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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-06-19 08:34:57 -0300
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+++ b/books/sociedade/processo-civilizador.md
@@ -1,4 +1,4 @@
-[[!meta title="O processo civilizador"]]
+[[!meta title="O Processo civilizador"]]
## Índice
@@ -10,6 +10,93 @@
* [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg)
(Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))
e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/).
+* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta).
+
+## Excertos
+
+### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro
+
+ Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi
+ muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a
+ “civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro),
+ prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que
+ tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana —
+ nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este
+ lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a
+ Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem
+ como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim
+ deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche.
+
+ Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste
+ em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou
+ mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é
+ um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um
+ processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal
+ interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele
+ constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o
+ passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna
+ como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que
+ prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto
+ pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor.
+ Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou
+ esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo
+ lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.*
+
+ É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se
+ civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em
+ mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai
+ pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à
+ luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas,
+ sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da
+ cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria
+ civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade.
+
+ Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que
+ a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão
+ do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse,
+ Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à
+ ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento
+ das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir,
+ e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora.
+
+ [...]
+
+ Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao
+ contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um
+ “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora
+ seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado
+ à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de
+ nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida
+ melhor, ou uma cura.
+
+ [...]
+
+ O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe
+ um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que
+ fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na
+ escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma
+ medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os
+ historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a
+ medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou
+ “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa
+ a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade
+ que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível,
+ menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu
+ ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um
+ caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por
+ mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos,
+ vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval.
+
+### Notas
+
+Do Capítulo I:
+
+ Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as
+ culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem,
+ decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas,
+ crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem,
+ como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta
+ de Newton.”
### Kultur e Zivilization
@@ -2022,6 +2109,46 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.
[...]
+ Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os
+ primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam
+ as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes
+ industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a
+ ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas
+ de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com
+ sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um
+ futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no
+ futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento
+ da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais
+ emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o
+ desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças.
+ Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento
+ social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre
+ doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela
+ época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de
+ importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a
+ fatos verificáveis.
+
+ Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra
+ razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização,
+ cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que
+ ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um
+ passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados
+ dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os
+ que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida
+ tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os
+ adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes
+ classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação
+ ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor,
+ no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes
+ dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro
+ mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o
+ progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes
+ das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se
+ identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses
+ como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim.
+
+ [...]
+
O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas
procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o
arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas
@@ -2031,4 +2158,242 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.
a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções
devem ser.
-A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra.
+A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial:
+
+ Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua
+ oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com
+ ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a
+ ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que
+ exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de
+ influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O
+ que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da
+ prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que
+ deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi.
+
+ [...]
+
+ Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as
+ pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como
+ ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira”
+ realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras
+ começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas
+ concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um
+ indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social”
+ igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza
+ do problema.
+
+### Indivíduo como sujeito aberto
+
+ No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em
+ uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual
+ usado aqui, realmente significa.
+
+ [...]
+
+ Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico.
+ Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo
+ “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber
+ seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o
+ processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são
+ ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da
+ humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a
+ compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a
+ chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de
+ conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a
+ “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia
+ causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem
+ precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo
+ inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade.
+ [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber
+ processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações
+ formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender
+ os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de
+ imagem do homem e da sua percepção de si mesmo.
+ [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o
+ que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de
+ todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir
+ importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua
+ vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as
+ pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes,
+ formando configurações mutáveis entre si.
+
+ [...]
+
+ A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias
+ estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito
+ aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos,
+ isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a
+ processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária
+ convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da
+ Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio
+ isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é
+ “exterior”.
+
+ [...]
+
+ Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na
+ literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a
+ incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...]
+ Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência
+ eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra
+ explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio
+ no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as
+ formam?
+
+ [...]
+
+ Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos
+ conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários
+ para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para
+ heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na
+ capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos
+ científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente
+ aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária,
+ irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de
+ seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um
+ conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por
+ conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido
+ de maior autocontrole pelo homem.
+
+ [...]
+
+ Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o
+ desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de
+ objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para
+ consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças
+ rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez
+ contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo
+ espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento
+ nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções,
+ desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau
+ mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do
+ mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por
+ outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos
+ observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto
+ tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos
+ muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da
+ natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa
+ científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem
+ acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora
+ republico examino a partir de outros aspectos.
+
+ [...]
+
+ O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira
+ puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de
+ forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por
+ conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o
+ homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios
+ seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da
+ sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse
+ respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se
+ relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os
+ homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os
+ processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade
+ ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação
+ ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do
+ conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e
+ finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o
+ suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria
+ contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o
+ sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da
+ indagação científica.
+
+ [...]
+
+ Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social,
+ tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se
+ interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e
+ emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais
+ eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação)
+ sem a permissão desses mecanismos de controle.
+
+ [...]
+
+ Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de
+ autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais
+ forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação
+ afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas
+ ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si
+ mesmas um objeto de investigação.
+
+ [...]
+
+ Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade
+ individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se
+ perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de
+ indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe
+ fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos
+ humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O
+ controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa
+ mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais
+ implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se
+ manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de
+ controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que
+ separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes
+ versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo”
+ da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e
+ emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na
+ autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o
+ verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é
+ uma metáfora conveniente, mas que induz em erro.
+
+### O conceito de configuração
+
+ A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de
+ “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto
+ ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante
+ toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente
+ delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas
+ formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de
+ pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou
+ menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde
+ através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades
+ recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer,
+ apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que,
+ conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à
+ imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de
+ numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou
+ sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico,
+ desaparece a cisão na visão tradicional do homem.
+
+### Dança, mu-dança
+
+ O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente
+ explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo
+ mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na
+ polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de
+ pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar
+ Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e
+ feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as
+ antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje
+ no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na
+ dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do
+ indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente
+ ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
+ reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais
+ configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos
+ específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria
+ absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações
+ de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais
+ configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam —
+ tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou
+ com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de
+ sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças.
+
+### Dinâmica criadora de monopólios
+
+ Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do
+ Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais
+ relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação
+ mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há
+ explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma
+ mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma,
+ a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades
+ livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso
+ dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas
+ grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição
+ social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na
+ rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica
+ como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto
+ com essas mudanças de configuração.