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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-08-07 10:05:58 -0300
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--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/contra-metodo.md
@@ -0,0 +1,100 @@
+[[!meta title="Contra o Método"]]
+
+* Autor: Paul Feyerabend
+* Editora: Unesp
+* Edição: 1a
+* Ano: 2003
+
+## Geral
+
+* Viagens distintas: Odisseus e Sólon: descoberta e pesquisa, 252 (nota de rodapé).
+* Lógica e ilógica, 259-262, 265.
+* Participante/observador, 292.
+* Filosofia pragmática, 293.
+* Naturalismo versus idealismo, 299-300.
+* Razão versus prática, 301.
+
+## Conhecimento do conhecimento
+
+* Cap. 11: importante! Mas também temos que levar em conta que Galileu era Galileu e não um Zé Ninguém, que poderia ser prontamente chamado de lunático.
+* Descrição dinâmica de uma "seleção científica" envolvendo múltiplos fatores, por exemplo:
+
+ Em suma: o que é necessário para submeter a teste a concepção de Copérnico é uma
+ visão de mundo inteiramente nova contendo uma nova visão do homem e de suas capacidades
+ de conhecer.
+
+ É óbvio que tal nova visão de mundo levará um longo tempo a aparecer e talvez
+ jamais tenhamos êxito em formulá-la em sua totalidade. É extremamente improvável
+ que a idéia do movimento da Terra seja de modo imediato seguida pelo aparecimento,
+ em pleno esplendor formal, de todas as ciências que, diz-se agora, constituírem
+ o corpo da "física clássica". Ou, para ser um pouco mais realista, tal sequência
+ de eventos não apenas é extremamente improvável, mas é impossível em princípio,
+ dada a natureza dos humanos e das complexidades do mundo que habitam. Hoje
+ Copérnico, amanhã Helmholtz -- isso não passa de um sonho utópico. Contudo,
+ é somente depois que tenham surgido essas ciências que se pode dizer que um
+ teste faz sentido.
+
+ Essa necessidade de esperar e de ignorar grande massa de observações e medições
+ críticas quase nunca é discutida em nossas metodologias.
+
+ -- 164
+
+## Regras e princípios
+
+Regular, irregular, regra: 213.
+
+ Mas nem as regras, nem os princípios nem tempouco os fatos são sacrossantos.
+ O defeito pode encontrar-se nelees e não na idéia de que a Terra se move.
+
+ -- 177
+
+## Miséria do racionalismo
+
+ A invenção de teorias depende de nossos talentos e de outras circunstâncias fortuitas,
+ como uma vida sexual satisfatória. Contudo, enquanto subsistirem esses talentos,
+ o esquema apresentado é uma explicação correta do desenvolvimento de um conhecimento
+ que satisfaz as regras do racionalismo crítico.
+
+ Ora, a essa altura, pode-se levantar duas questões:
+
+ 1. É desejável viver de acordo com as regras de um racionalismo crítico?
+ 2. É possível ter ambas as coisas, a ciência como a conhecemos e essas regras?
+
+ No que me diz respeito, a primeira questão é bem mais importante que a segunda.
+ De fato, a ciência e as instituições relacionadas desempenham um papel importante
+ em nossa cultura e ocupam o centro de interesse pra muitos filósofos (a maioria
+ dos filósofos é oportunista). Assim, as idéias da escola popperiana foram obtidas
+ generalizando-se soluções para problemas metodológicos e epistemológicos. O racionalismo
+ crítico surgiu da tentativa de entender a revolução einsteniana e foi depois
+ estendido à política e mesmo à vida privada. Tal procedimento talvez satisfaça a
+ um filósofo de escola, que olha a vida através dos óculos de seus próprios problemas
+ técnicos e reconhece ódio, amor, felicidade somente conforme ocorrem nesses problemas.
+ Mas, se considerarmos interesses humanos e, acima de tudo, a questão da liberdade
+ humana (liberdade da fome, do desespero, da tirania de sistemas de pensamento
+ emperrados e não a "liberdade da vontade" acadêmica), então estamos procedento
+ da pior maneira possível.
+
+ Com efeito, não é possível que a ciência tal como atualmente a conhecemos, ou uma
+ "busca pela verdade", no estilo da filosofia tradicional, venha a criar um monstro?
+ Não é possível que uma abordagem objetiva, que desaprova ligações pessoais entre
+ as entidades examinadas, venha a causar danos às pessoas, transformando-as em mecanismos
+ miseráveis, inamistosos e hipócritas, sem charme nem humor?
+
+ -- 215.
+
+## Racional e irracional
+
+ Meu diagnóstico e minhas sugestões coincidem com os de Lakatos - até certo ponto.
+ Lakatos identificou princípios de racionalidade excessivamente rígidos como a fonte
+ de algumas versões de irracionalismo e insistiu conosco para que adotemos padrões novos
+ e mais liberais. Identifiquei padrões de racionalidade excessivamente rígidos, bem
+ como um respeito geral pela "razão", como a fonte de algumas formas de misticismo
+ e irracionalismo, e também insisto na adoção de padrões mais liberais. Porém, ao passo
+ que o grande "respeito pela ciência" que tem Lakatos leva-o a buscar esses padrões
+ nos limites da ciência moderna "dos últimos dois séculos", recomendo colocar a ciência
+ em seu lugar como uma forma de conhecimento interessante, mas de modo algum exclusiva,
+ que tem muitas vantagens mas também muitos inconvenientes.
+
+ -- 225
+
+[[!tag epistemology philosophy]]
diff --git a/books/epistemology/cristal-fumaca.md b/books/epistemology/cristal-fumaca.md
new file mode 100644
index 0000000..33e6c04
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/cristal-fumaca.md
@@ -0,0 +1,487 @@
+[[!meta title="Entre o cristal e a fumaça"]]
+
+## Geral
+
+* Gráfico de Bourgeois, pág. 58.
+* Delírio, aprendizagem, memória e novidade, 124.
+* Metafísica, 146.
+* Limites da teoria de Shannon para explicar a hipercomplexidade: ausência de significado, 171.
+* Cérebro volumoso, juvenilização, aprendizagem, individuação, 172.
+* Erros fecundos, erros fatais em Morin, diversificação, juventude, velhice, 180.
+
+## Natural ou artificial
+
+ Em particular, será um sistema humano - social, por exemplo -
+ natural ou artificial? Pelo fato de ser fabricado por seres humanos, ele
+ parece ser uma organização artificial, como todas as que resultam de
+ planos e programas saídos de cérebros humanos. Nessa medida, a lógica
+ dos sistemas naturais bem poderia afigurar-se inadequada, ou até deslo-
+ cada e perigosa. Entretanto, pelo fato de uma organização social ser
+ também o resultado da composição de efeitos de um grande número de
+ indivíduos, trata-se igualmente, sob certos aspectos, de um sistema auto-
+ organizador natural. Nele, forçosamente, o papel dos planos e programas
+ é relativamente limitado pelo papel das finalidades e desejos dos indiví-
+ duos e dos grupos. Mesmo nas sociedades totalitárias, a questão da origem
+ da autoridade planificadora remete às motivações individuais que fazem
+ com que a aceitemos ou nos adaptemos a ela. Essas motivações, conscien-
+ tes e inconscientes, apesar de humanas, não provêm do cérebro de um
+ engenheiro superdotado. O que equivale a dizer que, numa grande medida,
+ também elas se oferecem a nossa observação sob a forma de sistemas
+ naturais imperfeitamente conhecidos, constituídos por suas interações.
+
+ -- 10
+
+## Finalismo: teleonomia versus teleologia
+
+ Na verdade, quer o admitamos ou não, há um finalismo implícito na
+ maioria dos discursos biológicos. Ofa, essa situação é incômoda, do ponto
+ de vista do método científico, por negar o princípio · de causalidade,
+ segundo o qual as causas de um fenômeno devem ser descobertas antes,
+ e não depois de sua ocorrência. Sendo esse princípio um fundamento do
+ método científico, a impossibilidade de prescindir do finalismo na biolo-
+ gia era uma deficiência dessa ciência que J. Monod analisou brilhante-
+ mente na primeira parte de seu livro.
+
+ [...]
+
+ Resumida em termos muito sucintos, sua tese é a seguinte: um processo
+ teleonômico não funciona em virtude das causas finais, apesar de ter essa
+ aparência e embora pareça orientado para a realização de formas que só se
+ evidenciarão no final do processo. O que o determina, de fato, não são essas
+ formas como causas finais, e sim a realização' de um programa, como numa
+ máquina programada cujo funcionamento parece orientado para a realização de um
+ estado futuro, quando, na verdade, é cau.s almente determinado pela seqüência
+ de estados pela qual o programa preestabelecido a faz passar. O programa em si,
+ contido no genoma característico da espécie, é o resultado da longa
+
+ -- 18
+
+## Origem da vida
+
+ O problema da origem da vida, hoje em dia, é o do aparecimento do primeiro
+ programa. De fato, a admitirmos a metáfora da programação genética contida nos
+ ADNs - e veremos, mais adiante, que ela não está a salvo de sérias críticas - ,
+ o programa do desenvolvimento de Um indivíduo lhe é fornecido no nascimento,
+ por ocasião da fecundação do óvulo, a partir da replicação dos ADNs de seus
+ pais. Assim, coloca-se a questão da origem do primeiro programa, isto é, do
+ primeiro ADN capaz de se reproduzir e de codificar a síntese das enzimas.
+
+ Ante essa questão, várias linhas de resposta são possíveis. Uma delas extrapola
+ a reprodução laboratorial de condições físico-químicas que, supostamente,
+ teriam sido as da atmosfera primitiva e da •·sopa•• primitiva. Ela se baseia
+ nos resultados de experiências que demonstraram a possibilidade, nessas
+ condições, de sínteses de aminoácidos e de nucleo- tídios, tijolos iniciais
+ indispensáveis à fabricação do já complicadíssimo edifício desse primeiro
+ programa. Evidentemente, devemos sublinhar o caráter hipotético dessas teorias,
+ às quais J. Monod, por sua vez, não pareceu dar muita importância. Para ele, a
+ questão da origem da vida e do primeiro programa era uma questão
+ não-científica, pois concernia à ocor- rência de um evento de baixíssima
+ probabilidade, mas que mesmo assim ocorreu, e de uma vez só. Para ele, já que
+ nada além de encontros moleculares ao acaso poderia explicar a constituição do
+ primeiro organis- mo vivo, e já que esta, em tais circunstâncias, só poderia
+ ser imaginada com uma probabilidade praticamente nula, a questão de sua
+ ocorrência não mais podia ser colocada em termos de probabilidade, a
+ posteriori, agora que sabemos que isso aconteceu. Tratar-se-ia, portanto,
+ tipicamente de um evçnto único, não-reprodutível, e que escaparia por definição
+ ao campo de aplicação da pesquisa científica.
+
+ Outros, ao contrário, como A. Katzir-Katchalsky, 10 M. Eigen 11 e 1.
+ Prigogine, 12 não desistiram e partiram em busca de leis de organização -
+ físico-químicas, é claro - que permitissem compreender, desta vez, não apenas
+ que o primeiro programa não tivera uma probabilidade quase nula, mas que, ao
+ contrário, sua ocorrência fora obrigatória e inelutável. Dentro dessa
+ perspectiva, a origem da vida não teria sido um evento único de baixíssima
+ probabilidade, mas um evento que se reproduziria todas as ve- zes que as
+ condições físico-químicas da terra primitiva se materializassem. A eventual
+ descoberta de formas de vida em outros planetas seria, eviden- temente, um
+ argumento a favor dessa segunda linha de pensamento.
+
+ -- 21
+
+## Ordem dos documentos
+
+ É conhecida a história da escrivaninha e das prateleiras entulhadas de
+ livros e documentos.• Estes, aparentemente, acham-se empilhados de qualquer
+ maneira. No. entanto, seu dono sabe perfeitamente encontrar, se for preciso, o
+ documento que procura. Ao contrário, quando, por infelid- dade, alguém ousa pôr
+ ordem neles .. , é possível que o dono se tome incapaz de encontrar o que quer
+ que seja. É evidente, neste caso, que a aparente desordem era uma ordem, e
+ vice-versa. Aqui, trata-se de docu- mentos em sua relação com seu usuário. A
+ desordem aparente oculta uma ordem determinada pelo conhecimento individual de
+ cada um dos docu- mentos e de sua possível significação utilitária. Mas, em que
+ aspecto essa ordem tem a aparência de desordem? É que, para o segundo
+ observador, aquele que quer ºpôr em ordem .. , os documentos já não têm,
+ individual- mente, a mesma significação. Em casos extremos, não têm
+ significação alguma, a não ser a que se liga a sua forma geométrica e ao lugar
+ que eles podem ocupar na escrivaninha e nas prateleiras, de maneira a que
+ coinci- dam, em seu conjunto, com uma certa idéia a priori, com um padrão
+ consiederado globalmente ordenado. Vemos, portanto, que a oposição entre ordem
+ e aparência de ordem provém de os doc-umentos serem considerados, quer
+ individualmente, com . sua significação, quer global- mente~ com uma
+ significação individual diferente (determinada, por exemplo, por seu tamanho ou
+ sua cor, ou por qualquer outro princípio de alinhamento importado de fora e sem
+ a opinião de seu usuário), quer ainda sem significação alguma.
