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## Sobre
* Título: [A Cidade Perversa](https://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/27/a-cidade-perversa-liberalismo-e-pornografia/).
* Autor: [Dany-Robert Dufour](https://fr.wikipedia.org/wiki/Dany-Robert_Dufour).
## Impressões
* Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs.
* Marquês de Sade versus Sady Baby?
## Análise
### O loop estranho da subjetivação
O livro segue a linha da lógica cartesiana para chegar à linha dos loops estranhos, passando,
usando, criticando e ultrapassando Lacan. Daí uma linha evolutiva do cartesianismo, para o lacanismo
e em seguida para o hofstadterismo!
Num primeiro momento, a leitura "estourou" minha cabeça -- para usar uma expressão do próprio autor
quando explica uma transição de uma perversa-puritana do "modo neurótico" para o "modo perverso" de
operação -- me deixou [acéfalo](https://en.wikipedia.org/wiki/Ac%C3%A9phale) -- e a referência à
_Acéphale_ no livro talvez tenha passado desapercebida pelo autor e indique o próprio limite da
sua obra, afora a constante referência a dualismos como physis/nomos e natureza/cultura (leis da natureza
versus leis dos humanos) que poderiam ser dialogicamente articulados [morinianamente](/books/epistemology/metodo),
pois ele esbarrou sem querer com a própria complexidade!
Hofstadter utiliza os loops estranhos para mostrar como símbolos, "estruturas" ou "formas" ditas "irracionais"
podem se enrolar, se emaranhar em configurações que apresentam padrões mais "inteligentes" -- ou seja,
o racional surgindo a partir do irracional --, Dufour permanece apenas no nível lógico e aí me parece
o limite de sua análise do liberalismo -- e por quê também não dizer do fascismo? -- como uma articulação
puritano-perversa, pornográfica por trazer em cena o que era até então -- na Cidade dos Homens aspirando
a ser Cidade de Deus -- obsceno.
Utiliza o seguinte loop estranho de "enunciação e estrutura de subjetivação" a partir da sentença
"eu falo a ti a propósito dele":
.--- Ele --. (grande Sujeito)
/ \
/ \
| .-> eu -. /
`-->| |->´ (sujeito s barrado)
\_ tu <-'
Tal estrutura seria dada por conta da neotenia humana: uma resposta ao nosso desamparo neonatal e fundamental,
do nosso nascimento prematuro:
220
Não se é nada disso por natureza porque a natureza é aquilo que a nós, homens,
mais falta. Com efeito, nascemos prematuros. Para os que não acreditam, eis
aqui algumas provas da prematuração do homem ao nascer: paredes cardíacas não
fechadas, imaturidade pós-natal do sistema nervoso piramidal, insuficiência dos
alvéolos pulmonares, caixa craniana não fechada (o que explica a moleira),
circunvoluções cerebrais mal desenvolvidas, ausência de polegar posterior
opositor, ausência de sistema piloso, ausência de dentição de leite ao nascer —
para não falar, nos homens, da ausência extremamente lamentável de osso peniano
ao nascer, o que poderá… tornar-se mais tarde uma experiência dolorosa. O ser
humano é, portanto, um ser de nascimento prematuro, sujeito a uma longuíssima
maternagem, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, no
entanto, capaz de se reproduzir e de transmitir seus caracteres de
juvenilidade, normalmente transitórios nos outros animais. Resulta disso que
esse estranho animal, inacabado, ao contrário dos outros animais, deve
completar-se em outro lugar que não a primeira natureza, ou seja, numa segunda
natureza, geralmente chamada cultura.
