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-[[!meta title="A Arte de Viver para as Novas Gerações"]]
-
-Sobre
------
-
-A Arte de Viver para as Novas Gerações, Raoul Vaneigem.
-
-Versões
--------
-
-* http://library.nothingness.org/articles/SI/en/pub_contents/5
-* http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/
-
-Trechos
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-
- The path toward simplicity is the most complex of all, and here in particular
- it seemed best not to tear away from the commonplace the tangle of roots which
- enable us to transplant it into another region, where we can cultivate it to
- our own profit.
-
- -- http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/34
-
- Gostaria que um livro como este fosse acessível às cabeças menos acostumadas com a
- linguagem das idéias. Espero não ter fracassado totalmente. Desse caos, algum dia sairão
- fórmulas capazes de atingir à queima-roupa os nosso inimigos. Até lá, que as frases
- relidas aqui e ali tenham seus efeitos. A via para a simplicidade é a mais complexa de
- todas e, especialmente nesse caso, era conveniente não arrancar ao lugar-comum as
- múltiplas raízes que poderemos transplantar a outro terreno e cultivá-las em nosso
- benefício.
-
- -- 8
-
- A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia
- de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio.
-
- -- 9
-
- O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão
- alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas
- conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de
- ser lamentável para uma boa organização social (mesmo se o suicida não tiver a
- feliz idéia de se matar no estilo dos príncipes orientais, levando com ele
- todos os seus servos: juízes, bispos, generais, policiais, psiquiatras, filósofos,
- managers, especialistas e cibernéticos).
-
- -- 36
-
- Assim que o líder do jogo se torna um chefe, o princípio hierárquico se salva, e a revolução
- se detém para presidir o massacre dos revolucionários. É preciso lembrar sempre: o projeto
- insurrecional só pertence às massas, o líder reforça-o, o chefe o trai. É entre o líder e o
- chefe que inicialmente se desenrola a luta autêntica.
-
- -- 37
-
- Resumindo, a descompressão nada mais é do que o controle dos antagonismos pelo poder.
- A oposição de dois termos toma sentido pela introdução de um terceiro. Se só existem dois
- pólos, eles se neutralizam, uma vez que cada um se define pelos valores do outro. É
- impossível escolher entre eles, entra-se no domínio da tolerância e do relativismo, tão
- querido à burguesia. Como é compreensível o interesse da hierarquia apostólica romana na
- querela entre o maniqueísmo e o trinitarismo!
-
- -- 38
-
- O poder aquisitivo é a licença de aquisição do poder. O velho proletariado
- vendia a força de trabalho para subsistir; o seu escasso tempo livre era gasto
- mais ou menos de maneira agradável em discussões, conversas, nos bares, fazendo
- amor, caminhando em festas e motins. O novo proletariado vende a força de
- trabalho para consumir. Quando não busca no trabalho forçado uma promoção
- hierárquica, o trabalhador é convidado a comprar objetos (carro, gravata,
- cultura...) que lhe atribuirão o seu lugar na escala social.
- Esta é a era em que a ideologia do consumo se torna o consumo da ideologia.
- A expansão cultural leste-oeste não é um acidente. De um lado, o homo
- consumidor compra um litro de uísque e recebe como prêmio a mentira que o
- acompanha. Do outro, o homem comunista compra ideologia e recebe como prêmio um
- litro de vodca. Paradoxalmente, os regimes soviéticos e capitalistas seguem um
- caminho comum, os primeiros graças à sua economia de produção, os segundos pela
- sua economia de consumo.
-
- -- 46
-
- Com as diferenças crescendo em número e se tornando menores, a distância
- entre ricos e pobres diminui de fato, e a humanidade é nivelada, com as
- variações de pobreza sendo as únicas variações. O ponto culminante seria a
- sociedade cibernética composta de especialistas hierarquizados segundo a sua
- aptidão de consumir e de fazer consumir as doses de poder necessárias ao
- funcionamento de uma gigantesca máquina social da qual eles seriam ao mesmo
- tempo a entrada e a saída de dados. Uma sociedade de exploradores-explorados
- onde alguns escravos são mais iguais do que outros.
-
- -- 47
-
- A história é a transformação contínua da alienação natural em alienação social,
- e também, paradoxalmente, o contínuo reforço de um movimento de contestação que
- irá dissolvê-la, “desalienando-a”. A luta histórica contra a alienação natural
- transforma a alienação natural em alienaçao social, mas o movimento de
- desalienação histórica atinge por sua vez a alienação social e denuncia a sua
- magia fundamental.