+
+ -- 27
+
+## Confiabilidade dos organismos
+
+ Daí todo um campo de pesquisas, inaugurado por von Neumann [4] e seguido por
+ muitos outros, especialmente Winograd e Cowan [3, 6], com a finalidade de
+ descobrir princípios de construção de autômatos cuja confiabilidade fosse maior
+ que a de seus componentes! Essas pesquisas resultaram na definição de
+ condições necessárias (e suficientes) para a realização desses autômatos. A
+ maioria dessas condi- ções (redundância dos componentes, redundância das
+ funções, complexi- dade dos componentes, deslocalização das funções) [6, 7]
+ resultou numa espécie de compromisso entre determinismo e indeterminismo na
+ cons- trução dos autômatos, como se uma certa quantidade de indeterminação
+ fosse necessária, a partir de certo grau de complexidade, para pennitir ao
+ sistema adaptar-se a um certo nível de ruído. Isso, evidentemente, não tleixa
+ de lembrar um resultado análogo obtido na teoria dos jogos pelo mesmo Neumann [8].
+
+ [...]
+
+ Quando um sistema se fixa num estado particular, ele fica inadaptável, e esse
+ estado final pode ser igualmente ruim. Ele será incapaz de se ajustar a alguma
+ coisa que constitua uma situação inadequada" [9].
+
+ -- 38
+
+## Ordem pelo ruído
+
+ Isso é apenas uma conseqüência de que, na ausência de erros de replicação,
+ nenhuma novidade pode aparecer.
+
+ -- 49
+
+ Assim, ao menos em princípio, vemos como uma produção de informação
+ sob o efeito de fatores aleatórios nada tem de misterioso: ela não passa da
+ co.nseqüência de produções de erros num sistema repetitivo, constituído
+ de maneira a não se: destruído quase que de imediato por um número
+ relativamente pequeno de erros.
+
+ Na verdade, no que concerne à evolução das espécies, nenhum
+ mecanismo é concebível, à parte os que foram sugeridos por determinadas
+ teorias, nas quais eventos aleatórios (mutações ao acaso) são responsáveis
+ por uma evolução orientada para uma complexidade e uma riqueza ma-io-
+ res da organização. No que concerne ao desenvolvimento e à maturação
+ dos indivíduos, é muito possível que esses mecanismos também desem-
+ penhem um papel nada desprezível, especialmente se incluirmos aí os
+ fenômenos de aprendizagem adaptativa não dirigida, na qual o indivíduo
+ se adapta a uma situação radicalmente nova, em que é difícil recorrer a
+ um programa preestabelecido. De qualquer modo, essa noção de programa
+ preestabelecido, aplicada aos organismos, é muito discutível, na medida
+ em que se trata de programas de ••origem interna .. , fabricados pelos
+ próprios organismos e modificados no curso de seu desenvolvimento. Na
+ medida em que o genoma é fornecido de fora (pelos pais), é freqüente ele
+ ser assemelhado a um programa de computador, mas essa semelhança nos
+ parece inteiramente abusiva. Se há uma metáfora cibernética apta a ser
+ utilizada para descrever o papel do genoma, a da memória nos parece
+ muito mais adequada que a do programa, pois esta última implica todos
+ os mecanismos de regulação que não se acham presentes no próprio
+ genoma. Sem isso, não evitamos o paradoxo do programa que precisa dos
+ produtos de sua execução para ser lido e executado. Ao contrário, as
+ teorias da auto-organização permitem compreender a natureza lógica de
+ sistemas onde o que desempenha a função do programa se modifica sem
+ parar, de maneira não preestabelecida, sob o efeito de fatores .. aleató-
+ rios" do ambiente, produtores de .. erros" no sistema.
+
+ Mas, que são esses erros? Segundo o que acabamos de ver, até por
+ causa de seus efeitos positivos, eles já não parecem ser erros em absoluto.
+ O ruído provocado no sistema pelos fatores aleatórios do ambiente já não
+ seria um verdadeiro ruído, a partir do momento em que fosse utilizado
+ pelo sistema como fator de organização. Isso significaria que os fatores
+ do ambiente não são aleatórios. Mas eles são. Ou, mais exatamente,
+ depende da reação posterior do sistema em relação a eles o fato de, a
+ posteriori, esses · fatores serem reconhecidos como aleatórios ou como
+ parte de uma organização. A priori, eles são efetivamente aleatórios, se
+ definirmos o acaso como a intersecção de duas cadeias de causalidade
+ independentes: as causas de sua ocorrência nada têm a ver com o enca-
+ deamento dos fenômenos que constituiu a história anterior do sistema até
+ então. É nesse sentido que sua ocorrência e seu encontro com essa história
+ constituem ruído, do ponto de vista das trocas de informação no sistema,
+ e só são passíveis de produzir erros nele. Mas, a partir do momento em
+ que o sistema é capaz de reagir a esses erros, de modo não apenas a não
+ desaparecer, mas também a modificar a si mesmo num sentido que lhe
+ seja benéfico, ou que, no mínimo, preserve sua sobrevivência posterior;
+ em outras palavras, a partir do momento em que o sistema é capaz de
+ integrar esses erros em sua própria organização, .eles então perdem um
+ pouco, a posteriori, seu caráter de erros. Preservam-no apenas de um
+ ponto de vista externo ao sistema; no sentido de que., como efeitos do
+ ambiente sobre este, eles mesmos não correspondem a nenhum programa
+ preestabelecido, contido no ambiente e destinado a organizar ou desorga-
+ nizar o sistema. 11 Ao contrário, de um ponto de vista interno, na medida
+ em que a organização consiste precisamente numa seqüência de desorga-
+ nizações resgatadas, eles só aparecem como erros no instante exato de sua
+ ocorrência e em relação a uma manutenção, que seria tão nefasta quanto
+ imaginária, de um statu quo do sistema organizado, que imaginamos tão
+ logo uma descrição estática dele nos possa ser dada. Caso contrário, e
+ depois desse instante, eles são integrados e recuperados como fatores de
+ organização. Os efeitos do ruído tomam-se, então, eventos da história do
+ sistema e de seu processo de organização. Contudo, permanecem como
+ efeitos de um ruído, visto que sua ocorrência era imprevisível.
+
+ -- 50-51
+
+## Ruído organizacional
+
+ Uma das questões mais difíceis a propósito desse problema capital
+ das organizações hierárquicas, que encontramos por toda parte na ·biolo-
+ gia, é a seguinte: como passamos de um nível para outro, ou, mais
+ precisamente, quais são as determinações causais que dirigem a passagem
+ de um nível de integração para outro?
+
+ Num sistema dinâmico, descrito por um sistema de equações dife-
+ renciais, às funções (soluções do sistema) caracterizam o nível em que
+ estamos interessados; as condições limites caracterizam o nível superior.
+ Compreendemos perfeitamente como as condições limites, que impõem
+ as constantes de integração, determinam as funções de soluções do siste-
+ ma. Mas, inversamente, como podem as funções influenciar as condições
+ limites? Em outras palavras, como pode um nível inferior - menos
+ integrado - , na matemática, influenciar o nível superior? Como repre-
+ sentar o efeito do nível molecular sobre as células, o das células nos órgãos
+ e o dos órgãos no organismo, embora esse seja o pão de cada dia da
+ observação biológica?
+
+ -- 60
+
+ Isso significa que a introdução da posição do observador não cons-
+ titui apenas uma etapa lógica do raciocínio: esse observador, externo ao
+ sistema, é, de fato, num sistema hierarquizado, o nível de organização
+ superior (englobante), comparado aos sistemas-elementos que o consti-_
+ tuem; é o órgão em relação à célula, o organismo em relação ao órgão etc.
+ É em relação a ele que os efeitos do ruído sobre uma via no interior do
+ sistema, em certas condições, podem ser positivos.
+
+ -- 61
+
+## Auto-organização e individuação
+
+ A teoria da auto-organização fornece um princípio geral de diferenciação pela
+ destruição, eventualmen- te aleatória, de uma redundância que caracteriza o
+ estado inicial de indiferenciação. Assim, a quantidade de informação contida
+ num eventual programa genético pode ser consideravelmente reduzida em
+ comparação com a que seria necessária no caso de uma determinação rigorosa dos
+ detalhes da diferenciação. Isso parece particularmente pertinente no que
+ concerne ao desenvolvimento do sistema nervoso, onde uma parcela de
+ aleatoriedade permite uma considerável economia de informação genéti- ca I 5
+ que, de outra maneira, seria insuficiente, caso tivesse que especificar em
+ todos os seus detalhes um sistema constituído de mais de dez bilhões de
+ neurônios interligados. Também aí podemos observar, pelo menos em alguns casos,
+ conexões inicialmente redundantes, que se especificam no curso do
+ desenvolvimento, perdendo essa redundância. 16
+
+ [...]
+
+ Esses processos são empregados não apenas nos "reconhecimentos
+ de formas" que caracterizam nosso sistema cognitivo, mas também na
+ constituição e no funcionamento do sistema imunológico, verdadeira
+ máquina de aprendizagem e de integração do novo, desta vez no nível de
+ formas celulares e moleculares. De fato, o sistema imunológico realiza
+ uma rede celular em que as células - os linfócitos - são ligadas, entre
+ si e com os antígenos que constituem seus estímulos externos, por meca-
+ nismos de reconhecimento molecular ao nível de suas membranas. Tam-
+ bém aí estamos diante de um sistema de aprendizagem não-dirigida cujo
+ desenvolvimento é condicionado pela história dos contatos com diferen-
+ tes andgenos, uma história, evidentemente, pelo menos em parte, não-pro-
+ gramada e aleatória. Ora, o reconhecimento dos antígenos pelos linfócitos
+ é o resultado, no nível molecular e celular, de uma seleção de linfócitos
+ preexistentes, com suas estruturas membranosas adequadas, cuja multi-
+ plicação é desencadeada pelo contato com determinado antígeno (seleção
+ clonai). Por isso, a possibilidade de uma variedade praticamente infinita
+ e imprevisível de reações imunológicas, a partir de um número finito de
+ linfócitos determinados, implica a cooperação de diversos níveis diferen-
+ tes de reconhecimento. Uma combinação de células diferentes, pertencen-
+ tes a níveis diferentes, multiplica consideravelmente a variedade das
+ respostas possíveis (Jerne 18) . Por fim, também nesse caso, uma redundân-
+ cia inicial nessa cooperação - transmissão de informações entre diferen-
+ tes níveis da rede celular que constitui o sistema imunológico - talvez
+ permita explicar o desenvolvimento com aumento da diversidade e da
+ especificidade. 19 Este, no final das contas, leva à constituição da indivi-
+ dualidade molecular de cada organismo, que, no homem, sabemos ser
+ praticamente absoluta. Na verdade, ela é condicionada pelos encontros
+ parcialmente aleatórios com estruturas moleculares e celulares trazidas
+ por um ambiente sempre renovado, pelo menos em parte.
+
+ -- 62-63
+
+### Ruído e significação
+
+ Como vimos anteriormente a propósito da história da escrivaninha desar-
+ rumada, a idéia do sentido e da significação está sempre presente na noção
+ de ordem, bem como na de informação. Contudo, vimos também que a
+ teoria de Shannon só permitiu quantificar a informação ao preço da
+ colocação de sua significação entre parênteses. O princípio da ordem a
+ partir do ruído, em suas sucessivas formulações quantitativas (H. von
+ Foerster, 1960; H. Atlan, 1968, 1972, 1975 2 º), utilizou igualmente a teoria
+ de Shannon, da qual estão ausentes as preocupações com a significação.
+ Na verdade, o problema do sentido e da significação. continua presente,
+ muito embora o suponhamos eliminado. Está presente, é claro, nas noções
+ de codificação e decodificação. Mas também está presente, de maneira
+ implícita-negativa e como uma espécie de sombra, em todas as utilizações
+ das noções de quantidade de informação ou de entropia para avaliar o
+ estado de complexidade, de ordem ou desordem de um sistema. Finalmen-
+ te, veremos que o princípio de ordem a partir do ruído, apesar de expresso
+ num formalismo puramente probabilístico do qual o sentido se acha
+ ausente, repousa implicitamente na existência da significação, e até de
+ diversas significações da informação. Em outras palavras, trata-se de uma
+ possível via .de abordagem para a solução do último dos problemas que a
+ teoria de Shannon negligenciou: o da significação da informação. 2 1
+
+ Para isso, é conveniente apreendermos, logo de saída, a inversão
+ que efetuamos em relação à formulação inicial de von Foetster, quando
+ exprimimos o princípio da ordem através do ruído como um aumento da
+ variedade, da informação de Shannon e da complexidade, ligado a uma
+ diminuição da redundância.
+
+ -- 63-64
+
+### Complexidade
+
+ Em outras palavras, complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para
+ presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código
+ não conhecemos.
+
+ -- 67
+
+ É pelo fato de a informação ser medida (por nós) por uma fórmula
+ da qual o sentido está ausente, que seu oposto, o ruído, pode ser gerador
+ de informação. Isso nos permite continuar a exprimi-lo pela mesma
+ função H, embora sua significação seja diferente, por ser recebida em dois
+ ·níveis diferentes de organização. A informação, num nível elementar, tem
+ um sentido que desprezamos quando a medimos pelas fórmulas de Shan-
+ non, mas que se traduz por seus efeitos em seu destinatário, a saber a
+ estrutura e as funções desse nível, tal como as percebemos.