Não foi apenas a nossa época que se deu conta dessa fraqueza do homem. Tentei
demonstrar num trabalho anterior285 que existe uma grande narrativa,
percorrendo toda a civilização ocidental, baseada nesse inacabamento originário
do homem. Mais ainda, sabe-se hoje que toda a metafísica ocidental, seja ela
proveniente de Atenas ou de Jerusalém, fez do desamparo do homem ao nascer e na
primeira infância o ponto de partida da aventura humana. Acontece que essa
narrativa das origens baseia-se numa razão no real: desde o início do século
XX, os antropólogos falam, para se referir a essa prematuração, da neotenia do
homem.286
221
É, portanto, aí que tudo começa, com um ser incapaz e incompleto, incapaz de se
virar — vou chamá-lo aqui de o baixíssimo. Freud, por sua vez, propõe aqui o
termo da Hilflosigkeit humana, que remete ao desamparo originário do homem. É
digno de nota que esse conceito cintile ao longo de toda a extensa elaboração
freudiana. É bem verdade que não se trata de um conceito-estrela como o Édipo,
como o ego/id/superego ou como o recalque, mas é um conceito de fundo, sem o
qual os outros não teriam surgido. Ele teria sucessivas definições, cada vez
mais precisas, mas nunca seria abandonado. Indica que existe apenas uma solução
para a sobrevivência do homem: que ele supra essa falta de primeira natureza
com uma segunda natureza, a cultura. A cultura é, de certa maneira, o remédio
para a Hilflosigkeit humana. O único remédio possível. Aquele que permite ao
homem sair de seu estado marcado não só por esse inacabamento originário, mas
também por sua finitude no tempo (eu não sou para sempre; um dia, isto vai
acabar) e por seu fechamento no espaço (eu não estou em toda parte, mas aqui,
numa espécie de prisão domiciliar).
Haverá remediação se eu, ser tão mal acabado no tempo e no espaço, conseguir
supor um ser infinito em relação ao qual eu me coloque em posição de tudo
dever. Ora, supor esse ser é algo que eu posso, já que falo, e falar é fabular.
Nada, portanto, impede-me de inventar o que não existe, mas de que eu preciso
para viver. Pois se o suponho, a Ele, o Altíssimo, ou seja, o grande Sujeito,
poderei então me “sub-por” como seu sujeito — e é exatamente o que significa a
palavra “sujeito”: o subjectum em latim significa o “submisso”, ou seja, aquele
que é “posto sob”, colocado debaixo. É, portanto, necessário e suficiente que
eu conjeture um grande sujeito que supostamente tudo sabe, tudo pode e tudo vê
para que finalmente encontre o meu lugar, como sujeito desse ser. O grande
Sujeito atende então a essa definição de Aristóteles: “Ele é aquele pelo qual
tudo mais se ordena”, dizia ele na Metafísica.
Em outras palavras, a sobrevivência do homem, animal neotênico, por isso
carente de natureza, passa pela criação de seres de sobrenatureza, vale dizer,
seres de cultura que, apesar de não existirem, revelam-se dotados de uma
poderosa eficácia simbólica.
[...]
Muito bem. O único problema é que um círculo remetendo indefinidamente de s a S
e de S a s corre o risco de muito rapidamente tornar-se cansativo, pois
vicioso. Impossível, com efeito, sair dele, a menos que… A menos que a praxis
(que, vale lembrar, significa “ação” entre os gregos), resultando como tal de
uma decisão, venha a provocar o engatamento temporal, forçando as coisas. Não é
possível, com efeito, ficar dando voltas por toda uma eternidade como um
hamster na estrutura circular da subjetivação. Será necessário começar por uma
das pontas. O que implica romper a circularidade e reintroduzir uma
causalidade, que pode então ter início de duas maneiras diferentes:
— partindo de S, o grande Sujeito — será essa a escolha do crente. É uma
escolha frequente, pois tranquiliza o ser desamparado que é o homem, assim
reconfortado por se imaginar procedendo de algum deus;
— ou partindo de s — e será essa a escolha do ateu. É uma escolha mais rara,
pois recusa o consolo tão buscado e prolonga a inquietação. Por isso é que o
ateu com frequência range — ao mesmo tempo tentando dar uma forma aceitável a
esse rangido: o humor, por exemplo. Cioran — e eis aí alguém que rangia muito
—, que sabia conferir ao seu desespero essa forma polida que vem a ser o humor,
dizia: “Se existe alguém que tudo deve a Bach, é Deus.”288 Uma forma elegante
de afirmar que Deus, em Sua própria perfeição, foi criado pelos homens…
essencialmente para acalmá-los em suas angústias. Poderíamos aqui
perguntar-nos se, em última análise, existem verdadeiros ateus. O que, de fato,
não é certo. Muito simplesmente porque a estrutura funcionará tanto melhor na
medida em que o sujeito ignorar que foi ele que inventou o grande Sujeito (ou
seu substituto). Em qualquer dos casos, ele deverá dar mostra de ignorância, e
é precisamente esse não saber que necessariamente fará dele um ser sujeito ao
inconsciente.289
224
É evidente, contudo, que essas duas maneiras de começar são igualmente ruins,
na medida em que pretendem impor uma decisão no lugar do que é rigorosamente
impossível de decidir. Em suma, o homem é um ser beckettiano: finito, mal
acabado e, sobretudo, sempre necessariamente começando mal. Em tais condições,
cabe supor que o remédio para o desamparo humano venha a ser bem pior que o
mal.