-
- [...]
-
- O apodrecimento das relações humanas pela troca e pela contrapartida está
- evidentemente ligado à existência da burguesia. Que a troca persista em uma
- parte do mundo em que se diz que a sociedade sem classes se realizou atesta que
- a sombra da burguesia continua reinar debaixo da bandeira vermelha. Enquanto
- isso, entre as pessoas que vivem nos países industrializados, o prazer de dar
- delimita muito claramente a fronteira entre o mundo do cálculo e o mundo da
- exuberância, da festa.
-
- -- 49
-
- Dom, troca, contrapartida e doação.
-
- -- 49
-
- Técnica.
-
- -- 50
-
- Desse ponto de vista, a história não passa da transformação da alienação
- natural em alienação social: um processo de desalienação transformado em um
- processo de alienação social, um movimento de libertação que produza novos
- grilhões. Embora, no final, a vontade de emancipação humana ataque diretamente
- o conjunto dos mecanismos paralisantes, ou seja, a organização social baseada
- na apropriação privada. Esse é o movimento de desalienação que vai desfazer a
- história e realizá-la em novos modos de vida.
-
- A ascensão da burguesia ao poder anuncia a vitória do homem sobre as forças
- naturais. Mas, na mesma hora, a organização social hierárquica, nascida da
- necessidade de luta contra a fome, a doença, o desconforto etc., perde sua
- justificativa e é obrigada a endossar a responsabilidade pelo mal-estar nas
- civilizações industriais. Hoje os homens já não atribuem a sua miséria à
- hostilidade da natureza, mas sim, à tirania de uma forma social totalmente
- inadequada, totalmente anacrônica. Destruindo o poder mágico dos senhores
- feudais, a burguesia condenou a magia do poder hierárquico. O proletariado
- executará a sentença.
-
- -- 50
-
- O princípio hierárquico é o princípio mágico que resitiu à emancipação dos homens e as
- suas lutas históricas pela liberdade. De agora em diante nenhuma revolução será digna
- desse nome se não implicar pelo menos a eliminação radical de toda hierarquia.
-
- -- 51
-
- Rigidamente quantificado (pelo dinheiro e depois pela quantidade de poder, por aquilo a
- que poderíamos chamar “unidades sociométricas de poder”), a troca polui todas as relações
- humanas, todos os sentimentos, todos os pensamentos. Onde quer que a troca domine, só
- sobram coisas, um mundo de homens-objetos congelados nos organogramas do poder
- cibernético: o mundo da reificação. Mas é também, paradoxalmente, a oportunidade de uma
- reestruturação radical dos nossos modelos de vida e de pensamento. Um ponto zero em que
- tudo pode verdadeiramente começar.
-
- [...]
-
- Ao sacrifício do senhor sucede o último estágio do sacrifício, o sacrifício do especialista.
- Para consumir, o especialista faz outros consumirem de acordo com um programa
- cibernético no qual a hiper-racionalidade das trocas suprimirá o sacrifício – e o homem ao
- mesmo tempo! Se a troca pura regular um dia as modalidades de existência dos cidadãos-
- robôs da democracia cibernética, o sacrifício deixará de existir. Para obedecer, os objetos
- não têm necessidade de justificativa. O sacrifício não faz parte do programa das máquinas
- assim como do seu oposto, o projeto do homem total.
-
- -- 52
-
- Contrariamente aos interesses daqueles que controlam seu uso, a técnica tende a
- desmistificar o mundo.
-
- [...]
-
- As mediações alienadas enfraquecem o homem ao tornarem-se indispensáveis. Uma
- máscara social cobre os seres e objetos. No estado atual de apropriação primitiva, essa
- máscara transforma aquilo que ela cobre em coisas mortas, em mercadorias. Não existe
- mais natureza. Reencontrar a natureza é reinventá-la como adversário vantajoso
- construindo novas relações sociais. A excrescência do equipamento material arrebenta o
- casulo da velha sociedade hierárquica.
-
- -- 55
-
- O quantitativo e o linear confundem-se. O qualitativo é plurivalente, o quantitativo,
- unívoco. A vida quantificada se torna uma linha uniforme que é seguida em direção à
- morte.
-
- -- 61
-
- que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo?
- Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob pretexto de me proteger? E como me
- reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível
- incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. Tudo se passa como se os meus
- passos me precedessem, como se pensamentos e afetos seguissem os contornos de uma
- paisagem mental que eles pensam criar, e que na realidade os modela. Uma força absurda –
- tanto mais absurda quanto se inscreve na racionalidade do mundo e parece incontestável –
- coage a saltar sem parar para atingir um solo que os meus pés nunca abandonaram. E com
- esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de
- mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto...
- A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o
-
- -- 63
-
- Ao saciar a sobrevivência por meio de uma alimentação artificial, a sociedade de consumo
- suscita um novo apetite de viver. Onde quer que a sobrevivência esteja tão garantida quanto
- o trabalho, as antigas salvaguardas transformam-se em obstáculos. Não só a luta para
- sobreviver impede de viver: uma vez que se torna uma luta sem objetivos reais, ela corrói
- iaté a própria sobrevivência, tornando precário o que era irrisório. A sobrevivência cresceu
- tanto que, se não trocar de pele, ela nos sufocará na sua pele à medida que morre.
- A proteção fornecida pelos senhores perdeu razão de ser desde que a solicitude mecânica
-
- [...]
-
- O poder já não protege, ele protege a si próprio contra todos.
-
- -- 65-66
-
- Quais são os métodos de sedução do poder? A coação interiorizada
- que assegura uma consciência tranquila baseada na mentira: o masoquismo do cidadão
- honesto. Foi de fato necessário chamar de desprendimento ao que não passava de
- castração, pintar com as cores da liberdade a escolha entre várias formas de servidão.
-
- -- 71
-
- Sedução para domesticar, ordem, morte em pequenas ou grandes doses,
- bloqueio da força criativa.
-
- -- 72
-
- Quando o rebelde começa a acreditar que luta por um bem superior, o princípio
- autoritário ganha impulso. Nunca faltaram razões à humanidade para renunciar ao
- humano. De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um
- medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida
- cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte
- essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma
- coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra “coisa” arrastando por
- toda parte o seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, abdica-se o
- mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura,
- pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da
- doença.
-
- [...]
-
- A revolução se faz todos os dias, apesar dos especialistas da revolução e em
- oposição a eles: uma revolução sem nome, como tudo aquilo que pertence à
- experiência vivida. Ela prepara, na clandestinidade cotidiana dos gestos e dos
- sonhos, a sua coerência explosiva.
-
- Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia
- pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um
- sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído na minha mente
- enquanto durmo.
-
- [...]
-
- Escrevo por impaciência e com impaciência. Para viver sem tempo morto. O que as
- outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas
- precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me
- salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem
- total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou
- menor.
-
- -- 74
-
- Arte, vida, criatividade.
-
- -- 75-77
-
- Do mesmo modo que a classe dominante tem os melhores motivos do mundo para
- negar a existência da luta de classes, assim a história da separação não pode
- deixar de se confundir com a história da dissimulação.
-
- -- 78
-
- Excetuando as máquinas de guerra, as máquinas antigas têm origem no teatro:
- gruas, roldanas, mecanismos hidráulicos eram usados como acessórios teatrais
- bem antes de transformarem as relações de produção. Este fato merece ser
- salientado: por mais longe que se recue, a dominação da terra e dos homens
- depende sempre de técnicas invariavelmente consagradas ao serviço do trabalho e
- da ilusão.
-
- -- 84
-
- Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar
- as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a
- psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos
- quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o
- ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor
- é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade
- de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas
- oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos
- na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um
- armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem-
- consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os
- quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a
- passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de
- estereótipos, é aquilo a que hoje se
-
- -- 85
-
- Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e
- assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da
- pseudo-atividade.
-
- -- 86
-
- A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na
- hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os
- estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e
- roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2)
-
- A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se
- identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a
- escolha dos modelos de identifiicação. A identificação é um estado doentio,
- mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença
- mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel
- representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também
- oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer
- substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no
- domínio do lúdico(4)
-
- [...]
-
- O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver.
-
- -- 87
-
- Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm
- na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de
- desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos
- verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos
- viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária.
- E por isso cultivamos aparências.
-
- -- 88
-
- Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os
- encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se
- conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova
- em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de
- jogo que transforma os papéis.
-
- -- 89
-
- a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou
- uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O
- paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de
- crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão.
- Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o
- paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que
- ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do
- qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório
- climatizado dos hispitais psiquiátricos.