+
+ -- 74-75
+
+### Delírio
+
+ Qualquer hipótese científica realmente nova é, de fato, da ordem do
+ delírio, do ponto de vista de seu conteúdo, por se tratar de uma projéção
+ do imaginário no real. É tão-somente por aceitar, a priori, a possibilidade
+ de ser transformada ou mesmo abandonada, sob o efeito de confrontações
+ com novas observações e experiências, qu~ ela fmalmente se separa disso.
+ Em particular, poqemos compreender como a própria interpretação psica-
+ nalítica pode desempenhar o papel de um delírio organizado, ou, ao
+ contrário, o de uma criação libertária, conforme seja vivida de maneira
+ fechada, como o modelo central - o padrão imutável-, o pólo organi-
+ zador, ou de maneira aberta, como uma etapa fugaz no processo auto-or-
+ ganizador. Entretanto, seja qual for o caso, o conteúdo da interpretação
+ consiste sempre no que costumamos chamar "uma projeção do imaginá-
+ rio no real".
+
+ [...]
+
+ Dentro dessa pers- pectiva, podemos compreender que esse desvelamento do
+ delírio no Homo sapiens, latente, por ser inconsciente em seus predecessores,
+ tenha sido concomitante a'o desenvolvimento da linguagem simbólica, na medi- da
+ em que este implicou e permitiu, justamente, um considerável aumento das
+ capacidades de memória, em comparação com as que lhe eram preexistentes.
+
+ -- 124-125
+
+### Humanismo
+
+ Num artigo publicado há alguns anos, A. David constatou que cada
+ um dos progressos da cibernética fazia o homem desaparecer um pouco
+ mais [6]. Mas um último sobressalto de humanismo o fez localizar em nós
+ o derradeiro recôndito de onde seria impossível desalojar o homem: seria
+ o desejo (nosso programa, em outras palavras?). Mediante isso, ele nos
+ sugeriu uma descrição futurista de homens telegrafados no espaço sob a
+ forma de "programas puros ... Mas, que acontece com isso quando se
+ constata que, nos sistemas cibernéticos auto-organizadores dotados da
+ complexidade dos organismos vivos, o programa não pode ser localizado,
+ porque se reconstitui sem parar? Pois bem, isso significa que o homem é
+ finalmente desalojado até mesmo daí, e que para nós é melhor que seja
+ assim, porque, dessa maneira, a unidade e a autonomia de nossa pessoa,
+ na medida em que se produzirem, não mais poderão ser telegrafadas no
+ espaço, separadas do resto, que a superfície que limita um volume e define
+ sua unidade não pode ser separada desse volume. Alguns programas de
+ organizações talvez possam ser telegrafados: os sistemas assim realizados
+ talvez possam assemelhar-se a nós e dialogar conosco. Não há nada de
+ inquietante nisso, 9 muito pelo contrário, porque eles não serão nós; como
+ tampouco o são as máquinas, inclusive as mais poderosas, que nos
+ prolongam.
+
+ [6. A. David, "Nouvelles définitions de l'humanisme", in Wiener e Schadc,
+ (orgs.), Progress in Biocybernetics, Nova York, Elsevier Publications Co.,
+ 1966.]
+
+ -- 122
+
+### Tempo e irreversibilidade
+
+ Mas existe um outro tipo de situação, muito diferente, que aparece
+ ao observarmos fenômenos naturais - não artificialmente criados por
+ outro seres humanos -, e quando estes nos parecem orientados de tal
+ maneira que as coisas acontecem como se fossem determinadas por um
+ projeto, ou seja, também por uma vontade, um desejo ou uma intenção.
+ Naturalmente, esse tipo de situação é encontrado, em especial, quando
+ observamos os sistemas biológicos em todos os seus níveis de organiza-
+ ção, exceto, talvez, ;io nível molecular. Isso explica que a biologia tenha
+ freqüentemente dado margem a toda sorte de especulações místicas ou
+ religiosas, e nem sempre no melhor sentido: se observamos fenômenos
+ em que as coisas se produzem de maneira aparentemente finalista, como
+ se resultassem de uma vontade (mesmo que não haja ninguém para nos
+ dar informações sobre essa vontade), torna-se tentador, é claro, assimilar
+ a existência dessa suposta vontade à vontade de Deus ou do Criador. O
+ que vimos até o momento nos mostra em que sentido essa hipótese não é
+ necessária, pois começamos a compreender como a matéria pode ser um
+ locus de fenômenos de àuto-organização: em razão de diversos tipos de
+ interações entre a ordem e o acaso, amostras de matéria podem evoluir de
+ tal maneira que, aos olhos do observador externo, parecem determinadas
+ por seu futuro, embora, na verdade, isso não aconteça.
+
+ A verdade é que, nessas situações - e embora não sejamos obriga-
+ dos a presumir a existência de uma vontade consciente -, estamos
+ lidando com uma inversão local do tempo, na medida em que se produz
+ uma diminuição local da entropia. Essa inversão não resulta, é claro, de
+ uma vontade humana que dite sua orientação, e as vontades humanas são
+ as únicas que conhecemos, porque a vontade de Deus é apenas uma
+ abstração da vontade humana.
+
+ -- 143
+
+ A biologia físico-química nos indica - sem por isso nos dar
+ nenhuma receita, é claro - como tudo isso é teoricamente possível, pek·
+ menos em princípio, e como funciona nos sistemas biológicos em desen -
+ volvimento. Exatamente, embora de maneira abstrata, isso pode se resu-
+ mir assim: a habitual direção irreversível do tempo se inverte nos proces-
+ sos em que a entropia de um sistema aberto decresce e em que a
+ informação e a organização são criadas através da utilização de interações
+ aleatórias do sistema com seu ambiente. Isso é apenas uma conseqüência
+ direta do fato de que o habitual caráter irreversível do tempo, na física, é
+ - determinado pela lei do aumento da entropia. De fato, daí decorre que,
+ quando se pode produzir uma diminuição da entropia em algum lugar, é
+ como se a direção do tempo, localmente, fosse invertida nesse ponto; o
+ que equivale a dizer que a passagem do tempo, de destrutiva, toma-se
+ criadora.
+
+ -- 149
+
+### Novas ciência e epistemologia
+
+ Assim, a ciência do homem, visando a uma ciência do político, desembocaria
+ inevitavelmente numa ciência do homem conhecedor e sábio, e portanto, numa
+ ciência sobre a ciência, numa nova epistemologia, e portanto, num novo
+ paradigma, numa nova prática científica. A reforma da ciência aqui conclamada
+ implica uma superação da atitude operacional que se impôs e continua a se impor
+ cada vez mais na prática científica: o objetivo da ciência já não é compreender
+ - pois, afinal, que é compreender, se só nos colocamos problemas que podemos
+ resolver e eliminamos todas as questões consideradas "não-científicas"? - , e
+ sim resolver problemas de laboratório graças aos quais se molda um novo
+ universo técnico e lógico, que tendemos a considerar -- em virtude de sua
+ eficácia operacional - coincidente com a realidade física inteira. O fato de
+ isso não acontecer, de esse universo ser cada vez mais artificial - para ser
+ repetitivo e reproduzível, para que a antiga ciência possa aplicar-se a ele
+ eficazmente-, constitui, evidentemente, a razão do abismo que reconhecemos,
+ sempre com um certo espanto ingênuo, entre as ciências laboratoriais e a
+ ciência do real vivido . Há nisso uma maquinação da epistemologia ocidental,
+ que H. Marcuse, ao que saibamos, foi o primeiro a denunciar. Julgou-se que,
+ para escapar aos engodos da metafísica, a ciência deveria ser apenas
+ operacional, e eis que nos encerramos no universo alienante e unidimensional do
+ operacional sem negatividade, onde o estrangeiro e o estranho são simplesmente
+ rechaçados, afastados, quando não podem ser recuperados.
+
+ -- 181-182
diff --git a/books/epistemology/metodo.md b/books/epistemology/metodo.md
new file mode 100644
index 0000000..848958f
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo.md
@@ -0,0 +1,26 @@
+[[!meta title="O Método"]]
+
+* Autor: Edgar Morin.
+* Editora: Sulina.
+* [O Método - Coleção / Edgar Morin](http://editorasulina.com.br/detalhes.php?id=298).
+
+## Versões digitais
+
+* [Descarga El Método I Edgar Morin](http://www.edgarmorin.org/descarga-el-metodo-i-edgar-morin.html).
+* [Descarga Libro Metodo II al IV](http://www.edgarmorin.org/descarga-libro-metodo-ii-al-iv.html).
+* [Volume I em português](https://monoskop.org/File:Morin_Edgar_O_metodo_1_A_natureza_da_natureza.pdf).
+
+## Tetragrama da Complexidade
+
+[[!img tetragrama.svg]]
+
+## Índice
+
+[[!toc levels=4]]
+
+* [Volume I](1).
+* [Volume II](2).
+* [Volume III](3).
+* [Volume IV](4).
+
+[[!tag epistemology philosophy]]
diff --git a/books/epistemology/metodo/1.md b/books/epistemology/metodo/1.md
new file mode 100644
index 0000000..4b00e17
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/1.md
@@ -0,0 +1,240 @@
+[[!meta title="O Método - Volume I"]]
+
+[[!toc levels=4]]
+
+## Geral
+
+* Complexidade: circuito de complementaridade, concorrência e antagonismo de termos irredutíveis.
+* Método, originalmente caminhada, 36.
+* Jogo, 111.
+* Simples, homologia e equivalência, 181.
+* Sistema: o conceito complexo mais simples, 187.
+* Poíesis, 200.
+* Mumford e a máquina faraônica de 100 mil homens-vapor, 211.
+* Máquinas artificiais como incompletas: a mais organizacionalmente enferma, 214-215.
+
+## Ordem e racionalidade clássica
+
+ O universo de fogo, substituindo o antigo universo de gelo,
+ faz soprar o vento da loucura na racionalidade clássica,
+ que ligava em si as ideias de simplicidade, funcionalidade
+ e economia. O calor ainda comporta agitação, dispersão,
+ ou seja, perda, despesa, dilapidação, hemorragia.
+
+ A despesa era ignorada onde reinava a ordem soberana. Esta
+ significava, ao contrário, economia. A economia cósmica,
+ física e política se fundava em uma lei geral do menor esforço,
+ do menor atalho de um ponto a outro, do menor custo de uma
+ transformação a outra. A verdade de uma teoria ainda se julga
+ por seu caráter econômico com relação a seus rivais, mais
+ dispendiosos em conceitos, postulados, teoremas.
+
+ -- 111-112
+
+## Vida
+
+ A vida, acaba-se de ver, é a emanação da organização viva;
+ não é a organização viva que é a emanação de um princípio vital.
+
+ -- 138
+
+## Dependência entre sistemas
+
+ Há neste encadeamento sobreposição, confusão, superposição de
+ sistemas e há, na necessária dependência de um em relação aos
+ outros.
+
+ -- 128
+
+## Simplexidade: a complexidade necessária da pragmática
+
+Numa segunda releitura da parte inicial d'O Método, confrontei minha noção de
+simplexidade, ou complexidade necessária com o conceito de complexidade
+moriniano.
+
+Há aí, à primeira vista, um óbvio antagonismo de pontos de vista: o simples,
+reducionista, seria visto em oposição ao complexo, irredutível.
+
+O que ocorre, de fato, é que ambas as conceituações são complementares ao
+prestarmos atenção à qualidade *necessária* da noção de simplexidade, que
+nada mais é do que o estabelecimento de um nível de complexidade de entendimento
+e uso do conhecimento para determinado fim. É necessário porque pragmático,
+por exemplo para fins didáticos.
+
+Por quê o simples é sedutor? Pela sua facilidade. A pragmática reducionista
+levou a ciência a várias revoluções. Sua sistemática facilitou enormemente
+a pesquisa em ciência normal. Mas pode, como Morin aponta n'O Método,
+circunscrever o conhecimento apenas naquilo que pode ser restringido a
+conceitos simples e irredutíveis, o que cada vez mais se torna impossível:
+
+ O pensamento racionalista comporta um aspecto de racionalização demente
+ em sua ocultação do gasto absurdo.
+
+ -- 111
+
+Não se pode, então, confundir a pragmática de um nível de entendimento da
+complexidade necessária da natureza como sendo a natureza de fato. No
+uso da simplexidade, "travamos" temporariamente a espiral de conhecimento
+para que dele possamos fazer um uso prático usando o que consideramos
+conceitualmente mais importante, mais essencial em detrimento do desnecessário
+e desimportante.
+
+Nisto, vale a formulação de Malatesta em seu texto A Organização II:
+
+ Antes de mais nada, há uma objeção, por assim dizer, formal. “Mas de
+ que partido nos falais? Dizem-nos, nem sequer somos um, não temos um programa”.
+ Este paradoxo significa que as idéias progridem, evoluem continuamente,
+ e que eles não podem aceitar um programa fixo, talvez válido hoje, mas
+ que estará com certeza ultrapassado amanhã.
