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por + outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos + observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto + tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos + muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da + natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa + científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem + acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora + republico examino a partir de outros aspectos. + + [...] + + O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira + puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de + forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por + conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o + homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios + seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da + sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse + respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se + relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os + homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os + processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade + ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação + ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do + conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e + finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o + suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria + contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o + sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da + indagação científica. + + [...] + + Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social, + tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se + interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e + emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais + eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) + sem a permissão desses mecanismos de controle. + + [...] + + Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de + autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais + forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação + afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas + ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si + mesmas um objeto de investigação. + + [...] + + Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade + individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se + perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de + indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe + fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos + humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O + controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa + mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais + implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se + manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de + controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que + separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes + versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” + da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e + emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na + autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o + verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é + uma metáfora conveniente, mas que induz em erro. + +### O conceito de configuração + + A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de + “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto + ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante + toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente + delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas + formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de + pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou + menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde + através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades + recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, + apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que, + conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à + imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de + numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou + sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico, + desaparece a cisão na visão tradicional do homem. + +### Dança, mu-dança + + O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente + explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo + mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na + polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de + pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar + Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e + feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as + antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje + no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na + dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do + indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente + ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos + reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais + configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos + específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria + absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações + de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais + configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam — + tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou + com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de + sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças. + +### Dinâmica criadora de monopólios + + Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do + Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais + relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação + mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há + explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma + mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma, + a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades + livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso + dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas + grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição + social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na + rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica + como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto + com essas mudanças de configuração. |