Esse remédio simbólico para o desamparo real do homem tem a ver com o que
Platão chamava de pharmakon: um remédio e um veneno.290 Em suma, o Outro, esse
grande Sujeito que não existe, é de grande ajuda… até que se torne extremamente
embaraçoso.
Por isso é que estamos constantemente matando nosso salvador. Entretanto, como
o sujeito é esperto, um belo dia tomou a frente, dizendo que havia morrido por
nós — e isso se chama cristianismo. Com isso, ficou difícil matá-lo… pois ele
já está morto — e, no entanto, Nietzsche bem que tentou, e sabemos o que lhe
custou.
225
Outro traço característico dessa estrutura estranha: ela permite afirmar que,
falando estritamente, não existe sujeito. Na verdade, existe apenas um
infrassujeito (que falta a ele próprio) e um sobressujeito. Os dois, o
baixíssimo e o Altíssimo, mantêm uma relação de implicação recíproca. Se
realmente se quisesse que houvesse um sujeito, seria necessário imaginá-lo como
o que resulta da interação dessas duas instâncias.
226
Essa estrutura s/S permite, ao que me parece, dar uma nova forma, indo além da
clínica individual, ao que Freud havia denominado, num texto tão breve quanto
decisivo, um de seus últimos, divisão subjetiva (a Spaltung).291 A divisão
subjetiva é o que faz de nós seres cindidos, incapazes de jamais nos
encontrarmos, pois no exato momento em que poderíamos nos encontrar,
perdemo-nos no Outro. O psicanalista Alain Didier-Weill encontrou as palavras
mais simples e precisas para dizer essa cisão originária: “Assim que o sujeito
fala, significando-se numa fala que decide e distingue, uma parte dele,
insignificável pela fala, retira-se daquilo que foi significado e cai como que
velada.”292
[...]
229
Três respostas básicas seriam possíveis: do neurótico, do perverso e do psicótico:
Dessa estrutura circular em que o um (s) supõe o Outro (S) que “sub-põe” o um,
é possível sair de três maneiras: pela neurose, pela perversão ou pela psicose.
O que retoma em novas condições a intuição de Freud, que havia distinguido três
patologias fundamentais.
1. Neurose: "dívida simbólica contraída em relação ao Outro", lembando que "sujeito"
vem de "sujeição", de se sujeitar:
Se a histeria constitui o protótipo da neurose, é porque o(a) histérico(a) é
aquele(a) que venera o Outro por lhe ter tudo dado e ao mesmo tempo o detesta
por tê-lo(a) posto na situação de tanto e tudo lhe dever. Ele/ela amará o Outro
detestando-o ou o detestará amando-o. É o lugar de um nó psíquico importante,
no qual constantemente se remotiva o conflito neurótico em todas as suas formas
possíveis. Por exemplo, esta, que faz as delícias do histérico: seduzir o Outro
— sob a figura de Deus, de um mestre, de um grande homem, etc. — ao mesmo tempo
escapando-lhe.
2. Psicose: o caso-limite, "mais onerosa. Ela diz que se Deus é, então eu não sou":
Um combate que pode assumir duas formas opostas e complementares. Uma forma
paranoica, como tal perseguida: existe um Deus que está constantemente querendo
roubar meu ser, que me espiona e me persegue. E uma forma esquizofrênica e
triunfante: Deus, na verdade, sou eu. Nos dois casos, essa potência
manifesta-se como sobrenatural, o mais das vezes através de uma voz imperiosa
que ocupa o sujeito, no sentido de tomar posse dele, de se apoderar dele.