+
+ Seria perfeitamente justo se se tratasse de estudantes que procuram a verdade,
+ sem se preocuparem com as aplicações práticas. Um matemático, um quí-
+ mico, um psicólogo, um sociólogo podem dizer que não há outro programa senão
+ o de procurar a verdade: eles querem conhecer, mas sem fazer alguma coisa.
+ Mas a anarquia e o socialismo não são ciências: são proposições, projetos que os
+ anarquistas e os socialistas querem por em prática e que, conseqüentemente,
+ precisam ser formulados como programas determinados. A ciência e a arte das
+ construções progridem a cada dia. Mas um engenheiro, que quer construir ou
+ mesmo demolir, deve fazer seu plano, reunir seus meios de ação e agir como se
+ a ciência e a arte tivessem parado no ponto em que as encontrou no início de
+ seu trabalho. Pode acontecer, felizmente, que ele possa utilizar novas aquisições
+ feitas durante seu trabalho sem renunciar à parte essencial de seu plano. Pode
+ acontecer do mesmo modo que as novas descobertas e os novos meios industriais
+ sejam tais que ele se veja na obrigação de abandonar tudo e recomeçar do
+ zero. Mas ao recomeçar, precisará fazer novo plano, com base no conhecimento e
+ na experiência; não poderá conceber e por-se a executar uma construção amorfa,
+ com materiais não produzidos, a pretexto que amanhã a ciência poderia sugerir
+ melhores formas e a indústria fornecer materiais de melhor composição.
+
+ Entendemos por partido anarquista o conjunto daqueles que querem contribuir
+ para realizar a anarquia, e que, por conseqüência, precisam fixar um objetivo a
+ alcançar e um caminho a percorrer. Deixamos de bom grado às suas elucubrações
+ transcendentais os amadores da verdade absoluta e de progresso contínuo, que,
+ jamais colocando suas idéias à prova, acabam por nada fazer ou descobrir.
+
+ https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2014/03/errico-malatesta-a-organizac3a7c3a3o-ii.pdf
+
+A simplexidade é justamente o reconhecimento do paradoxo que Malatesta coloca
+entre a evolução contínua das ideias e a necessidade do aqui e agora de uma
+escolha prática para a organização.
+
+Assim, minha brincadeira com Morin consiste em negar o reducionismo no próprio
+conceito de simplicidade: em contraponto ao simples como irredutível, busco o
+simples não-simples, o simples complexo, a complexidade do simples e a
+simplicidade do complexo: antagonistas e complementares.
+
+Saber quando e como se utilizar de determinados níveis de complexidade para a
+construção de entendimentos é uma arte.
+
+A simplificação pode ajudar a andar porém pode cegar da maioria das coisas que
+existem e acontecem. Já a complexificação pode dificultar escolhas mas pode
+abrir horizontes de compreensão.
+
+Há também uma ligação fundamental entre simplexidade e bem viver.
+
+ A complexidade não é complicação. O que é complicado pode se reduzir a um princípio
+ simples como um emaranhado ou um nó cego. Certamente o mundo é muito complicado, mas
+ se ele fosse apenas complicado, ou seja, emaranhado, multidependente, etc., bastaria
+ operar as reduçõe sbem conhecidas [...] O verdadeiro problema, portanto, não
+ é devolver a complicação dos desenvolvimentos a regras de base simples. A complexidade
+ está na base.
+
+ [...]
+
+ O simples é apenas um momento arbitrátrio de abstração arrancado das complexidades,
+ um instrumento eficaz de manipulação laminando um complexo.
+
+ -- 456
+
+## Finalidade e causalidade
+
+ O erro é não apenas reduzir o universo da vida, do homem, da sociedade ao das
+ máquinas artificiais, é também redurzir o unoiverso das máquinas artificiais às
+ máquinas artificiais. O erro está na recionalização cibernética que só quer ou
+ só pode ver no ser vivo e no ser social uma máqiuna lubrificada e funcional que
+ pde para ser mais lubrificada e mais funcionalizada para sempre. Tal
+ racionalização finalitária se torna simétrica à antiga causalidade elementar,
+ pois, como esta, ela expulsa a incerteza e a complexidade. O erro é o mesmo do
+ pensamento tecnocrático que fez da máquina o eídolon de toda vida, o novo
+ ídolo, a rainha do mundo robotizado! A finalidade é certamente uma emergência
+ cibernética da vida, mas ela emerge na complexidade. Que seja no nível do
+ organismo, do indivíduo da reprodução da espécie, do ecossistema, da sociedade,
+ a ideia de finalidade deve ser simultaneamente integrada e relativizada, ou
+ seja, complexificada. É uma noção que não é nem clara, ne distinta, mas
+ pestanejante. A complexidade a desmultiplica, mas também a escurece. Os
+ objetivos práticos, as operações funcionais, são claros e evidentes, mas eles
+ se engrenam nas finalidades cada ve menos claras e menos evidentes...
+
+ -- 325
+
+ A dialógica, as dialéticas endo-exocausais têm um caráter aleatório. Quer dizer
+ que a causalidade complexa comporta um princípio de incerteza: nem o passado nem
+ o futuro podem ser inferidos diretamente do presente (Maruyama, 1974). Não pode
+ mais haver nem explicação segura do passado nem futurologia arrogante: pode-se,
+ deve-se construir cenários possíveis e improváveis para o passado e para o futuro.
+
+ É preciso compreender que mesmo a causalidade pode ter um efeito ínfimo, ou,
+ pelo contrário, devido às retroações amplificadoras, desestruturadoras,
+ morfogenéticas que ela desencadeará, ser como uma avalanche durante séculos e
+ séculos.
+
+ -- 329
+
+## Informacionalização
+
+ Como a informação é cada vez mais captada pelo inimigo, que se tornando cada
+ vez mais inteligente, como o inimigo extrai de nossos traços marcas, odores,
+ etc., informações para nos situar, então se desenvolvem conjuntamente a
+ camuflagem, o engodo, a esperteza e a arte de detectar a camuflagem, o engodo e
+ a esperteza. A informação se torna agora equívoca e ambivalente: ela adverte e
+ trai; ela informa eventualmente aquele que não deve informar: o inimigo, o
+ concorrente. Grande "progresso" na história da vida: a entrada da enganação na
+ comunicação. De agora em diante, a vitória não pertence mais somente à força e
+ ao endereço, mas também à esperteza, depois à mentira (homo sapiens). A mentira
+ humana, ao se sociologizar, ao se ideologizar, desdobra-se, frutifica, triunfa,
+ já que ela está ornada das virtudes da verdade. Quanto mais o universo for
+ informacionalizado, mais ele será assim, até que a saturação de mentira e de
+ hipocrisia desencadeie uma inversão da tendência, como eu quero esperar.
+
+ -- 404
+
+ Todo o poder de Estado dispõe do poder programador/ordenador sobre a sociedade
+ (poder de regular, legislar, deretar), do poder estratégico (elaborar e decidir
+ as políticas a seguir) e do poder de comando/controle. O Estado dito
+ "totalitário" vai mais longe: ele concentra em si a memória oficial (o poder de
+ escrever a História do passado e de ditar a história do presente), o controle
+ de todos os meios de expressão e de comunicação da informação: o monopólio do
+ saber verídico pelo menos no que diz respeito à sociologia e à política,
+ eventualmente em matéria de ciência e de artes; o controle direto de todos os
+ aparelhos econômicos e outros.
+
+ [...]
+
+ A idéia-chave que o poder está na produção deve ser lida e compreendida não no
+ sentido restrito, economista do termo produção, mas no seu sentido
+ organizacionista/informacional. Não é o poder sobre os "meios" de produção, é
+ o poder sobre a produção da produção, ou seja, a generatividade social: não é
+ apenas a propriedade das coisas, dos bens: o domínio está no domínio dos meios
+ de domínio; a dominação dos meios de dominação; o controle dos meios de
+ controle: o poder informacional do aparelho.
+
+ Vê-se aqui a justeza e o erro de Marx. Marx buscava o que era gerador na
+ sociedade, e é com uma retidão admirável que ele priorizou, antropologicamente,
+ a noção de ser genérico, e, sociologicamente, a noção de produção. Mas o único
+ fundamento que oferecia a física da época era de natureza energética: o
+ trabalho; da mesma forma, ele vira na sociedade o poder de classe, não o poder
+ do aparelho.
+
+ Ora, a teoria do Aparelho genofenomenal da uma Sociedade concebida como
+ organização informacional/comunicacional pode apenas renovar e enriquecer o
+ problema sociológico da dominação e do poder. Ela nos leva a detectar o
+ problema-chave da monopolização da informação. O pode é monopolizado assim que
+ um aparelho liga diretamente o poder ao saber (quem reina detém a verdade), o
+ bastão de comando ao cetro, o sagrado ao político, e por isso uma casta ou uma
+ classe de aparelho monopoliza as formas múltiplas de informação. A exploração e
+ a dominação coincidem com a relegação dos explorados e dominados às tarefas
+ puramente energéticas de execução, com a sua exclusão da esfera
+ generativa/programadora. Eles só têm direito aos sinais informando-os do que
+ eles devem fazer, pensar, esperar, sonhar.
+
+ -- 418 - 419
diff --git a/books/epistemology/metodo/2.md b/books/epistemology/metodo/2.md
new file mode 100644
index 0000000..ba26fae
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/2.md
@@ -0,0 +1,744 @@
+[[!meta title="O Método - Volume II"]]
+
+[[!toc levels=4]]
+
+## Geral
+
+* Ecologia da ação, complexidade das ações e incerteza das consequências, 100.
+
+## Simplicidade e complexidade
+
+ É a procura de uma simplicidade elementar que nos conduz a uma complexidade
+ fundamental.
+
+ -- 128
+
+## Vida: necessidade do genona
+
+ A generalidade produz e mantém processos organizadores que são, fisicamente,
+ improváveis. A generatividade física (seres organizadores de si) é sempre
+ espontânea, isto é, não dispõe de aparelho informacional para controlá-la
+ ou programá-la. Os seres vivos se desintegrariam se dependessem apenas das
+ regulações físicas, químicas, termodinâmicas espontâneas. A generatividade
+ biológica (seres auto-organizadores) comporta, necessariamente, agenciamento
+ genético e informação hereditária.
+
+ -- 136
+
+ Assim como a fetichização do capital econômico impede que as outras dimensões
+ da vida social tomem forma, a fetichização do capital genético impede que as
+ múltiplas dimensões da auto-organização tomem forma.
+
+ Assim, sob o duplo efeito da redução química e da coisificação informática, o
+ gene é isolado, hipostasiado. Apesar e por causa dos progressos da genética e
+ da biologia molecular o paradigma de simplificação pesa no sentido de um
+ subdiscurso vulgarizador, de caráter atomizador (que situa o fundamento
+ organizacional do ser vivo na unidade de base, isto é, na molécula, na
+ informação, no gene), mecanística (que reduz a lógica da organização viva à
+ máquina artificial), coisificador (que substancializa a informação/programa). O
+ subdiscurso, larvar na genética torna-se o discurso "genetista" propriamente
+ dito e, desenvolvendo-se sem entraves, transforma-se em mito pangenetista.
+ Assim, a incapacidade para conceber a unidade complexa do genos e do fenon na
+ auto-organização transforma o gene em gênio e o DNS em Adonai.
+
+ -- 155
+
+## Misc
+
+ O ego-autocentrismo parece invulnerável. O indivíduo não pode agir senão para
+ si e para os seus. Como tudo aquilo que é invulnerável, o ego-autocentrismo tem
+ seu ponto vulnerável, não no calcanhar, mas na cabeça, ou melhor dizendo, na
+ computação. O ponto forte de todo o ser computante, que é extrair informação
+ do seu universo, é também o seu ponto fraco: a possibilidade de erro. A
+ computação pode enganar-se nos seus cálculos, ou tratar uma informação
+ enganadora. Assim, todo o indivíduo pode tornar-se o instrumento da sua própria
+ perda enquanto julga trabalhar para a sua salvação.
+
+ O ser computante pode até ser despossuído do seu próprio ego-autocentrismo,
+ como no caso da célula parasitada por um vírus, o qual, fazendo-a executar o
+ seu programa de reprodução, a faz agir para a sua própria destruição e para a
+ multiplicação do seu assassino. Os humanos tornaram-se mestres na sujeição dos
+ animais que, embora conservem a autonomia cerebral, isto é, o
+ ego-autocentrismo, estão de fato subjugados às finalidades dos subjugadores e
+ sobretudo tornaram-se mestres na sujeição do homem pelo homem, como já
+ indicamos.
+
+ -- 197, 198
+
+## A discriminação cognitiva de "si"
+
+ "Se algum organismo não se conhece a si próprio, como pode detectar a
+ presença de alguma coisa estranha?" (Vaz e Varela, 1978)
+
+ -- 181
+
+Ou, analogamente, se um organismo parasse de se reconhecer, seu sistema imunológico
+poderia atacar a si mesmo.
+
+## Computo ergo sum
+
+* Computação, "com-puter": examinar, avaliar, estimar supor ("puter") em cojunto, ligando ou confrontando aquilo que está separado, separando ou dissociando aquilo que está ligado ("com") (183).
+* Autos: idem e ipse (196).