-
- Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na
- qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias,
- sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os
- estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de
- nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um
- compromisso, por uma atividade prática.
-
- -- 90
-
- Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as
- sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte
- desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas
- contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos
- tratarão disso, se lhes dermos a chance.
-
- [...]
-
- A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os
- casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o
- poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os
- extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos
- papéis ou os recusam.
-
- -- 91
-
- Papel, Reich, couraça.
-
- -- 92
-
- Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto
- mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos.
- Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que
- não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos
- não são um crime.
-
- -- 94
-
- Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais
- o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de
- perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar
- a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da
- suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se
- uma fase clandestina de tática, a era do jogo.
-
- O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as
- manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de
- táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os
- papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos
- momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria
- ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa
- apoderar.
-
- -- 99
-
- Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui
- três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento.
- No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da
- vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação
- espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E,
- hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver
- do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um
- cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se
- reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo
- segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de
- um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de
- organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o
- homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do
- homem pelo homem e do poder hierárquico.
-
- -- 102
-
- Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um
- paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem
- justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se
- expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem
- mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos
- prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia
- individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da
- mesquinhez e do pensamento pequeno.
-
- -- 105
-
- Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a
- sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver.
-
- -- 107
-
- O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de
- quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que
- se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo
- poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no
- fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os
- lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo,
- zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um
- cemitério.
-
- [...]
-
- Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram
- uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos
- específicos!
-
- Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a
- si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua
- liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que
- resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à
- não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem
- como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que
- seu preço seja tão alto quanto a liberdade.
-
- -- 114-115
-
- Não existe ninguém, por mais alienado que seja, que não possua e não reconheça
- a si próprio uma parte irredutível de criatividade, um quarto escuro protegido
- contra qualquer intrusão de mentira e de coações. No dia em que a organização
- social estender o seu controle sobre essa parte do homem, ela reinará apenas
- sobre robôs e cadáveres.
-
- [...]
-
- Agora que a alienação do consumidor é esclarecida pela própria dialética do
- consumo, que prisão eles preparam para a subversivíssima criatividade
- individual? Eu já disse que a última saída dos dirigentes era transformar as
- pessoas em organizadoras da própria passividade.
-
- -- 125
-
- A espontaneidade - a espontaneidade é o modo de ser da criatividade individual.
- Ela é o seu primeiro jorro, ainda imaculado, não poluído na fonte e ainda não
- ameaçado de recuperação. Se nada é mais bem repartido no mundo do que a
- criatividade, a espontaneidade, pelo contrário, parece ser um privilégio. Só a
- possuem aqueles que por meio de uma longa resitência ao poder ganharam a
- consciência de seu próprio valor como indivíduos. Nos momentos revolucionários
- isso significa a maioria das pessoas. Em outros períodos, quando a revolução é
- construída dia a dia sem ser vista, são mais pessoas do que pensamos. Onde quer
- que subsista um raio de criatividade, a espontaneidade conserva as sua
- possibilidades.
-
- -- 126
-
- Só é espontâneo aquilo que não emana de uma coação interiorizada, mesmo
- subconscientemente, e que além disso escapa ao domínio da abstração alienante,
- à recuperação espetacular. Ela é mais uma conquista do que algo dado. A
- reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente
- (compare com a construção dos sonhos).
-
- [...]
-
- Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência
- da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados,
- ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao
- inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de
- si mesmo.
-
- [...]
-
- A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de
- improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado
- para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer
- do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos
- cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do
- ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os
- africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste
- essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático
- imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade
- resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da
- própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática
- e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas”
-
- -- 127
-
- A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida
- mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de
- novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos
- poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização
- da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de
- arte é a construção de uma vida apaixonante.
-
- -- 131
-
- Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor:
-
- 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal;
- 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa;
- 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética
-
- Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar
- nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas.
- À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da
- responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para
- zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito.
-
- Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência
- que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos
- trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de
- organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de
- capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria
- por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade,
- representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo,
- como diria Fourier).
-
- [...]
-
- Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos
- geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos
- cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima.
-
- [...]
-
- A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção
- desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos
- proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego.
- Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e
- programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da
- existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A
- organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo
- controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana.
-
- Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que
- proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas,
- podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional,
- Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos
- diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos
- e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos
- em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a
- proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida
- pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração
- magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo
- a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar.