3. Perversão:
Quanto à enunciação perversa, ela se esclarece nesse esquema. Ela permite
entender que o que está em jogo no grande circuito enunciativo (com o “Ele”)
vem a atuar no pequeno, de tal maneira que o “eu” ocupe, diante do “tu”, a
posição eminente que o “Ele” ocupa em relação a todo sujeito falante (“eu” e
“tu”). Em suma, o perverso coloca-se, diante de todo outro, na posição do
Outro. A definição poderá ser estranhada. Mas seria um equívoco, pois ela
encontra e confere sentido à maneira como Lacan definia o perverso: “O perverso
imagina ser o Outro para garantir seu gozo.”302 De fato, essa proposição só
pode ser realmente entendida mobilizando-se as teorias da enunciação baseadas
na análise da relação de lugar entre as três pessoas verbais: “eu” (o um), “tu”
(o outro) e “Ele” (o Outro). A perversão surge então como uma negação da grande
estrutura, compensada por um inchaço da pequena, como se essa estrutura
secundária pudesse e devesse suportar sozinha o que está em jogo na grande.
Poderíamos falar aqui de uma translação do que está em jogo na estrutura
principal para a estrutura secundária. O que, provavelmente, explica a
seriedade com que o perverso maquina suas encenações, às vezes deploráveis,
como se ele ocupasse diante de seu alter ego o lugar do Outro.
Os modos de operação individuais variariam de acordo com a ênfase dos caminhos
do circuito de enunciação subjetiva.
O atual turbo-neoliberalismo é sustentado por um par operativo oscilatório
neurótico-perverso.
O caso limite da psicose não é tão útil pois raramente articula com sucesso a
produção e o consumo capitalistas.
Resumiria o livro com o trocadilho: "Sade, Smith e Lacan: um laço realmente estranho, mas não eterno".
### O dilema do prisioneiro
Aqui novamente esbarramos com um limite: altruísmo está situado no lugar da dívida com
o outro (neurose, culpa) e não no abandono-de-si. Será mesmo que a única orientação
("drive") dos seres é a autopreservação? [Marcuse parece mais apropriado neste ponto
ao dar mais ênfase ao loop estranho das pulsões básicas Eros/Thanatos](/books/psychology/eros-civilization),
que podem tanto ser entendidas como criação/destruição quanto tendências oscilantes de autopreservação
ou reintegraçao/dissolução no ambiente.
Se a opção for pela cisão physis/nomos, é preciso ter muito cuidado ao tomar
por naturais as "leis" inventadas pelos humanos, especialmente no campo dos
jogos. Pode-se entender a teoria dos jogos enquanto melhor estratégia possível
sem questionar a valoração que está por trás dela, e portanto sua
arbitráriedade. Mas entendo que um liberalismo oriundo de uma cultura
ocidental da cisão natureza/cultura, esta é a teoria que vem da cultura e quer
se fazer natural, e este querer-fazer que a naturaliza no sentido de que a
torna normal, a difunde e a impõe a tal ponto que parece imediata, se é que me entendem
dada a dificuldade de formular a ideia.
Seria então dupla mesquinharia acreditar tanto na naturalidade (no sentido de
não ser arbitrário, não haver outra possibilidade) da teoria quando na sua
aplicação (esta não é uma crítica ao autor, mas ao liberalismo)?
Eis o trecho:
212
A intervenção de Lacan é muito importante, pois tira a filosofia moral da
esfera da psicologia — extremamente duvidosa, do ponto de vista científico, já
que pressupõe indivíduos a priori bons (como Rousseau) ou maus (como Hobbes) na
sua essência — para transformá-la num autêntico problema lógico. E, por sinal,
se Lacan tivesse ido um pouco mais longe nesse terreno, teria podido valer-se
de suas ruminações sobre a lógica, aquelas mesmas que despertavam o seu
interesse nessa época, para colocá-la a serviço de sua reflexão sobre os
eternos impasses da ética e as possíveis superações que a reflexão
psicanalítica acaso permitiria. A coisa vai do “dilema dos prisioneiros”, que
ele havia comentado, já em 1945,270 a seu interesse pela cibernética, a partir
da década de 1950.271
Um caminho extremamente inovador é aberto aqui, já que enriquece a discussão
sobre a ética e a escolha das máximas (egoísta ou altruísta) com as
contribuições da teoria dos jogos.272
Kant abriu o caminho nesse terreno, ao considerar que a escolha das máximas
depende de um “você deve” que só pode ser incondicional, porque é lógico. Lacan
propôs a primeira articulação possível entre as duas máximas, desenvolvendo
seus aspectos lógicos. Vieram em seguida as discussões sobre a escolha das
máximas a partir de uma reflexão sobre o famoso dilema dos prisioneiros, tal
como expresso não na versão complexa de Lacan, mas numa versão simplificada,
que costuma ser enunciada da seguinte maneira:
Suponhamos dois prisioneiros, A e B, cúmplices de um crime, detidos em celas
separadas, sem possível comunicação. O juiz propõe a cada um deles a seguinte
barganha: denunciar o outro em troca da suspensão da pena. Haveria, assim, três
possibilidades:
1º Ambos se denunciam. Neste caso, cada um deles será condenado a cinco anos de
prisão.