+* Princípio de exclusão: identificação do si e do não-si.
+* Vida: auto-computante: computa a si mesma.
+* Si: referência corporal objetiva (213), corporalidade (214).
+* Eu: auto-referência subjetiva do ser vivo (190), afirmação egocêntrica (213).
+* Mim: auto-referência objetiva do ser vivo (190), referência objetiva do eu e referência subjetiva do si (213).
+
+Trechos:
+
+ O cogito começa a aparece como um anel espiral.
+
+ -- 202
+
+ Ora, evidentemente, as demonstrações "idealistas" que desprendem o sujeito da
+ órbita física e do mundo das coisas não são de modo algum comprobatórias. Em
+ geral, o cogito é insuficiente como prova científica ou lógica para dizer
+ alguma coisa sobre a natureza material ou imaterial do mim, sobre a sua
+ realidade transcendental ou fenomênica. Toda a busca de prova, deste domínio,
+ necessita da comunicação do cogitante com o universo exterior e da
+ intercomunicação dos cogitantes entre eles. Ora, o cogito funda-se
+ exclusivamente na autocomunicação do sujeito consigo mesmo e a sua validade
+ concerne, exclusivamente, a qualidade de sujeito. E é precisamente esse caráter
+ de autocomunicação que, embora constitua o seu limite, constitui a riqueza do
+ cogito, pensamento recorrente em ação, gerando e regenerando o seu próprio
+ começo, a sua própria origem, produzindo nesse mesmo processo sua unidade
+ complexa e as suas qualidades emergentes, que são aqui as qualidades próprias
+ do sujeito consciente.
+
+ --- 204, 205
+
+ O computo não "pensa" de modo ideal, isto é, isolável. "Pensa" (computa) de
+ modo organizacional. O computo concerne o "eu sou", não no plano da consciência
+ ou da representação, mas no plano da produção/geração/organização. Não existe
+ certamente constituição de sujeito consciente ao nível da "Escherichia coli".
+ Mas, talvez, constituição do sujeito puro e simples no e pelo "computo".
+
+ -- 207
+
+ Como Piaget indicou, freqüentemente a organização do conhecimento humano
+ constitui um desenvolvimento original da organização biológica e, por
+ conseguinte, "existem funções gerais comuns aos mecanismos orgânicos e
+ cognitivos" (Piaget, 1967, p. 206). Neste sentido, "o funcionamento cerebral
+ exprime ou prolonga formas muito gerais e não particulares de organização
+ (biológica)" (Piaget, 1967, p. 545). Podemos pois dizer que, "numa certa
+ profundidade, a organização vital e a organização mental constituem apenas uma
+ única e mesma coissa" (Piaget, 1968, p. 467). Podemos portanto ir ainda mais
+ longe e considerar que todo o ato de organização viva comporta uma dimensão
+ cognitiva.
+
+ [...]
+
+ Assinalar um fenômeno de conhecimento no ser celular aparece decerto como uma
+ verdadeira projeção retrospectiva do indiferenciado. Mas esta projeção pode
+ justificar sua necessidade: seria absurdo negar a atividade cognitiva num ser
+ que apresenta suas condições (aparelho computante) e os seus resultados
+ (distinção do si/não-si, extração de informações do universo exterior, etc.). A
+ idéia de que a auto-organização viva comporta uma dimensão cognitiva dá sentido
+ e coerência ao conjunto dos dados relativos à organização celular. Mas, ao
+ mesmo tempo, traz um aparente não-sentido à idéia de conhecimento, uma vez que
+ trata de um conhecimento que não se conhece a si mesmo. Schelling dizia: "A
+ vida é um saber que ignora a si mesmo...".
+
+ -- 207, 208
+
+ A partir daí, o paradoxo do conhecimento que não se conhece agrava-se: como
+ pode haver autoconhecimento para um conhecimento que não se conhece?
+
+ [...]
+
+ Estaríamos inteiramente desarmados diante do problema do autoconhecimento se
+ não tivéssemos já reconhecido a auto-referência no âmago de todos os processos
+ celulares e de informação (portanto de autoinformação), de comunicação
+ (portanto de autocomunicação), de computação (portanto de autocomputação).
+ Significa, ao mesmo tempo, que o circuito auto-referente de si a si faz
+ regressar o computado ao computador; sendo o computado também o computador, o
+ computado-computador regressa à computação do computador. Trata-se de um
+ circuito autocognitivo no qual o computador está apto não só para computar-se
+ na parte por intermédio do todo, no todo por intermédio das partes, mas também
+ para objetivar-se como computado (si, mim) e ressubjetivar-se como computador
+ (eu).
+
+ -- 209
+
+ Devemos também supor que esses termos [...] são como que instâncias
+ referenciais que fazem circular a reflexão de um ponto de vista a outro, cada
+ uma das quais permite ao sujeito reconhecer ou afirmar um dos seus rostos.
+
+ -- 213
+
+ Já vimos aquilo que separa uma computação cerebral que só gera representações e
+ uma computação celular que gera a vida. O computo celular produz o ser objetivo
+ e, ao mesmo tempo, a modalidade subjetiva do ser. É o operador do circuito no
+ qual, simultaneamente, o ser e a modalidade subjetiva do ser se geram e se
+ regeneram, permanentemente.
+
+ -- 214
+
+ Temos que entender radical, fundamental, plenamente: computo ergo sum. Computo
+ não significa "tenho um computador na minha máquina". Não significa apenas "sou
+ um ser computante". Significa "eu computo, logo eu sou".
+
+ -- 216
+
+## Existencialismo
+
+Turnover molecular, turbilhão computante (221, dentre outras).
+Jogo, erro e morte (217), a tragédia básica da existência e a solidão comunicante (218):
+
+ Assim, a autou-afirmação individual do indivíduo-sujeito é a de um ator que
+ joga o jogo de viver para ganhar a vida. A noção de ator é existencial no
+ sentido em que o ator se joga a si mesmo -- joga a sua vida -- na busca, no
+ esforço, no perigo no seio do "teatro" natural que é o seu ambiente. A condição
+ existencial do jogo marca toda a vida: é a natureza sempre renascente e a luta
+ sempre renascente contra a incerteza.
+
+ O ator vivo mais modesto dispõe, para jogar o seu jogo, do seu capital de
+ informações hereditárias e do computo egocêntrico que lhe permite transformar a
+ informação em programa, extrair informações do mundo exterior, agir em função
+ da situação. mas o computo comporta a sua brecha de incerteza: o risco de erro.
+ Toda a existência viva traz consigo o risco permanente de error (no
+ funcionamento auto-organizador, na percepção do mundo exterior, na escolha ou
+ na decisão, na estratégia do comportamento) e todo o risco de erro traz consigo
+ o risco e morte.
+
+ [...]
+
+ Como vimos, a morte não é o inimigo mortal da vida (porque, sem deixar de ser
+ desintegrante, está integrada nas transformações e regenerações da vida). Mas é
+ inimiga mortal do indivíduo-sujeito.
+
+ -- 217
+
+ Toda a existência que joga é, simultaneamente, jogada e joguete. [...] O
+ estatuto do objetivo é incerto, improvável, aleatório, perecível, mas este
+ indivíduo, por improvável e pouco necessária que seja a sua vinda ao mundo, por
+ inexoravelmente mortal que ele seja, torna-se, logo que nasce e se forma, um
+ ser absolutamente necessário "para si" e tende a viver a todo custo,
+ indefinidamente. Aí reside a tragédia da existência viva. O indivíduo é um
+ quantum de existência, efêmero, descontínuo, pontual, um "ser-lançado-no-mundo"
+ entre ex nihilo (nascimento) e in nihilo (morte) e é ao mesmo tempo um sujeito
+ que se autotranscende acima do mundo. Para ele, é o centro do universo. Para o
+ universo, não passa de um vestígio corpuscular, um estremecimento de onda. Para
+ ele é sujeito, para o universo é objeto. É a sua própria necessidade, embora
+ tenha nascido por acaso, viva no acaso e morra no acaso. Nasceu no meio de
+ milhões de sementes inutilizadas, dilapidadas, volatilizadas, formou-se num
+ mistério de agregação, de epigenetização, de animação, que, do nada, produziu
+ este instante periférico que se julga o umbigo do mundo.
+
+ [...]
+
+ O ser vivo, por constituição, está destinado à solidão existencial. Produz e
+ mantém a sua membrana-fronteira. Opera a cisão ontológica entre si e não-si. A
+ sua computação está numa câmara escura, e as informações que extrai são
+ traduções.
+
+ [...]
+
+ A solidão, a separação, a incerteza constituem as condições prévias e
+ necessárias da comunicação. Só os solitários podem e devem comunicar.
+
+ -- 218
+
+ O computo tem o papel vital e fundamental de traduzir acontecimentos em
+ informações a computar por e para si. A partir daí, surge um problema que se
+ tornará permanente e agudo na existência animal: como evitar o erro, como
+ induzir em erro o adversário, o inimigo?
+
+ [...]
+
+ Como veremos cada vez mais claramente, a afetividade é a consequência, não a
+ origem, da existência subjetiva.
+
+ [...]
+
+ A relação entre recepção de estímulos exteriores (a bactéria dispõe de
+ químico-receptores) e o computo abre a porta à sensibilidade. A partir daí,
+ tudo aquilo que acontece de nefasto ou benéfico é não só computado como "bom"
+ ou "mau" (para si), mas também pode ser sentido como irritante ou apaziguante.
+ As sensibilidades e irritabilidades progridem com o desenvolvimento dos
+ receptores sensoriais e das redes nervosas.
+
+ -- 219
+
+## O Sujeito
+
+Sujeito (220):
+
+* Esqueleto lógico-organizacional e carne ontológico-existencial.
+* Lógico: auto-referência, distribuidor de valores.
+* Organizacional: conceito inerente e necessário à auto-(geno-feno-eco)-organização.
+* Ontológico: sua afirmação individual egocêntrica é inerente e necessária à definição do ser vivo.
+* Existencial: cada um dos seus traços constitutivos comporta uma dimensão existencial.
+
+Trechos:
+
+ O sujeito, repito, não é uma substância, uma essência, uma forma.
+ É uma qualidade de ser [...]
+
+ --- 221
+
+ Assim, podemos ver que a qualidade de sujeito não é um epifenômeno ou uma
+ superestrutura da individualidade viva, mas uma infra-estrutura que permite
+ inscrever muito profundamente o indivíduo e o genos um no outro. Com efeito,
+ não é apenas a mensagem genética que é necessária à constituição do sujeito.
+ É a estrutura reprodutora que é indispensável à estrutura do sujeito, ao menos
+ na esfera originárias e fundamental do unicelular. Reciprocamente, não é
+ apenas a existência de um indivíduo que é necessária à reprodução genética.
+ É a estrutura primeira do sujeito que é indispensável à estrutura reprodutora
+ primeira.
+
+ --- 223
+
+ Marx dizia que a chave da autonomia do macado reside na autonomia do homem.
+ Entendia com isso que o desenvolvimento, no homem, de qualidades potenciais
+ ou embrionárias no macaco, permitia perceber aquilo que seria invisível
+ se tivéssemos considerado o macaco isoladamente da evolução pela qual o
+ metamorfoseou em homem. Em outras palavras, o ulterior permite conceber o
+ anterior. Temos, pois, de prolongar a fórmula marxiana relativa ao macaco pela
+ proposição contrária mas complementar, e pela conjugação em anel destas duas
+ proposições [...] Em outras palavras, a chave de ambos está no movimento
+ e confrontação initerrupto produtor de hipóteses e de teorias.
+
+ -- 224
+
+## Comunicação, redes e o outro (alteridade)
+
+* Egoísmo e altruísmo, 232.
+
+Trechos:
+
+ A faculdade de computar o outro como alter ego/ego alter é sem dúvida
+ inseparável da faculdade de se computar a si "objetivamente" como um outro
+ si-mesmo (alter ego) e de identificar este alter ego com a sua própria
+ identidade subjetiva. [...] A comunicação entre congêneres exterioriza,
+ num outro semelhante a si, os processos internos de objetivação/subjetivação,
+ proteção/identificação. Constitui-se, entre os dois parceiros, de modo
+ recíproco, um circuito de proteção (de si sobre o outro) e de identificação
+ (do outro consigo).
+
+ -- 228
+
+ Assim, o anel que encerra o sujeito sobre si mesmo abre-lhe ao mesmo tempo a
+ possibilidade de comunicar-se com outrem.
+
+ -- 229
+
+## Estratégia e inteligência
+
+ Veremos cada vez melhor que as noções de arte, estratégia, inteligência,
+ bricolagem (estratégia organizadora de um novo objeto por conversão de antigos
+ objetos ou elementos da sua finalidade ou função) são intercomunicantes.
+
+ [...]
+
+ Quando programa tende a comandar, diminuir, suprimir as estratégias, a
+ obediência mecânica e míope torna-se modelo de comportamento. À escala humana,
+ a estratégia necessita de lucidez na elaboração e na conduta, jogo de
+ iniciativas e de responsabilidades, pleno emprego das competências individuais,
+ isto é, pleno emprego das qualidades do sujeito. Eis por que, entre
+ parênteses, o Método aqui procurado nunca será um programa, isto é, uma receita
+ preestabelecida, mas um convite e uma incitação à estratégia do pensamento.