-
- -- 136-137
-
- O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor
- perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa
- de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em
- oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em
- deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu
- requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas
- de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a
- presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até
- no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à
- maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os
- homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a
- entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de
- forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens.
- Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do
- julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando
- quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma
- taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido.
-
- [...]
-
- Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o
- impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o
- seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse
- abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se
- multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo
- imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os
- senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com
- a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os
- senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das
- coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada
- ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário
- destruí-las?
-
- Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são
- aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que
- nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará
- diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém
- objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de
- uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas
- isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do
- poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu
- adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da
- hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra
- magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo
- que lhe é oposto.”
-
- Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto
- contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação
- possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela
- organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da
- vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável
- da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do
- seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso
- a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão.
- Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo
- que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a
- outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria
- abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça
- demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado
- sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham
- os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência
- insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a
- sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a
- sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma.
-
- -- 138-139
-
- A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o
- adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser
- destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação
- deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da
- organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da
- arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário.
-
- [...]
-
- A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de
- qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva
- dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de
- um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou
- seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o
- acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa
- poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E
- quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já
- perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava
- superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo
- estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu
- alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a
- viver segundo as leis da adaptação ao mundo.
-
- -- 140
-
- O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de
- ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente
- favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores
- antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que
- é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma
- para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz
- estranhamente familiar.
-
- Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos
- do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou
- reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta
- para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não
- consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder,
- uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes
- fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do
- significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que
- uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da
- fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e
- as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da
- alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável
- domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor
- oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior?
-
- [...]
-
- É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação
- deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos,
- os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos
- com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para
- derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão
- para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim
- definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm
- ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento
- histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão
- para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate
- com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas.
-
- -- 142
-
- Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar
- em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos
- pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão
- um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem?
-
- -- 143
-
- O espaço é um ponto na linha do tempo, na máquina que transforma o futuro em
- passado. O tempo controla o espaço vivido, mas controla-o do exterior,
- fazendo-o passar, tornando-o transitório. Contudo, o espaço da vida individual
- não é um espaço puro, e o tempo que o arrasta não é também uma pura
- temporalidade. Vale a pena examinar a questão com mais cuidado.
-
- Cada ponto terminal na linha do tempo é único e particular, e entretanto logo
- que se acrescenta o ponto seguinte, o seu predecessor desaparece na
- uniformidade da linha, digerido por um passado que já conhece outros pontos.
- Impossível distingui-lo. Cada ponto portanto faz progredir a linha que o faz
- desaparecer.
-
- [...]
-
- Por mais que o espaço vivido seja um universo de sonhos, desejos, de
- criatividade prodigiosa, ele não passa em termos de duração de um ponto que
- sucede a outro ponto correndo segundo um único princípio, o da destruição. Ele
- aparece, se desenvolve e desaparece na linha anônima do passado na qual o seu
- cadáver se torna matéria-prima aos lampejos da memória e aos historiadores.
-
- [...]
-
- O espaço cristalino da vida cotidiana rouba uma parcela de tempo exterior
- graças à qual se cria uma pequena área de espaço-tempo unitário: é o
- espaço-tempo dos momentos da criatividade, do prazer, do orgasmo. O lugar dessa
- alquimia é minúsculo, mas a intensidade vivida é tal que exerce na maioria das
- pessoas um fascínio sem igual. Visto pelos olhos do poder, observando do
- exterior, esses momentos de paixão não passam de um ponto irrisório, um
- instante drenado do futuro pelo passado. A linha do tempo objetivo nada sabe –
- e nada quer saber – do presente como presença subjetiva imediata. E por sua
- vez, a vida subjetiva apertada no espaço de um ponto – a minha alegria, o meu
- prazer, as minhas fantasias – não gostaria de saber nada sobre o
- tempo-que-escoa, o tempo linear, o tempo das coisas. Ela deseja, pelo
- contrário, aprender tudo do seu presente já que afinal ela nada mais é que um
- presente.