2º Nenhum dos dois denuncia o outro. Neste caso, cada um será condenado a dois
anos.
3º Apenas um dos dois denuncia o outro. Neste caso, aquele que denuncia será
libertado e outro será condenado a dez anos.273
Cabe lembrar que esse problema foi enunciado pela primeira vez dessa forma, na
década de 1950, por pesquisadores da RAND Corporation.274 Este problema logo
provocou inúmeras discussões científicas, tendo sido estudado de forma
sistemática na década de 1980 por Robert Axelrod, especialista americano em
ciências políticas, que introduziu uma variante suplementar, o tempo: o jogo é
repetido, de tal maneira que os participantes guardam na memória os encontros
anteriores.275
É esse problema, precisamente, que vamos encontrar no cerne dos estudos que
permitem avaliar a pertinência da escolha da máxima egoísta nas e pelas
sociedades liberais. Ou seja, esta máxima derivada da reviravolta da metafísica
ocidental, que aos poucos se impôs, como tentamos demonstrar, de Pascal a Sade.
Se fosse necessária uma confirmação da pertinência da orientação de nossa
investigação, poderíamos encontrá-la no fato de que precisamente essa máxima
está em discussão há trinta anos num dos mais importantes think tanks
americanos.276
Farei aqui como o professor Mascomo, indo diretamente aos resultados. A solução
ideal (assim considerada quando beneficia o maior número possível de
indivíduos), alcançada depois de uma série de cálculos teóricos, experiências
práticas e simulações em computador, é obtida quando o jogador adota
inicialmente a estratégia altruísta (chamada tit for tat, ou seja,
“toma-lá-dá-cá”), o que significa propô-la ao outro, para ver, sabendo que, em
seguida, deverá estar preparado para um recuo imediato a uma máxima egoísta,
que, portanto, deve estar pronta, ainda que ele não a use, necessariamente, em
função do que o outro fará.
Aqui poderíamos nos perguntar se uma dedução transcendental extremamente
complexa seria necessária para chegar a essa posição e nela se manter na ação
prática. Creio que não. É possível chegar a essa posição instantaneamente. Em
outras palavras, essa dedução transcendental pode ser feita inconscientemente:
ela surge então como a posição espontânea que permite a regulação ideal da
relação com o outro, advertindo o sujeito, antes mesmo que ele pense a
respeito, de que não deve infligir nem se sujeitar.277
Assim é que a dedução transcendental, consciente ou não, revela que a máxima
altruísta deve ser completada por uma máxima egoísta — o que poderia ser dito
de outra forma: a minha máxima kantiana deve, portanto, ser completada por uma
máxima sadeana, suscetível de ser usada não como estratégia primeira, mas como
recurso.
Lacan, portanto, tem razão. O único problema é que ele nem desconfia em que
medida pode ter razão. Não vê em que medida sua solução permite entender os
problemas contemporâneos nas sociedades liberais, cada vez mais presas da
máxima sadeana.
### Eros versus Perversão
No que tange a Marcuse, concordo com o autor de que "Eros e Civilização" não
assume que pode haver uma solução capitalista para o problema da mais-repressão
e que os desejo pode ser infinitamente explorado via consumo.
Mas no meu entender isso não invalida a possibilidade de um arranjo social nos
moldes defendidos pro Marcuse.