+
+ -- 257
+
+## Liberdade
+
+* Definição, 258.
+* Suicídio, 259.
+
+## Sociedades: entidades de terceiro tipo
+
+ Não existe fronteira bem nítida entre as associações mais ou menos frouxas e as
+ sociedades rudimentares. Mas o que importa aqui é definir um fenômeno não na
+ sua fronteira incerta, mas na sua emergência própria. O fenômeno social emerge
+ quando as interações entre os indivíduos do segundo tipo produzem um todo
+ não-redutível aos indivíduos e que retroage sobre ele, isto é, quando se
+ constitui um sistema. Existe, portanto, sociedade quando as interações
+ comunicadoras/associativas constituem um todo organizado/organizador, que é
+ precisamente a sociedade, a qual, como toda a entidade de natureza sistêmica, é
+ dotada de qualidades emergentes e, com as suas qualidades, retroage enquanto
+ todo sobre os indivíduos, transformando-os em membros desta sociedade.
+
+ -- 264
+
+ O sistema social não é apenas um sistema: é uma organização que organiza
+ retroativamente a produção e a reprodução das interações que a produzem,
+ assegura a sua homeostasia através do turnover dos indivíduos que morrem e
+ nascem e, assim, continua a ser um ser-máquina autoprodutor e auto-organizador.
+
+ -- 265
+
+## Totalitarismo
+
+ Um novo e enorme poder de Estado tende a concentrar-se ao longo do século XX.
+
+ O Estado torna-se cada vez mais Estado-providência e Estado assistencial
+ (Welfare state). Num sentido, dedica-se cada vez mais à proteção e ao
+ bem-estar dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estende as suas competências a
+ todos os domínios das vidas individuais, doravante encerradas numa rede
+ polimórfica, simultaneamente casulo (protetor mas eventualmente infantilizante)
+ e armadilha. Assim, desenvolve-se um Estado, de certo não totalitário, mas
+ totalizante, isto é, englobando todas as dimensões da existência humana.
+
+ Os notáveis desenvolvimentos informáticos, de que hoje se discutem as
+ ambivalências (Nora, Minc, 1978), deixam entrever espantosas possibilidades de
+ desconcentração comunicacionais e de que beneficiariam os indivíduos. Mas, ao
+ mesmo tempo, a informática dá a um aparelho de Estado central a possibilidade
+ de agrupar e tratar todas as informações acerca de um indivíduo de modo muito
+ mais ramificado e preciso que o controle neurocerebral sobre as células dos
+ nossos organismos. A partir daí, um código policial/tecnológico (munido de
+ dispositivos de detecção e de escuta em todos os terrenos) pode doravante
+ exercer-se sobre o desvio, anomalia, originalidade. A isto é necessário
+ acrescentar já as futuras ações bioquímicas sobre o espírito ----- cérebro
+
+ humano, que permitirão estabelecer uma normalização generalizada de todo o
+ desvio. Doravante, o Estado encontra-se dotado de poderes que, virtualmente,
+ excedem todos os poderes de controle e de intervenção jamais concentrados.
+
+ Aqui mesmo, temos de inscrever o processo aparentemente marginal,
+ sociologicamente menor, que já constatei (Método I): o conhecimento científico
+ produz-se cada vez menos para ser pensado e meditado por espíritos humanos, mas
+ cada vez mais acumulado para a computação dos seus computadores, isto é, para a
+ utilização das entidades superindividuais, em primeiro lugar a entidade
+ supercompetente e onipresente: o Estado. Ao mesmo tempo e correlativamente,
+ essa ciência cega-nos: o resto do nosso mundo, da nossa sociedade, do nosso
+ destino é despedaçado por um conhecimento científico que, atualmente, ainda é
+ incapaz de pensar o indivíduo, incapaz de conceber a noção de sujeito, incapaz
+ de pensar a natureza da sociedade, incapaz de elaborar um pensamento que não
+ seja unicamente matematizado, formalizado, simplificador, mas, ao contrário,
+ muito capaz de fornecer aos poderes novas técnicas de controle, de manipulação,
+ de opressão, de terror, de destruição.
+
+ Ao aproximarmo-nos, pois, do momento em que podemos considerar que todos estes
+ processos conjuntos poderiam permitir ao ser do terceiro tipo realizar-se em
+ onipotência, não só sujeitando-nos e manipulando-nos, mas também
+ infantilizando-nos, irresponsabilizando-nos e despossuindo-nos da aspiração ao
+ conhecimento e do direito ao juízo.
+
+ Tal hipótese não é brincadeira intelectual, pois o Estado dedicado a essa
+ realização surgiu no século XX: o Estado totalitário. Instala-se, sob diversas
+ variantes, em todos os continentes, em todas as civilizações, em todas as
+ sociedades, sob o impulso, o controle, a apropriação de um aparelho soberano: o
+ partido detentor de todas as competências, possuidor de verdade sobre o homem,
+ a história, a natureza.
+
+ A partir daí, bastaria que este Estado totalitário concentrasse e utilizasse de
+ modo sistemático todas as formas de dominação/controle, não só burocráticas,
+ policiais, militares, mitológicas, políticas, mas também científicas, técnicas,
+ informáticas, bioquímicas, para que se pudesse operar uma sujeição das classes,
+ grupos, indivíduos, já não apenas generalizada mas irreversível; regressões dos
+ direitos individuais já não são apenas generalizadas mas irreversíveis.
+ Podemos, certamente, esperar que nossos totalitarismos contemporâneos sejam os
+ monstros provisórios nascidos das agonias e gestações deste século. Mas podemos
+ recear também que estes monstros se tornem duradouros na e pela
+ sujeição/controle estrutural dos indivíduos do segundo tipo e, por isso,
+ constituam os artesãos de um desenvolvimento decisivo do ser do terceiro tipo.
+
+ -- 281, 282
+
+## Autos
+
+ Autos significa "o mesmo": não identidade consigo mesmo fundada numa
+ invariância estáica, não identidade de dois termos distintos e semelhantes, mas
+ unidade de um anel que, girando incessantemente do mesmo ao si mesmo, produz e
+ reproduz o mesmo.
+
+ O autos pertence à raça dos anéis turbilhonares. Um ciclo genérico de
+ reproduções faz suceder os vivos aos vivos. Um turnover fenomênico faz suceder
+ as moléculas às moléculas, as células às células (se policelular), os
+ indivíduos aos indivíduos (sociedade). Assim como um turbilhão desenha uma
+ figura estável no seio do fluxo, igualmente, e ainda mais, o dinamismo
+ turbilhonar do autos produz, a partir de uma inscrição genética invariante,
+ formas corporais aparentemente estáticas (células, organismos, sociedades) e
+ aparece desenhar no tempo um esquema ou pattern fixo. Aqui reencontramos o
+ vínculo pseudo-antinômico entre o movimento irreversível e o estado
+ estacionário, dinamismo e a estabilidade, já bem elucidado (O Método !).
+
+ -- 287
+
+ O princípio de integração próprio de autos é, portanto, um princípio
+ polianelante complexo que permite construir, simultaneamente, vários graus de
+ auto-organização, de individualidade, de ser, de existência. Uma propriedade
+ notável destas integrações mútuas é que as relações de pertença não anulam as
+ relações de exclusão: cada ser permanece, no seu grau, um indivíduo-sujeito
+ egocêntrico, embora "pertença" a um mega-ser, ele mesmo egocêntrico, de que é
+ uma parte ínfima e enferma.
+
+ De onde as consequências perturbadoras para a ontologia tradicional: embora os
+ seres-sujeitos se excluam uns aos outros do seu lugar egocêntrico, podem,
+ contudo, constituir vários seres em um, um ser em vários e, ao mesmo tempo,
+ fragmentos de mega-seres.
+
+ -- 290
+
+## Hierarquia e especialização
+
+* Problemas e vulnerabilidades da estrutura em rede centralista/hierárquica/especializada: 359.
+
+Trechos:
+
+ A hierarquia constitui uma estrutura de sujeição, na qual os seres celulares
+ estão sujeitos aos indivíduos policelulares, sujeitos Pas sociedades de que
+ fazem parte. Os seres sujeitados continuam sujeitos, mas na ignorância (e, no
+ caso dos humanos, na inconsciência), trabalham para os fins dos sujeitos que os
+ sujeitam.
+
+ Mesmo quando há arquitetura de emergências, a organização hierárquica comporta
+ uma certa alienação do sujeito (que trabalha para os outros trabalhando para si)
+ e uma virtualidade de subjugação e de exploração (remeto para as definições
+ dadas na primeira parte). É, efetivamente, a partir do controle e da dominação:
+ do baixo pelo alto, da parte pelo todo, do micro pelo macro, dos executantes
+ pelos componentes, dos informados pelos informantes, que se estabelecem as
+ relações de exploração infra-organizacional. E de fato, as "altas" formas
+ globais (do organismo, da sociedade) mantêm-se e perduram no e pelo turnover
+ das "baixas" formas, ou seja, vivem de mortes/renascimentos initerruptos dos
+ indivíduos celulares, verdadeiro fluxo regenerador que mantém a permanência,
+ a estabilidade, a sobrevivência do indivíduo sujeitante.
+
+ -- 350-351
+
+ A organização recorrente relativiza a noção de hierarquia, uma vez que a
+ hierarquia depende, na sua própria existência, daquilo que depende dela.
+ Temos de ir mais longe e reconhecer que, em toda a organização viva, a
+ organização hierárquica precisa de organização não-hierárquica.
+
+ [...]
+
+ A anarquia não é a não-organização, é a organização que se efetua a partir
+ das associações-interações sinérgicas entre seres computantes, sem que,
+ para tal, haja necessidade de comando ou controle emanando dum nível
+ superior. É assim que se constituem as eco-organizações. Ora esta anarquia
+ sem controle superior constitui um todo que estabelece seu controle superior.
+
+ -- 352
+
+ Enfim, o parasitismo desenvolve-se no seio das organizações
+ cêntricas/hierárquicas/especializadas do nosso universo antropossocial. Com
+ efeito, o indivíduo ou a casta que detêm o poder de Estado podem saciar sem
+ freios (não sendo controlados pela regra que controlam) os seus apetites
+ egocêntricos e parasitar o conjunto do corpo social, assumindo mais ou menos
+ corretamente as suas funções de interesse geral.
+
+ -- 359
+
+ Toda a concepção ideal de uma organização que seria apenas ordem,
+ funcionalidade, harmonia, coerência é um sonho demente de ideólogo ou/e de
+ tecnocrata. A irracionalidade que elminaria a desordem, a incerteza, o erro não
+ é senão a irracionalidade que eliminaria a vida.
+
+ -- 365
+
+ Parece que toda a passagem de um micronível de organização a um macroniível,
+ como do unicelular ao ser policelular, da sociedade arcaica de algumas centenas
+ de membros à sociedade histórica de milhões de indivíduos, a complexidade da
+ nova macroorganização é menor do que a da microorganização que intefra ou
+ desintegra. Assim, os primeiros organismos policelulares, de estrutura
+ demasiado frouxa ou demasiado rígida, não puderam elevar-se até o nível de
+ complexidade organizacional da célula, e foram necessários unúmeros
+ desenvolvimentos evolutivos (desenvolvimentos de órgãos e aparelhos internos,
+ entre os quais o aparelho neurocerebral, o aparelho sexual, etc.) para que
+ organismos superiores atinjam novos níveis de complexidade.
+
+ [...]
+
+ Talvez -- talvez? -- toda mudança de escala, todo salto em direção a um
+ metassistema mais amplo deva apagar-se, num primeiro estádio, com uma pobreza
+ organizacional, misto de ordem rígida e de desordem destruidora, antes de
+ aparecerem as estruturas e emergências novas? E, neste sendido, estamos na era
+ de gênese uraniana de uma organização social que ainda não encontrou a
+ hipercomplexidade que torna possível a evolução cerebral pelo Homo sapiens (cf.
+ Morin, 1973, p. 206-209).
+
+ Com efeito, parece possível conceber um progresso organizacional baseado na
+ regressão das especializações, das hierarquias, da centralização -- de onde a
+ regressão correlativa das subjugações/sujeições --, no desenvolvimento das
+ comunicações e confraternizações, no pleno emprego das qualidades estratégicas,
+ inventivas, criativas, ainda totalmente inibidas ou por desbastar na nossa
+ sociedade.
+
+ -- 368-369
+
+## Bios
+
+* Ser vivo gerador de acaso; liberdade, criatividade e eventualidade, 409.
+* Autopoiese, 417.
+
+Trechos:
+
+ Vimos que, para lá de um certo número de interações e de indeterdependências,
+ para lá de um certo grau de complicação, se torna impossível calcular e
+ conhecer os processos de um fenômeno. Niels Bohr formulara-o à sua maneira:
+ "É impossível efetuar medidas físicas e químicas completas sobre um
+ organismo sem matá-lo".
+
+ -- 421
+
+## Complexidade, lógica e contradição
+
+* Simples, simplicidade, simplificação na ciência, 432.