-
- -- 148
-
- O projeto de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida passa pela
- análise daquilo que o empobrece. O tempo linear só domina os homens na medida
- em que lhes impede de transformar o mundo, na medida em que os coage portanto a
- se adptarem. Para o poder, o inimigo número um é a criatividade individual
- irradiando livremente. E a força da criatividade está no unitário. Como se
- esforça o poder para quebrar a unidade do espaço-tempo vivido? Transformando a
- experiência vivida em mercadoria, lançando-a no mercado do espetáculo, ao sabor
- da oferta e da procura por papéis e estereótipos (foi isso que discuti nas
- páginas dedicadas aos papéis, no capítulo XV).
-
- -- 150
-
- Como distrair os homens de seu presente a não ser atraindo-os à esfera na qual o tempo
- escoa? Essa tarefa cabe ao historiador. O historiador organiza o passado, fragmentado-o
- conforme a linha oficial do tempo, depois arruma os acontecimentos em categorias ad hoc.
- Essas categorias, de fácil uso, põem os acontecimentos passados em quarentena. Sólidos
- parênteses os isolam, os contêm, os impedem de tomar vida, de ressuscitar, de rebentar de
- novo nas ruas da nossa vida cotidiana. O acontecimento está, por assim dizer, congelado. É
- proibido juntar-se a ele, refazê-lo completá-lo, tentar a sua superação. Aí está ele,
- conservado para sempre e suspenso para a contemplação dos estetas. Uma leve mudança de
- ênfase e hei-lo transposto do passado ao futuro. O futuro não é mais que historiadores se
- repetindo. O futuro que eles anunciam é uma colagem de recordações, das suas
- recordações. Vulgarizada pelos pensadores stalinistas, a famosa noção do sentido da
- história acabou esvaziando de toda humanidade tanto o futuro quanto o passado.
-
- -- 151
-
- Construir uma arte de viver é hoje uma reivindicação popular. É necessário
- concretizar em um espaço-tempo apaixonadamente vivido as pesquisas de todo um
- passado artístico que na verdade foram postas de lado de modo descuidado.
-
- Neste caso as recordações as quais me refiro, são recordações de feridas
- mortais. Aquilo que não é terminado apodrece. O passado é erroneamente tratado
- como irremediável. Ironicamente, aqueles que falam dele com um dado definitivo
- não param de triturá-lo, de falsificá-lo, de arranjá-lo ao gosto do dia. Eles
- agem como o pobre Winston, em 1984 de George Orwell, reescrevendo artigos de
- jornais antigos que foram contraditos pela evolução dos acontecimentos.
-
- [...]
-
- Existe apenas uma forma valorosa de esquecer : aquela que apaga o passado
- realizando-o. Aquela que salva da decomposição pela superação. Os fatos, por
- mais longe que se situem, nunca disseram sua última palavra. Basta uma mudança
- radical no presente para que desçam das estantes do museu e ganhem vida aos
- nossos pés.
-
- -- 152
-
- Construir o presente é corrigir o passado, mudar a psicogeografia do nosso
- ambiente, libertar de sua ganga os sonhos e os desejos insatisfeitos, deixar as
- paixões individuais harmonizarem-se no coletivo. O intervalo de tempo que
- separa os revoltados de 1525 dos rebeldes muletistas, Spartakus de Pancho Villa
- só pode ser transposto pela minha vontade de viver.
-
- Esperar por amanhãs festivos é o que impossibilita as nossas festas de hoje. O
- futuro é pior que o oceano: ele nada contém. Planejamento, prospecção, plano a
- longo prazo: é o mesmo que especular sobre o teto da casa quando o primeiro
- andar não existe mais. E contudo se construíres bem o presente o resto virá por
- consequência.
-
- [...]
-
- Na zona da criação verdadeira o tempo se dilata. No inautêntico, o tempo se
- acelera.
-
- -- 153
-
- A tarefa é sempre resolver as contradições do presente, não parar no meio do
- caminho, não se deixar distrair, tomar o caminho da superação. Essa tarefa é
- coletiva, de paixão, de jogo (a eternidade é o mundo do jogo, diz Boehme). Por
- mais pobre que seja o presente sempre contém a verdadeira riqueza, a da
- construção possível. Esse é o poema interrompido que me enche de alegria.
-
- -- 153-154
-
- A paixão de criar é a base do projeto de realização (2), a paixão do amor é a
- base do projeto de comunicação (4), a paixão do jogo é a base do projeto de
- participação (6). Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade
- repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença atualmente observável
- na maioria das pessoas de uma mesma vontade de construir uma vida apaixonante
- (3). O erotismo é a coerência espontânea que dá unidade prática à tentativa de
- enriquecer a experiência vivida. ( 5)
-
- [...]