São duas formas possíveis de canalizar o desejo: uma aprisionadora, outra que
liberta.
## Trechos
Compilação parcial da seleção de trechos feita do livro todo... a ser completada um dia...
### Zanga
58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor
(tipo de jogo no qual os jogadores mostram alternadamente uma carta na mesa, e
aquele que jogou a carta mais forte, segundo as regras do jogo, se apodera de
tudo, abrindo e fechando as cartas). Foi muito jogado na França no século XVII
e no início do século XVIII, e continua em uso com regras muito semelhantes com
o nome de tresillo na Espanha, hombre [como na França] na Dinamarca e tridge na
Inglaterra.
### Misc
103
A leitura de Mandeville permite entender o que muitos estudos econômicos
não conseguem explicar. Não teria sido possível o desenvolvimento do
capitalismo sem a liberação das paixões. Aí é que se encontra, em minha
opinião, a resposta a essa pergunta, até hoje sem resposta, concludente e
constantemente reiterada desde Marx. Por que exatamente o capitalismo, tendo
amadurecido desde a Idade Média, finalmente nasceu na Europa por volta de
1700, nas Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na
Inglaterra? Por que, se em tantos lugares existiam poderosos mercados
tradicionais, nenhum se transformou em mercado liberal capitalista? Por que
essa transformação ocorreu na Europa por volta de 1700, e não nos séculos de
ouro do Império Romano, sob a dinastia dos Antoninos, tanto mais que a
primeira máquina a vapor, a eolípila, acabava de ser inventada por Héron de
Alexandria? Ou ainda na China, por exemplo, no apogeu da dinastia Qing, nos
séculos XVII e XVIII? Ou ainda no apogeu do Império Otomano, no século XVI,
por exemplo, sob Solimão, o Magnífico? Ou ainda na Índia, na época da
dinastia Maurya, no século IV antes de Jesus Cristo, durante a qual foi
escrito o primeiro tratado de economia política, intitulado Arthaçastra —
Instrução sobre a prosperidade material? E ainda poderíamos mencionar muitos
outros lugares. A única resposta possível parece-me a seguinte: as condições
materiais identificadas por Marx provavelmente estavam reunidas nesses
diferentes lugares (acumulação primitiva, tendo por um lado uma mão de obra
desenraizada e, por outro, fluxos de dinheiro), mas a condição moral, ou
antes, amoral, não estava. Quero dizer que nesses lugares as paixões eram
contidas em sistemas simbólicos poderosos, ao passo que aqui foram liberadas.
Essa liberação das paixões ao longo dos séculos XVII e XVIII é que permitiu a
entrada no capitalismo.
104
Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração
do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo
pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas
morais. E, de fato, ele o era — ao mesmo tempo trazendo consigo formas
absolutamente inéditas de alienação.
[...]
Mas, sobretudo, a colmeia é uma ilustração perfeita do gênio do Criador da
natureza, que consegue construir uma organização extremamente complexa,
implicando a divisão do trabalho entre os homens, a partir de uma única causa
muito simples: o amor próprio (chamado de self-liking por Mandeville).
Utilizando da melhor maneira possível este simples e mesmo estúpido amor
próprio, gerando todas as libidos possíveis, podemos chegar, sem precisar
intervir com leis jurídicas ou regras morais, a uma metáfora “admirável”, tão
perfeita quanto a da colmeia. Existe aí uma espécie de astúcia do Criador,
que utiliza os defeitos dos homens para criar, apesar deles próprios, uma
ordem perfeita que os transcende. É pura e simplesmente o projeto
cibernético, tal como viria a ser desenvolvido por Norbert Wiener, que já
está contido na ideia de colmeia, já que ela é organizada de acordo com um
programa perfeito de grande complexidade, que resulta de subprogramas muito
simples (comportando apenas algumas instruções) seguidos por cada um dos
habitantes.101
[...]
O que me parece analisar mais radicalmente a colmeia mandevilliana, no que
ela tem de extremamente inquietante para a liberdade humana, com esses homens
incapazes de sair de uma total alienação aos seus vícios, é o castelo
sadeano, que também se organiza a partir de uma exploração sistemática de
todas as paixões imagináveis e mesmo inimagináveis.
[...]
145
Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter
visto que toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional.