+
+Trechos:
+
+ O pensamento complexo, animado pela dupla exigência de completude (não a
+ "totalidade", mas a não-mutilação) e de coesão, conduz num determinado momento
+ a uma brecha lógica: a contradição. Será necessário que um diktat lógico
+ exterior e abstrato condene a exigência de lógica interior que conduziu à
+ contradição? Não será antes necessário imaginar que o surgimento da contradição
+ opera a abertura súbita de uma cratera no discurso sob o impulso das camadas
+ profundas do real?
+
+ -- 425
+
+ A lógica aristotélica corresponde à igualdade estática imediata das "coisas",
+ objetos sólidos como pedra ou mesa, recortados ou isolados no tempo e no
+ ambiente. O princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade
+ concernem sistemas "fechados", que definimos não só sem referência ao seu
+ ambiente, mas também sem ter em conta o segundo princípio da termodinâmica, que
+ constitui um princípio de transformação interna dos sistemas fechados. Assim,
+ logo que se trata de sistema aberto, e singularmente de vida, "o princípio do
+ terceiro excluído de identidade define um ser empobrecido, separado entre meio
+ e indivíduo" (Simondon, 1964, p.17).
+
+ Embora insuficientes para caracterizar as entidades complexas, esta lógica
+ permite-nos arrancar os seres ou objetos à confusão, identificá-los num
+ primeiro grau, e é necessária às operações seqüenciais do raciocínio
+ complexo. Repetimos: não só o raciocínio complexo deve ser coerente mas é a
+ sua própria coerência que conduz às contradições.
+
+ Quando o pensamento simplificador encontra uma contradição que não pode ser
+ superada, volta atrás exclamando "erro'. O pensamento complexo aceita o
+ desafio das contradições. Não poderia ser, como a dialética, a "superação"
+ (Aufhebung) das contradições. É a sua desocultação, a sua evidenciação,
+ e recorre ao corpo-a-corpo com a contradição.
+
+ [segue uma bela descrição sobre o surgimento de uma contradição]
+
+ Daí em diante importa inverter o modo de pensamento simplificador que,
+ postulando a adequação absoluta entre a lógica e o real, opera de fato
+ a redução "idealista" do real à lógica. Temos de reconhecer que real
+ e lógico não se identificam totalmente.
+
+ [...]
+
+ Para o conhecimento complexo, a contradição não é somente o sinal de um absurdo
+ de pensamento. Pode tornar-se o detector de camadas profundas do real.
+ Constitui então já não o detector do erro e do falso mas o indício e o anúncio
+ do verdadeiro.
+
+ [prossegue com uma bela fala sobre a lógica ilógica do vivo e o enriquecimento
+ do princípio de incerteza]
+
+ [...]
+
+ O pensamento não serve à lógica: serve-se dela. O problema é: como servir-se?
+
+ -- 427-429
+
+## Complexidade e simplicidade
+
+* Robotização do ser vivo pelo pensamento simplificador, 434.
+* Marxismo, sistemismo e simplificação, 435.
+
+Trechos:
+
+ A complexidade é a união da simplificação e da complexidade.
+
+ [...]
+
+ O pensamento complexo deve lutar contra a simplificação, utilizando-a
+ necessariamente. Existe sempre um duplo jogo no conhecimento complexo:
+ simplificar ----> complexificar. No duplo jogo, o complexo volta
+ \ /
+ ---------<--------´
+
+ incessantemente como pressão da complexidade real e consciência da
+ insuficiência dos nossos meios intelectuais diante do real (por isso,
+ o pensamento complexo é o pensamento modesto que se inclina diante
+ do impensável).
+
+ -- 432-433
+
+ O esforço da complexidade é aleatório e difícil. [...] É porque
+ integra aquilo que desintegra o pensamento que ela vive [a estratégia
+ do pensamento complexo], como tudo quanto é vivo, à temperatura da
+ sua própria destruição. [isto é citado novamente na página 438]
+
+ [...]
+
+ A complexidade é um termo-chave. Mas não é uma palavra dominante.
+
+ -- 435
+
+## Viver
+
+* Simmel, 440.
+* Simondon, 441.
+* Von Neumann, jogo, 446.
+* Organ, fervilhar ardentemente, 465.
+
+Trechos:
+
+ O ser que nasce não pediu para viver, mas logo que nasce, só pede para viver.
+ Nenhum vivo quis viver, no entanto, todo o vivo quer viver.
+
+ -- 438
+
+ A definição de Bichat: "A vida é o conjunto das funções que resistem à morte."
+
+ [...]
+
+ Atlan formula o princípio complementar e antagônico do princípio de Bichat:
+ "A vida é o conjunto das funções capazes de utilizar a morte"
+ (Atlan, 1979, p. 278)
+
+ -- 439-440
+
+ Ninguém nasce só. Ninguém está só no mundo, no entanto cada um está só
+ no mundo.
+
+ -- 442
+
+ Os destinos são diferentes, desiguais, incomensuráveis, que seria absurdo
+ hierquizá-lo (sic). Mas certamente existem vidas infernais: parasitas,
+ subjugadas, subdesenvolvidas, atrofiadas...
+
+ -- 443
+
+## Manipulação da vida
+
+ A ação do homem sobre a vida começou desde a pré-história por domesticação,
+ sujeição, subjugação, e prosseguiu como manipulação através de hibridações
+ e cruzamentos. A manipulação alcança hoje o santuário dos genes.
+
+ [...]
+
+ Por um lado, há um ganho potencial de complexidade por elevação da produção
+ industrial do nível do artefato ao da organização viva. Existe redução
+ potencial do ser vivo ao estatuto do artefato e praticamente transformação
+ dos seres vivos em máquinas artificiais (já a criação industrial dos
+ porcinos e bovinos os transforma em puras e simples máquinas de fazer carne).
+
+ Assim, a progressão do industrial tornado vivo corre o risco de ser uma
+ regressão da vida, que vai se tornando industrial, tornando-se a
+ bioindústria o prolongamento tecnossociológico da manipulação experimental
+ que trata os seres celulares e pluricelulares como agrupamentos de
+ peças soltas.
+
+ Mais profunda e amplamente, está aberta a porta para a manipulação ilimitada
+ sobre a vida. Encontramo-nos no momento de uma tomada de poder decisiva.
+ Podemos imaginar, como me indica Gaston Richard, que os microorganismos
+ podem efetuar todas as operações naturais necessárias à nossa vida, inclusive
+ a fotossíntese, tornando assim obsoletas a nossa preocupação de preservar
+ ecossistemas: de onde a possibilidade de liquidação geral de todas as
+ espécies vegetais ou animais, deixando frente a frente, no Planeta Terra,
+ o homo e a Escherichia coli.
+
+ [...]
+
+ O novo poder sobre a vida será tão fundamentalmente controlador e tão
+ fundamentalmente incontrolador quanto foi a tomada de poder sobre a energia
+ atômica há quarenta anos. E concerne, mais íntima e fundamentalmente ainda, o
+ poder sobre o homem.
+
+ -- 469-470
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+## Geral
+
+* Arqui-racionalidade, 59.
+* Simplificar <-> complexificar, 72-73.
+* Techne, 196.
+* Gênio, 204.
+* Tomada de consciência, 212.
+* Auto-análise, 216 (mas não só nessa página).
+* Idealismo: tomar a idéia pelo real, 248.
+* Racionalização: encerrar o real num sistema coerente, 248.
+* Auto-engano (self-deception), 249.
+
+## Paradoxo essencial do cérebro-espírito
+
+ O que é um espírito que pode conceber o cérebro que o produz, e o que é um
+ cérebro que pode produzir um espírito que o concebe?
+
+ -- 84
+
+## Princípio hologramático, holográfico
+
+ Daí a riqueza das organizações hologramáticas:
+
+ a) as partes podem ser singulares ou originais, embora dispondo de aspectos
+ gerais e genéricos da organização do todo;
+
+ b) as partes podem ser dotadas de autonomia relativa;
+
+ c) podem estabelecer comunicações entre elas e realizar trocas organizadoras;
+
+ d) podem ser eventualmente capazes de regenerar o todo;
+
+ No universo vivo, o princípio hologramático é o princípio essencial das
+ organizações policelulares, vegetais e animais; cada célula permanece singular,
+ justamente porque, controlada pela organização do todo (ela mesma produzida
+ pelas interações entre células), uma pequena parte da informação genética nela
+ contida se exprime; mas ela permanece ao mesmo tempo portadora das
+ virtualidades do todo, o que poderia, eventualmente, atualizar-se a partir
+ delas; assim, seria possível reproduzir por clonagem o ser inteiro a partir de
+ uma célula mesmo extremamente especializada ou periférica do organismo.
+
+ -- 115
+
+## Concepção: dialógica da analógica <-> lógica (digital)
+
+ As analogias organizadoras permitem a formação de homologias que suscitam
+ princípios organizadores. O raciocínio por analogia faz logo parte do caminho
+ que leva à modelização e à formalização, mas sob a condição de obedecer à
+ dialógica do analógico, do lógico e do empírico, ou seja, ao controle da
+ verificação dedutiva e da verificação empírica. Assim, constitui-se uma onte do
+ concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto através da qual se tece e se
+ cria a __concepção__, insto é, um novo modo de organizar a experiência e de
+ imaginar o possível. Em consequência, reencontramos, no próprio procedimento
+ científico, mas de explícito, razoável e consciente, os métodos de
+ conhecimentos por isomorfismo, homeomorfismo e homologia que o aparelho
+ cognitivo utiliza espontânea e inconscientemente no conhecimento perceptivo e
+ discursivo.
+
+ -- 157
+
+ A analogica é iniciadora, inovadora (Peirce indicou que a inovação jorra quase
+ sempre da analogia), inclusive na invenção científica. Alimenta uma ligação
+ entre concreto e abstrato (via isomorfismos, tipologias, homologias) e entre
+ imaginário e real (via metáfora). Essas pontes, como já indicamos, estimulam
+ e provocam a __concepção__, isto é, a formação de novos modos de organização
+ do conhecimento e do pensamento.
+
+ -- 158
+
+## Inteligência artificial
+
+ No estádio evolutivo atual, o conhecimento por computador continua um apêndice
+ operacional do conhecimento humano; ainda não se trata do primeiro modelo de
+ um conhecimento sobre-humano. Não é proibido imaginar, para o futuro, máquinas
+ cognoscentes, artificiais no começo, e depois auto-organizativas e dotadas
+ de individualidade. Mas elas se tornariam então novos seres-sujeito que gozariam
+ e sofreriam com os seus conhecimentos, produziriam, talvez, os seus próprios
+ mitos e poderiam então manipular as coisas ou mesmo os seres humanos.
+
+ -- 226
+
+## Limites do conhecimento
+
+ O problema da caverna permanece. O problema da câmara fechada continua. Mas
+ sabemos doravante que a caverna nos permite ver sob a forma de sombras o que,
+ fora, nos cegaria; a câmara fechada, onde o cérebro permanece encerrado,
+ permite ao espírito abrir-se ao mundo sem se aniquilar.
+
+ -- 240
+
+ Nessas condições, somos aparentemente conduzidos à definição tradicional da
+ verdade: a adequação do espírito à coisa. Mas é preciso complexificar:
+ como a coisa é co-elaborada pelo aparelho cognitivo, vale mais conceber o
+ conhecimento como adequação de uma organização cognitiva (representação,
+ idéia, enunciado, discurso, teoria) a uma situação ou organização fenomenal.
+
+ Tal adequaçã não é evidentemente a de um "reflexo", mas o fruto de uma
+ reprodução mental. Tal reprodução não constitui a cópia, mas a _simulação_,
+ nos modos analógicos/homológicos, dos objeto, situações, fenômenos,
+ comportamentos, organizações.
+
+ Assim, a representação e a teoria podem ser consideradas, cada uma do seu
+ jeito, como uma reconstituição simuladora, uma concreta/singular, a outra
+ abstrata/generalizante.
+
+ [...]
+
+ Em nenhum caso, o conhecimento esgotaria o fenômeno a ser conhecido
+ e a verdade total, exaustiva ou radical é impossível. Toda pretensão
+ à totalidade ou ao fundamento resulta em não-verdade.
+
+ -- 244
+
+ Acrescente-se que a operacionalidade lógica, limitada aos enunciados
+ segmentados, encontra limite no aparecimento do nó complexo dos problemas e ao
+ atingir as camadas primordiais da realidade.
+
+ [...]
+
+ Acabamos pois além do realismo "ingênuo" e do realismo "crítico", além do
+ idealismo clássico e do criticismo kantiano, num _realismo relacional,
+ relativo e múltiplo_. A _relacionalidade_ vem da relatividade dos meios
+ de conhecimento e da relatividade da realidade cognoscível. A multiplicidade
+ diz respeito à multiplicidade dos níveis de realidade e, talvez, à
+ multiplicidade das realidades. Segundo esse realismo relativo, relacional
+ e múltiplo, o mundo fenomenal é real, mas relativamente real, e devemos mesmo
+ relativizar a nossa noção de realidade admitindo uma irrealidade interna
+ a ela. Esse realismo reconhece os limites do cognoscível e sabe que o
+ mistério do real não se esgota de forma alguma no conhecimento.
+
+ -- 245
+
+ Pensa por ti mesmo, e o método te ajudará.