-
- A construção da vida cotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional
- e do passional. O mistério deliberadamente tecido desde sempre a respeito da
- vida tem como principal objetivo dissimular a trivialidade da sobrevivência. De
- fato, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. O
- fascínio que a promessa de uma vida rica e multidimensional exerce sobre cada
- indíviduo adquire, necessariamente, o aspecto de um projeto submetido no todo
- ou em parte ao poder social encarregado de impedi-lo. Assim como o governo dos
- homens recorre essencialmente a um tríplice modo de opressão – a coação, a
- mediação alienante e a sedução mágica – também a vontade de viver encontra
- força e coerência na unidade de três projetos indissociáveis : a realização, a
- comunicação, a participação.
-
- Em uma história dos homens que não se reduzisse à história da sobrevivência,
- sem por outro lado se dissociar dela, a dialética desse triplo projeto, aliada
- à dialética das forças produtivas explica a maioria dos comportamentos. Não há
- motim ou revolução que não revele uma busca apaixonada por uma vida exuberante,
- por uma transparência das relações humanas e por um modo coletivo de
- transformação do mundo. De fato, três paixões fundamentais parecem animar a
- evolução histórica, paixões que são para a vida aquilo que a necessidade de
- alimento e proteção são para a sobrevivência. A paixão da criação, a paixão do
- amor e a paixão do jogo interagem com a necessidade de alimento e de proteção,
- tal como a vontade de viver interfere continuamente na necessidade de
- sobreviver.
-
- -- 155
-
- A mania cartesiana de fragmentar, e de progredir de forma gradual, produz
- necessariamente uma realidade coxa e incompleta. Os exércitos da Ordem só
- recrutam mutilados.
-
- -- 156
-
- Mostrei de que maneira a organização social hierárquica constrói o mundo
- destruindo os homens; de que modo o aperfeiçoamento do seu mecanismo e das suas
- redes a fez funcionar como um computador gigante cujos programadores são também
- programados; de que modo, enfim, o mais frio dos monstros frios encontra a sua
- realização no projeto do estado cibernético.
-
- Nessas condições a luta pelo pão de cada dia, o combate contra o desconforto, a
- busca de uma estabilidade de emprego e de uma segurança material são, na frente
- social, igualmente expedições ofensivas que tomam lenta mas seguramente o
- aspecto de ações de retaguarda (mas não se deve subestimar a importância
- delas).
-
- Apesar de falsos compromissos e de atividades ilusórias, uma energia criadora
- continuamente estimulada não é absorvida mais depressa suficientemente sob a
- ditadura do consumo. [...] O que acontecerá a essa exuberância repentinamente
- disponível, a esse excesso de robustez e de virilidade que nem as coações nem a
- mentira conseguiram verdadeiramente desgastar?
-
- Não recuperada pelo consumo artístico e cultural – pelo espetáculo ideológico –
- a criatividade volta-se espontaneamente contra as condições e as garantias de
- sobrevivência. Os rebeldes não têm nada a perder a não ser sua sobrevivência.
- Contudo, podem perdê-la de dois modos : perdendo a vida ou construindo-a. Já
- que a sobrevivência é uma espécie de morte lenta, existe uma tentação, não
- desprovida de sentimentos genuínos, de acelerar o movimento e morrer mais
- depressa como pisar fundo no acelerador de um carro de corrida. “Vive-se”
- então negativamente a negação da sobrevivência. Ou pelo contrário, as pessoas
- podem se esforçar por sobreviver como anti-sobreviventes concentrando sua
- energia no enriquecimento da vida cotidiana. Negam a sobrevivência
- incorporando-a em uma atividade lúdica construtiva. Essas duas soluções
- promovem a tendência unitária e contraditória da dialética da decomposição e da
- superação.
-
- -- 157
-
- Nietzsche.
-
- -- 158
-
- O fervor dos soldados rasos faz a disciplina dos exércitos: a única coisa que a
- cachorrada policial aprende é a hora de morder e a hora de rastejar.
-
- [...]
-
- Se a violência inerente aos grupos de jovens delinquentes deixasse de se
- dissipar em ações espetaculares e tornar-se insurrecional, provocaria sem
- dúvida uma reação em cadeia, uma onda de choque qualitativa. [...] Se os
- blouson noirs atingiram uma consciência revolucionária pela simples compreensão
- daquilo que já são e pela simples exigência de querer ser mais, é provável que
- determinem o epicentro da inversão de perspectiva. Federar os seus grupos seria
- o ato que simultaneamente manifestaria e permitiria essa consciência.