Se Marx tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação
desses monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda
paixão, exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente
nociva entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na
economia libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum
freudo-marxista, nem mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de
resolver. Se Marx tivesse lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral
das paixões. O mundo poderia ter sido reformado de outra maneira. Teríamos
evitado a captação e o desvio dos espíritos resistentes à teodiceia smithiana
nas falsas alternativas ao capitalismo representadas pelas economias
socialistas, que só poderiam levar ao mais lamentável dos fiascos.
Ao passo que, para Kant, era absolutamente necessário regular — a moral deve
ser baseada no imperativo categórico consistindo em se impor a si mesmo uma
lei na vida prática —, para Smith cabia, sobretudo, deixar fazer [laisser
faire], vale dizer, desregular — o que conduz logicamente a Sade.
[...]
Postulada essa distinção entre os dois Iluminismos, fica mais fácil indicar o
que distingue a modernidade da pós-modernidade. A modernidade é o equilíbrio
instável entre essas duas correntes opostas. Terá durado um século e meio. A
pós-modernidade é o recuo cada vez mais acentuado da zona transcendental que
remete ao que “não tem preço, mas uma dignidade” (Kant), em proveito do
princípio liberal, segundo o qual tudo tem um preço (Smith).
Com efeito, podemos conceber Sade como aquele que, no fim do século, se
apropriou dessas teses liberais, por sinal de maneira extremamente sadeana,
levando-as a suas últimas consequências e mostrando, de uma forma que tendo a
considerar irretocável, aonde conduz, do ponto de vista do ser-si-mesmo e do
ser-junto, a sua escolha, constantemente reiterada ao longo de seus textos,
da moral egoísta contra a moral altruísta.
Fazer de Sade um homem-chave do seu século, o século XVIII, é, portanto,
afastar-se das interpretações tão frequentes quanto anacrônicas que pretendem
considerá-lo arauto perfeito dos sistemas fascistas. Basta pensar, por
exemplo, na posição assumida por um autor tão estimável quanto Pasolini no
filme intitulado Salò ou Os cento e vinte dias de Sodoma, lançado no fim de
1975. É provável que Pasolini, irritado com as visões, cada vez mais
frequentes depois de 1968, de um Sade simpático, bon vivant, alvo de
perseguições dos obscurantistas de sua época, tenha pretendido reagir a esse
absoluto contrassenso. Com isso, situou a ação de Os cento e vinte dias… em
Salò, a cidade do norte da Itália onde Mussolini se refugiara no fim da
Segunda Guerra Mundial para fundar uma república fascista. Como sabemos, foi
o último filme de Pasolini: ele seria assassinado após o lançamento.
A morte trágica de Pasolini nos faz pensar. Não podemos, com efeito, passar por
cima de uma questão pungente: será que as circunstâncias de sua morte… não
desmentiriam sua tese? Pois ele foi morto, de maneira extremamente sadeana, não
por fascistas, mas por jovens extremamente liberados, tão liberados que não
tinham controle de suas paixões e pulsões, já que, pelo que sabemos, foi um
jovem prostituto romano de dezessete anos, um dos que eram frequentados por
Pasolini, que o matou a cacetadas no dia 1º de novembro de 1975, para em
seguida esmagá-lo várias vezes com seu próprio carro na praia de Ostia, perto
de Roma.
[...]
Situar Sade dessa maneira permite adiantar que o liberalismo tem duas faces:
uma face puritana, representada pelo “primeiro filho” de Mandeville, vale
dizer, Adam Smith, e uma face perversa, indissociavelmente ligada, representada
pelo “segundo filho” de Mandeville, Sade. Em outras palavras, devemos entender
o liberalismo como um sistema bifronte, à Janus, vale dizer, como um conjunto
perverso-puritano.
O que poderia ser dito assim: o liberalismo é Smith com Sade.
153
A tese que defendo, portanto, é a seguinte: Sade diz a verdade do liberalismo e
por esse motivo é que foi necessário aprisioná-lo durante toda a vida e
atirá-lo no inferno após a morte, enquanto o conto da harmonização dos
interesses privados pela mão invisível, prometido pela teodiceia puritana de
Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto
apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e
escondido por alguns eruditos durante dois séculos.
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