+
+ -- 251
+
diff --git a/books/epistemology/metodo/4.md b/books/epistemology/metodo/4.md
new file mode 100644
index 0000000..df491ab
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/4.md
@@ -0,0 +1,164 @@
+[[!meta title="O Método - Volume IV"]]
+
+[[!toc levels=4]]
+
+## Geral
+
+* Cultura como um megacomputador, 20.
+* Pensamento e efervescência culturais na temperatura de sua própria destruição, 98.
+* Metanível, metalógica, 248.
+
+## Cultura
+
+ Assim, a cultura não é nem "superestrutura" nem "infra-estrutura", termos
+ impróprios em uma organização recursiva onde o que é produzido e gerado
+ torna-se produtor e gerador daquilo que o produz ou gera.
+
+ [...]
+
+ Se a cultura contém um saber coletivo acumulado em memória social, se é
+ portadora de princípios, modelos, esquemas de conhecimento, se gera uma visão
+ de mundo, se a linguagem e o mito são partes constitutivas da cultura, então a
+ _cultura não comporta somente uma dimensão cognitiva: é uma máquina cognitiva
+ cuja práxis é cognitiva_.
+
+ -- 19
+
+ Nesse sentido, poder-se-ia dizer metaforicamente que a cultura de uma sociedade
+ é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos os dados
+ cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas práticas,
+ éticas, políticas dessa sociedade.
+
+ -- 20
+
+## Efervescência cultural
+
+ Por um lado, o imprinting, a normalização, a invariância, a reprodução.
+ Mas, por outro lado, os enfraquecimentos locais do imprinting, as brechas na
+ normalização, o surgimento de desvios, a evolução dos conhecimentos, as modificações
+ nas estruturas de reprodução.
+
+ [...]
+
+ Para tratar desses problemas, é preciso, antes de tudo, perguntar quais são as
+ possibilidades de enfraquecimento dos três níveis deterministas do _imprinting_
+ cognitivo (paradigmas, doutrinas, estereótipos), bem como sobre as possibilidades
+ de falha ou atenuação da normalização.
+
+ Em nossa opinião, são os seguintes:
+
+ - a existência de vida cultural e intelectual dialógica;
+ - o "calor" cultural;
+ - a possibilidade de expressão de desvios.
+
+ -- 33
+
+## Conhecimento do conhecimento
+
+ Assim, desembocamos em uma situação cognitiva ao mesmo tempo emaranhada e
+ circular: cada instância (sociologia, ciência, epistemologia) necessita das
+ outras para conhecer-se e legitimar-se e o círculo que poderia então se
+ constituir entre essas instâncias, cada uma dependendo da outra e recorrendo à
+ outra, constituiria então o metaponto de vista ao qual cada uma tentaria
+ referir-se. Aqui, só estamos no começo da elaboração do _grande anel cujo
+ circuito produtivo constituiria "o conhecimento do conhecimento_, isto é, o
+ conjunto complexo e rotativo dos metapontos de vista sobre o conhecimento; mas,
+ desde já, o anel restrito esboçado aqui nos permite entrever "o grade anel"
+ epistemológico ("o anel dos anéis").
+
+ -- 115
+
+## O futuro do conhecimento
+
+ Além disso, podemos perguntar se, na aurora do novo milênio, o próprio destino do
+ conhecimento humano não estará sendo novamente posto em jogo.
+
+ Retomemos a metáfora do Grande Computador.
+
+ Há, nas sociedades modernas e democráticas, uma relação extremamente complexa e
+ recursiva entre o Grande Computador e os indivíduos; estes não estão apenas
+ submetidos ao conhecimento próprio à sua cultura, mas são também sujeitos
+ cognoscíveis, cuja consciência individual está dotada de uma competência de princípio
+ para examinar idéias, decidir sobre a verdade e julgar problemas éticos correspondentes.
+
+ Mas, alguma coisa está modificando-se no próprio modo das interações cognitivas que
+ tecem as relações sociais. O que chamamos de informática é, na realidade, a primeira
+ etapa, ainda bárbara e grosseira, de um sistema de computação/informação/comunicação
+ artificial que poderá revolucionar as relações do espírito com o cérebro, da sociedade
+ com os seus membros, do Estado com o indivíduo. Já se formam apêndices cerebrais artificiais,
+ coletivos ou pessoais (os computadores individuais) que dialogam com nossos espíritos,
+ comunicam-se uns com os outros e articulam-se cada vez mais no tecido social.
+ Estamos na aurora de um formidável desenvolvimento da cerebralidade artificial em redes e,
+ nesse sentido, estamos também no alvorecer de uma nova idade do conhecimento.
+
+ Os processos em curso são profundamente ambivalentes e as perspectivas de futuro, incertas.
+
+ Já vimos (na introdução de _La Méthode_ 1, p. 12-13) o problema do despojamento do direito
+ individual para integrar e refletir o conhecimento em proveito dos especialistas,
+ experts e bancos de dados.
+
+ Acrescentemos: os desenvolvimentos das redes neurocerebrais artificiais, com seus
+ desdobramentos previsíveis (novas gerações de computadores "neuronais" aptos eventualmente
+ a reorganizar as regras dos programas, extensão e generalização do tecido informático
+ poli-tele-conectado), realizam-se segundo duas vias divergentes:
+
+ - uma vai no sentido do desenvolvimento dos poderes individuais do conhecimento (poderes
+ operacionais, lógicos, heurísticos, acesso às fontes de dados, etc.) e das possibilidades
+ individuais de expressão, de transmissão, de diálogo;
+
+ - a outra vai no sentido do desenvolvimento dos poderes de controle dos indivíduos pelas
+ administrações e pelo Estado.
+
+ Ao mesmo tempo, o progresso no conhecimento bio-químico-físico do cérebro permitirá
+ a modificiação, via intervenções moleculares ou outras, dos processos mentais.
+
+ Daí, ainda uma ambivalência no desenvolvimento desses poderes:
+
+ - por um lado, o espírito individual poderia intervir no seu próprio cérebro para
+ modificar, enriquecer, exaltar os seus estados de consciência.
+
+ - por outro lado, um novo poder totalitário poderia subjugar, _via_ manipulações
+ neurocerebrais, incluindo a interpretação dos dados sensoriais, a provocação ou
+ inibição das emoções, a elaboração dos projetos para o futuro.
+
+ Assim, por um lado, o espírito poderia agir sobre o cérebro para desenvolver-se.
+ Por outro, a organização social poderia agir sobre o cérebro para controlar o
+ espírito. Por um lado, abrir-se-ia a possibilidade de dar vida aos "Mozart assassinados".
+ Por outro, afirmar-se-ia o reino do _Big Brother_.
+
+ -- 121-123
+
+## Noosfera
+
+Popper já havia dividido o universo humano em três mundos:
+
+ 1. O mundo das coisas materiais exteriores.
+ 2. O mundo das experiências vividas.
+ 3. O mundo constituído pelas coisas do espírito, produtos culturais, linguagens, noções,
+ teorias, inclusive os conhecimento objetivos. Trata-se, de fato, de uma _noosfera_,
+ conforme o termo forjardo Teilhard de Chardin nos anos 20. Popper denominou-o
+ o "mundo três".
+
+ [...]
+
+ Pierre Auger chegou à idéia não tanto de um "terceiro mundo", no sentido de Popper, mas
+ de um terceiro reino, no sentido biológico do termo. Esse novo reino é "constituído por
+ organismos bem definidos, as idéias, que se reproduzem por multiplicações idênticas
+ nos meios constituídos pelos cérebros humanos, graças às reservas de ordem aí disponíveis".
+ As idéias são dotadas de vida própria porque dispõem, como os vírus, em um meio (cultural/cerebral)
+ favorável, da capacidade de autonutrição e de auto-reprodução. Assim, os cérebros humanos
+ e, acrescentemos, as culturas formam os ecossistemas do mundo das idéias. Auger constata
+ muito bem que não apenas as idéias, mas também os mitos e os deuses, vivem uma vida própria
+ no terceiro reino.
+
+ -- 134-136
+
+ De minha parte, [...] convencido de que esse mundo certamente é um produto, mas um
+ produto recursivamente necessário à produção de seu próprio produtor antropossocial,
+ fui sensibilizado pela conepção de Auger/Monod que considerava a noosfera não mais como
+ um mundo abstrato de objetos ideias, mas como um mundo fervilhante de seres dispondo
+ de algumas das características essenciais dos seres biológicos; fui assim estimulado
+ a explorar o problema da autonomia relativa e da relação complexa (da simbiose à
+ exploração mútua) entre esses seres de espírito e os seres humanos.
+
+ -- 136-137
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new file mode 100644
index 0000000..ea0835e
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/5.md
@@ -0,0 +1,24 @@
+[[!meta title="O Método - Volume V"]]
+
+[[!toc levels=4]]
+
+## Geral
+
+* Tecnologia, 213.
+* Progresso e história linear, 217.
+* Contracorrentes de defesa contra a dominação, 231.
+* Convergência álter-globalização, 234.
+* Liberdades do espírito, 282.
+
+## Liberdade
+
+ Como, justamente, dizia Rivarol: "O mais difícil, num período conturbado não é
+ cumprir o dever, mas conhecê-lo". Que significa a liberdade quando a consciência
+ está turva e extraviada? A aventura da liberdade é um "jogo engraçado", um jogo
+ perigoso. Vemos aqui que a liberdade corre o mesmo risco que a verdade: o
+ risco do erro.
+
+ Evidente que é mais fácil, 30 anos depois, dissipada a confusão ver claro onde
+ tantos espíritos se perderam.
+
+ -- 277
diff --git a/books/epistemology/metodo/6.md b/books/epistemology/metodo/6.md
new file mode 100644
index 0000000..61a3ee4
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/6.md
@@ -0,0 +1,66 @@
+[[!meta title="O Método - Volume VI"]]
+
+[[!toc levels=4]]
+
+## Geral
+
+* Eugenia, eliminação de desviantes e dissidentes, 76.
+* Crises, novas soluções, soluções neuróticas e patológicas, 85.
+* Quadro da auto-ética, 93.
+* Definição de antropoética, 159.
+* Os nove mandamentos da antropoética, 163.
+* Bem viver, 171.
+* Metamorfose, 179.
+* "Tudo o que não regenera, degenera" (pág. 197 e ao longo do livro).
+
+## Amor
+
+ O amor é a expressão superior da ética. Segundo Tagore, "o amor verdadeiro exclui
+ a tirania, assim como a hierarquia".
+
+ -- 37
+
+## Compreensão
+
+ Trata-se de um erro intelectual reduzir um todo complexo a um único dos seus
+ elementos e esse erro se tornsa pior em ética do que em ciência. A redução
+ impede a compreensão do outro. Hegel sintetizou a redução na já citada frase
+ sobre o assassino. Reduzir a mentiroso aquele que não tem consciência de estar
+ mentindo para si mesmo significs inventar um culpado. Enclausurar para sempre
+ na culpabilidade aqeuele que cometeu um erro de julgamento político numa época
+ conturbada faz parte infelizmente da banalidade da incompreensão, que produzir
+ um consumo enorme de culpados. As disputas ideológicas e políticas
+ transformam-se em ódio e desprezo pelo outro por meio da redução e da
+ identificação de uma pessoa com idéias consideradas nocivas.
+
+ O importante é não reduzir o ser humano à sua ideologia nem às convicções
+ culturalmente nele gravadas. Assim, não se pode reduzir Aristóteles ou Platão,
+ ou tantos outros seres, de resto, sensíveis, ao fato de que aceitavam a
+ escravidão como coisa natural. Mas não se pode esquecer isso, o que nos ajuda a
+ compreender que mesmo nos mais belos espíritos existem manchas de desumanidade
+ e de incompreensão.
+
+ -- 114
+
+ Ora, não há hierarquia mas antes permutações rotativas entre as três instâncias
+ cerebrais, ou seja, razão/afetividade/pulsão. Conforme os indivíduos e os
+ momentos, há dominação de uma instância sobre as outras, o que indica não
+ apenas a fragilidade da racionalidade, mas também que a noção de
+ responsabilidade plena e lúcida só tem sentido para um ser controlado em
+ permanência pela sua inteligência racional.
+
+ Além disso, todo indivíduo tem em potencial uma multipersonalidade; a
+ duplicação da personalidade, no seu aspecto patológico extremo, só faz revelar
+ um fenômeno normal pelo qual nossa personalidade se cristaliza diferentemente
+ não apenas em função dos papéis sociais que desempenhamos, mas conforme a ira,
+ o ódio, a ternura, o amor, tudo o que nos leva realmente a passar de uma
+ personalidade para outra, modificando as relações entre razão, afetividade e
+ pulsão.
+
+ -- 114-115
+
+## A modéstia ética
+
+ Prega o abandono de todo sonho de controle (inclusive do seu controle).
+
+ -- 197
diff --git a/books/epistemology/metodo/tetragrama.dot b/books/epistemology/metodo/tetragrama.dot
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index 0000000..937e2ed
--- /dev/null
+++ b/books/epistemology/metodo/tetragrama.dot
@@ -0,0 +1,8 @@
+graph {
+ ordem -- desordem;
+ ordem -- organizacao;
+ ordem -- interacoes;
+ desordem -- interacoes;
+ desordem -- organizacao;
+ organizacao -- interacoes
+}
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@@ -0,0 +1,57 @@
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