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diff --git a/research/economics/valor-social.md b/research/economics/valor-social.md new file mode 100644 index 0000000..6b8d519 --- /dev/null +++ b/research/economics/valor-social.md @@ -0,0 +1,343 @@ +[[!meta title="A ajuda múltipla e o valor social"]] + +Esta é uma versão antiga: + +* [Versão atual](https://ensaios.fluxo.info/valor.html) disponível + nos [Ensaios Vertiginosos](https://ensaios.fluxo.info). +* [Versão original](valor-social.pdf) ([fonte](valor-social.tex)). + +Procurando resolver um problema prático, este texto sistematiza uma +forma de promover a ajuda múltipla através de acordos sucessivos e +virais. Para auxiliar na sua compreensão, é definida uma forma de +cálculo do valor social e suas consequências são avaliadas. + +Motivação +========= + +Em geral, quando ajudamos alguém (principalmente quando ensinamos algo), +não há muita garantia que a pessoa ajudada passará a idéia pra frente, +seja ajudando outrem ou passando o conhecimento adiante. Mesmo em +coletivos horizontais, não-hierárquicos e baseados na ajuda mútua, não +há necessariamente uma cultura de passar para frente a ajuda recebida. +Por isso, estabelecemos neste texto uma sugestão de acordos de ajuda +múltipla tanto como proposta de prática e sobretudo como reflexão da +distância que os grupos sociais se encontram com relação a um regime de +dádiva e não-escassez. + +O acordo de ajuda múltipla +========================== + +Para fomentar o aumento da ajuda entre as pessoas, criaremos o conceito +de *ajuda múltipla* e proporemos um pequeno acordo padrão para o seu +estabelecimento. Pois bem: *ajuda múltipla é a forma de colaboração onde +uma ou mais pessoas -- grupo A -- auxiliam outras -- grupo B -- com a condição +de que estas últimas efetuem ajuda múltipla auxiliando outras pessoas +-- grupo C.* Atente para o fato de que definição é *recursiva* (isto é, a +definição necessita de sua própria definição): uma ajuda múltipla seria, +por exemplo, Maria ajudar Lopes com a condição de que este ajude alguém +no futuro. Note que o grupo C pode ser composto pelas mesmas pessoas do +grupo A, mas não necessariamente: Lopes deve ajudar alguém, mas não +necessariamente Maria[1]. + +Viralidade (ou potência) do acordo +---------------------------------- + +Estamos interessados/as na possibilidade da multiplicação da ajuda e, +para tanto, devemos melhorar nossa definição de ajuda múltipla: ajuda +múltipla é a forma de colaboração onde uma ou mais pessoas -- grupo A -- +auxiliam outras -- grupo B -- com a condição de que estas últimas efetuem +*pelo menos _v_ ajudas múltiplas* (onde _v_ é um número inteiro +positivo) auxiliando outras pessoas -- grupo C, D, E, etc -- com a condição +de que as próximas pessoas também pratiquem ajuda múltipla e assim por +diante. + +Nesta segunda definição, introduzimos o que chamaremos de *viralidade:* +não apenas a pessoa ajudada precisa participar de pelo menos mais _v_ +acordos de ajuda como as pessoas ajudadas por esses próximos _v_ acordos +precisam, após serem ajudadas, participarem como ajudantes em pelo menos +mais _v_ acordos[2]. + +A idéia principal da viralidade é que ela representa o custo social de +uma ajuda: se recebo uma ajuda, devo retribuir não exatamente a quem me +ajuda mas a todo o grupo social, participando como ajudante em pelo +menos _v_ outros acordos. + +Por isso, os acordos não devem ser entendidos como moedas de troca: a +moeda abstrai e aliena as relações sociais – já que pode ser trocada – +enquanto que o acordo reforça e encoraja relações sociais. A moeda +conserva valor (uma vez que ela é criada, basta que circule)[3]. Os +acordos, ao contrário, geram valor o tempo todo por causa de sua +viralidade. Eles criam valor social sem precisarem ser trocados, já que +eles se reproduzem. Assim, devem ser entendidos mais na lógica da dádiva +do que do contrato social. + +Modelo de acordo viral +---------------------- + +Na prática, convém termos um modelo de acordo para facilitar o +dia-a-dia: pessoas nos pedem ajuda e em geral precisamos dar uma +resposta rápida. Um modelo de acordo – onde o/a proponente pode ser +qualquer uma das partes envolvidas e os acordos podem ser de múltiplas +partes – deve ser simples e eficaz e por isso o texto do modelo de +acordo abaixo serve para criar pequenos acordos entre pessoas: + + Acordo de ajuda múltipla + ------------------------ + + O/a proponente/a deste acordo tem como objetivo multiplicar