-
- -- 159
-
- Ninguém se desenvolve livremente sem espalhar a liberdade no mundo.
-
- -- 163
-
- Os especialistas da comunicação organizam a mentira em proveito dos senhores de
- cadáveres.
-
- [...]
-
- - quanto mais me desligo do objeto do meu desejo, e quanto mais força objetiva
- dou ao objeto do meu desejo, mais o meu desejo se torna despreocupado em
- relação ao seu objeto;
-
- - quanto mais me desligo do meu desejo como objeto e mais força objetiva dou ao
- objeto do meu desejo, mais o meu desejo encontra sua razão de ser no ser
- amado.
-
- -- 165
-
- A verdadeira escolha é entre a sedução espetacular – a conversa fiada – e a
- sedução pelo qualitativo – a pessoa que é sedutora porque não se preocupa em
- seduzir.
-
- -- 166
-
- O prazer é o princípio de unificação. O amor é a paixão pela unidade em um
- momento comum. A amizade é a paixão pela unidade em um projeto comum.
-
- -- 167
-
- Sem predizer os detalhes de uma sociedade em que a organização das relações
- humanas esteja aberta sem reservas à paixão do jogo, podemos no entanto prever
- que ela apresentará as seguintes características:
-
- - recusa de chefes e de qualquer hierarquia
- - recusa de sacrifício
- - recusa de papéis
- - liberdade de realização autêntica
- - transparência das relações sociais
-
- -- 170
-
- São, evidentemente, grupos numericamente pequenos, as micrissociedades, que
- apresentam as melhores condições de experimentação. Nelas, o jogo regulará
- soberanamente os mecanismos da vida em comum, a harmonização dos caprichos, dos
- desejos das paixões.
-
- [...]
-
- O que aconteceria então se as pessoas começassem a brincar com os papéis da
- vida real?
-
- -- 171
-
- Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou essa pessoa se
- arruína ou arruína o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um
- especialista em jogo coletivo.
-
- [...]
-
- Qual é o melhor provocador? O líder do jogo que se torna dirigente.
-
- [...]
-
- Diferentemente do provocador, o traidor aparece espontaneamente em um grupo
- revolucionário. Ele surge sempre que a paixão do jogo desaparece e junto com
- ela o projeto de participação real. O traidor é um homem que não encontrando
- como se realizar autenticamente por meio do modo de participação que lhe é
- proposto, decide jogar contra essa participação não para corrigi-la mas para
- destrui-la. traidor é a doença senil dos grupos revolucinarios.
-
- [...]
-
- Um exército eficientemente hierarquizado pode ganhar uma guerra, mas não uma
- revolução. Uma horda indisciplinada não consegue a vitória nem na guerra, nem
- na revolução. O problema é organizar sem hierarquizar, ou em outras palavras,
- procurar que o líder do jogo não se torne um chefe. O espírito lúdico é a
- melhor garantia contra a esclerose autoritária. Nada resiste a criatividade
- armada. Sabemos que as tropas de Villa e de Makhno derrotaram os mais
- aguerridos batalhões de exército.
-
- -- 172
-
- A organização hierárquica e a completa falta de disciplina são ambas ineficientes.
-
- [...]
-
- Como manter a disciplina necessária ao combate numa tropa que se recusa
- obedecer servilmente a um chefe? Como evitar a falta de coesão? Na maioria das
- vezes, os exércitos revolucionários sucumbem ao mal da submissão a uma causa ou
- a busca inconsequente do prazer.
-
- [...]
-
- A melhor tática forma uma só unidade com o cálculo hedonista. A vontade de
- viver, brutal, desenfreada é para o combatente a mais mortífera arma secreta.
- Essa arma volta-se contra aqueles que a ameaçam: para defender a pele, o
- soldado tem todo o interesse em atirar nos superiores.
-
- -- 173
-
- Quando uma canalização de água arrebentou no laboratório de Pavlov, nenhum dos
- cães que sobreviveram à inundação conservou o menor traço do seu longo
- condicionamento. O maremoto das grandes transformações sociais teria menos
- efeito sobre os homens do que uma inundação sobre cães?
-
- -- 178
-
- Aqueles que se aproximam da revolução afastando-se de si mesmos – como todos os
- militantes fazem – se aproximam de costas para trás às avessas.
-
- -- 180