seus esforços de + ajuda. Para tal, é utilizado o princípio da reprodução viral de atividades + culturais. + + Neste acordo, as pessoas ajudantes concordam a ajudar as pessoas, doravante + denominadas como ajudadas, desde que as ajudadas concordem em participar como + ajudantes em pelo menos X próximos acordos deste mesmo tipo (nos quais, por sua + vez, as pessoas ajudadas deverão participar como ajudantes em pelo menos X + acordos deste mesmo tipo e assim sucessivamente). + + A contrapartida não precisa ser necessariamente no mesmo teor da ajuda + prestada. + +Esse modelo de acordo não pretende apenas incentivar a iniciativa e o +protagonismo como também encorajar quem não ajuda ou não pede ajuda por +conta de algum receio. Não podemos também deixar de mencionar que estes +tipos de acordo só fazem sentido e apenas serão necessários enquanto a +ajuda mútua/múltipla não for uma prática cultural comum e generalizada, +quando então a prática descartará a necessidade de microacordos. + +O modelo acima é apenas uma sugestão: muitos outros podem ser feitos e +inclusive é possível ainda tornar tais acordos acopláveis em licenças de +manipulação de conteúdo. Desde que os acordos funcionem para criarem +valor no grupo social, tão melhor. Sugestões de melhoria desse modelo +seriam abrir margem para uma melhor definição de contrapartidas e +estipular um prazo para que o acordo seja cumprido. Sugerimos que ao +menos a simplicidade, a clareza e o tamanho reduzido do acordo sejam +preservados. + +O valor social +============== + +Como se comportaria um grupo social onde tal prática de acordos se +iniciasse ou fosse já endêmica? Para nos auxiliar nesta e noutras +perguntas, podemos recorrer a um mínimo de sistematização. Considerando +um grupo social de _m_ pessoas, podemos definir a função *valor social* +como sendo + +$$S = \displaystyle\sum_{p=1}^{m}\frac{\left(p\ n_p\right)^{v}}{mr}$$ + +onde $n_p$ é a quantidade de acordos existentes envolvendo $p$ +pessoas[4], cada acordo com viralidade[5] $v$ e $r < m$ é o número de +pessoas que *poderiam* [6] ter efetuado acordos mas que ficaram de fora +(isto é, não fizeram acordo nenhum). O valor social assim definido exibe +uma série de propriedades interessantes sob o ponto de vista das +interações sociais, que pode ser revelado pela simples análise das +componentes da somatória. + +Primeiramente, esse valor é uma propriedade do sistema social como um +todo e não de um ou outro indivíduo. Em segundo lugar, quanto mais +acordos envolvendo múltiplas partes, maior será o valor social: muitos +acordos entre poucas partes podem ter um peso menor do que poucos +acordos entre múltiplas partes. Um grupo social com muitos acordos de +múltiplas partes possui maior ação coletiva (maior participação +coletiva, maior coletividade) do que uma sociedade com acordos entre +apenas poucas partes. + +Já a quantidade $m$ de pessoas do grupo e o total $r$ de pessoas que não +participaram de nenhum tipo de acordo contribuem na diminuição do valor +social: se poucas pessoas (em relação ao total $m$) fazem acordo, temos +uma sociedade com pouca ajuda múltipla e, portanto, para que $S$ atinja +valores significativos, é preciso que $m$ se torne quantitativamente +menor em relação aos valores dos componentes $\left(p\ n_p\right)^{v}$. +O mesmo vale para $r$: os componentes devem ser mais significativos do +que a quantidade de pessoas que poderiam estar em acordos mas que +ficaram de fora, ou seja, $S$ leva em conta a inclusão ou exclusão +social da ação coletiva[7]. + +Por fim, a viralidade potencializa a multiplicação de acordos: quanto +maior for a viralidade, maior é o valor dos acordos, pois cada acordo é +um acordo de ajuda futura e portanto de investimento na potencialidade +das ações coletivas. + +Poderíamos ter definido um valor social de outra forma, mas sabemos que +não há definição de valor que não haja um propósito e muito menos há uma +definição sob a qual todas as outras se reduzem: o valor é uma +propriedade definida pelo grupo social e deve servir a este: devemos +buscar definições e convenções de valor (ou também suas indefinições) +que nos sirvam. Não só acreditamos que esta teoria do valor sirva para +mostrar como a ajuda múltipla implica numa maior ação coletiva como +ainda exibe propriedades interessantíssimas do ponto de vista de +sistemas dinâmicos. + +Por simplificação, podemos reescrever a equação anterior como + +$$S = k\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v}$$ + +onde $k = \frac{1}{mr}$. É claro que o valor de $k$ +pode mudar num dado grupo social – por exemplo: mais pessoas ingressando +ou saindo do grupo ou então com um aumento ou diminuição de protagonistas +de acordos – mas podemos considerá-lo como constante num dado momemto, ou seja, +$k = k(t)$ e independente de outras variáveis. + +O que realmente nos interessa agora, no entanto, é que chega um momento +em que o grupo social está com tantos acordos que, da forma como +definimos na equação [eq:simples], $S$ começa a crescer absurdamente e +já não passa a representar o valor efetivo de um corpo social onde a +ajuda múltipla se faz presente. Em outras palavras: chega um momento em +que as pessoas já estão tão endividadas de acordos a cumprir que mais +dívidas não afetarão consideravelmente no seu comportamento de ajuda +múltipla. Para refrear o crescimento indiscriminado de $S$, +redefiniremos nossa função como + +$$S = k\ ln\displaystyle\sum_{p=1}^{m}\left(p\ n_p\right)^{v}$$ + +onde _ln_ cumpre um amortecimento no crescimento da somatória, mostrando +que o valor efetivo do grupo cresce logaritmicamente: temos um rápido +crescimento do valor conforme os acordos se iniciam e se multiplicam e, +conforme o endividamento social cresce, a sociedade atinge patamares de +valor altos demais para que um maior acréscimo se torne significativo. + +Temos que, pela própria definição, $S$ é uma função de estado, uma vez +que, definido um grupo social e suas interações a partir das variáveis +$n$, $m$, $v$, $r$, etc, temos que $S$ é um indicativo do estado do +sistema – indicando, por exemplo, se ele possui mais ou menos acordos (e +qual a potência e alcance dos acordos) do que outro grupo social +igualmente caracterizado. Além disso, obedece a + +$$\frac{dS}{dt} \geq 0$$ + +Portanto, chamaremos nossa última definição de $S$ (equação [eq:valor]) +como *entropia econômica do grupo social*. Tal entropia mede, +inicialmente, *o grau de endividamento do corpo social.* O endividamento +é então a única forma de acúmulo possível: uma vez que alguém ajuda +outrem, não é essa pessoa que detém um crédito: muito pelo contrário, as +pessoas ajudadas contraem uma dívida com todo o corpo social, já que os +acordos estipulam que a pessoa ajudada deve ajudar qualquer outra pessoa +e não necessariamente quem a ajudou. + +A entropia tem sido fonte de controversias e mal-entendidos quanto à sua +interpretação. Pela nossa definição, temos que uma entropia maior se +deve exclusivamente a um aumento da complexidade do sistema social, +complexidade que medimos utilizando um conjunto de variáveis que +consideramos como características do sistema[8] que de algum modo +representam o seu estado. Aqui, utilizamos número de acordos, viralidade +dos acordos, etc, o que caracteriza uma abordagem de *granulação +grosseira,* ou seja, de baixa resolução. Um cálculo de valor com maior +resolução deveria levar em consideração, por exemplo, os acordos +separadamente ao invés de agrupá-los por partes envolvidas. + +Descontrole social +================== + +Esta se torna então uma teoria do descontrole social: o aumento da +entropia é, aqui, não só benéfica como desejável, já que ela indica um +aumento do número de interações. Se nas teorias do controle a entropia +tem um aumento indesejável, aqui se torna o comportamento almejado. + +Sendo os acordos diretos, isto é, não mediados, temos ainda mais +descontrole: é importantíssimo que tais acordos não sejam mediados por +bancos de dados. Por banco de dados entendemos qualquer iniciativa de +tentar *efetivamente* calcular $S$ para um dado grupo social (e não o +registro pessoal que cada indivíduo mantiver a respeito dos acordos que +participou). A mera existência de um banco de dados centralizado capaz +de calcular a cada instante o valor social tem os seguintes riscos: + +- Dá margens para o estabelecimento de controles sociais com a + identificação das pessoas mais protagonistas (que participam de mais + acordos), das pessoas mais prestativas (as que mais ajudam), as que + mais são ajudadas e as que menos contribuem com ações coletivas, + possibilitando assim represálias, etc. + +- Se, por um lado, o banco de dados “facilita” a busca de pessoas que + querem ajuda e que podem ajudar, por outro diminuem a necessidade + das pessoas de travarem contato pessoal para iniciarem seus acordos, + já que o banco de dados detecta e aproxima as pessoas + automaticamente. + +- Acredita-se que seja de interesse do grupo social que a prática da + ajuda múltipla faça parte da sua cultura e não uma dependência do + banco de dados (o que seria um culto ao banco de dados). + +É com esse sentido de oposição aos bancos de dados que estabelecemos o +conceito de valor social: não nos interessa calcular efetivamente o +valor de $S$ para um dado grupo social e muito menos caracterizar cada +grupo em função desses parâmetros, o que além de policialesco não +representa o real valor social do grupo (afinal, nem discutimos as +diferenças qualitativas de cada acordo). Queremos, ao contrário, mostrar +*como se comporta* um grupo social adepto de acordos virais de ajuda +múltipla. Podemos resumir isso com a seguinte expressão: *criamos um +cálculo para auxiliar na compreensão o valor social mas jamais queremos +que ele seja usado para quaintificá-lo,* mesmo porque muitos valores +escapam da fórmula que estabelecemos. Não necessitamos de um banco +porque, na ajuda múltipla, o sistema bancário já emerge do próprio +tecido social. + +Desdobramentos +============== + +Não sabemos os desdobramentos desta teoria do valor e desta prática de +acordos aqui sugeridas. Num primeiro momento, podemos vislumbrar que, no +limite desta teoria, o endividamento excessivo devido a acordos deve +produzir uma prática social indistinguível de uma economia de dádivas +onde não há expectativa de retribuição direta ou o uso da dádiva como +demonstração de poder[9]. No caso da pedagogia também podemos +vislumbrar um ótimo uso da ajuda múltipla: pessoas que aprenderam algo +podem ensinar para outras, multiplicando o conhecimento ao invés de +sempre recorrerem aos luminares do saber. + +Por outro lado, a existência e a propagação dos acordos pressupõem um +grupo social pertencente a redes de relacionamentos afins, o que em +certo sentido limita a aplicação da ajuda múltipla: e quem não participa +da rede? E no caso de grupos em conflito interno? + +Estas são apenas sugestões de desdobramentos possíveis: convidamos todas +as pessoas que queiram contribuir para a análise de regimes econômicos +fora do mercado para que pensem conjuntamente no que aqui foi meramente +delineado. A experimentação também é encorajada: sem ela, toda esta +discussão não passa de uma teoria descolada dos grupos sociais. + +Referências +=========== + +1. Notar que esta definição de ajuda múltipla não é necessariamente + equivalente à de ajuda mútua utilizada em muitos estudos sobre + economia da dádiva: em alguns deles, a ajuda mútua ocorre quando + cada uma das partes envolvidas no acordo deve se ajudar + reciprocamente, enquanto que na ajuda múltipla isso não é + necessário. Não pretendemos neste texto sugerir a suposta + superioridade do conceito de ajuda múltipla sobre a ajuda mútua. + Muito pelo contrário: na falta de um devido estudo sobre a + literatura existente, preferimos utilizar um termo distinto da ajuda + ou apoio mútuo (mas que eventualmente possa ter o mesmo + significado). + +2. É claro que o valores de $v$ podem ser estipulados em cada acordo. + +3. Por *conservar valor* não queremos dizer que a moeda não sofre + valorização e desvalorização, mas sim que a moeda “congela” + trabalho. + +4. Começamos nossa somatória com $p = 1$ pois, apesar de ser um caso + em princípio bizarro (uma pessoa fazendo acordo consigo mesmo), não + deixa de ser uma possibilidade: posso, por exemplo, fazer um acordo + comigo mesmo e, caso o cumpra, ajudarei mais pessoas, sendo caso + clássico disso é a solidariedade de ex-viciados, por exemplo. Outro + argumento para manter $p = 1$ é a simplicidade. + +5. Poderíamos, é claro, supor um sistema onde cada acordo tivesse uma + viralidade $v$ própria, mas a complexidade do cálculo seria + desnecessária para esta primeira exposição do assunto. + +6. Que fique claro: $r$ não inclui pessoas que não podem ajudar, mas + apenas as que podem mas que ficaram de fora dos acordos. + +7. Alternativamente, poderíamos definir o divisor como $m^r$ ao invés + de $mr$, o que faria com que $S$ fosse muito mais sensível à + inclusão ou exclusão social. Optamos, no entanto, por uma abordagem + em que $m$ e $r$ contribuem com igual teor. + +8. Num sistema mais próximo da realidade teríamos trocentas outras + variáveis. + +9. O uso da dádiva como demonstração de poder seria, por exemplo uma + pessoa com mais recursos dar um presente a outra com menos recursos + de forma que seja causado um vínculo de relação seja paternalista, + humilhante, etc. |