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-[[!meta title="O Processo civilizador - Volume 1"]]
-
-## Índice
-
-* Processo civiliza-DOR.
-* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
-* Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
-* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
-* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
-* [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg)
- (Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))
- e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/).
-* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta,
- conceito explanado por Gilbert Ryle em seu livro The Concept of Mind (1949)).
-
-## Excertos
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-### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro
-
- Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi
- muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a
- “civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro),
- prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que
- tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana —
- nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este
- lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a
- Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem
- como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim
- deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche.
-
- Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste
- em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou
- mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é
- um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um
- processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal
- interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele
- constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o
- passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna
- como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que
- prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto
- pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor.
- Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou
- esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo
- lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.*
-
- É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se
- civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em
- mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai
- pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à
- luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas,
- sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da
- cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria
- civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade.
-
- Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que
- a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão
- do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse,
- Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à
- ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento
- das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir,
- e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora.
-
- [...]
-
- Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao
- contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um
- “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora
- seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado
- à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de
- nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida
- melhor, ou uma cura.
-
- [...]
-
- O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe
- um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que
- fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na
- escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma
- medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os
- historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a
- medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou
- “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa
- a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade
- que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível,
- menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu
- ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um
- caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por
- mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos,
- vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval.
-
-### Notas
-
-Do Capítulo I:
-
- Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as
- culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem,
- decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas,
- crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem,
- como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta
- de Newton.”
-
-### Kultur e Zivilization
-
- O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
- da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
- científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
-
- [...]
-
- Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
- útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
- apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
- A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
- expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
- Kultur.
-
- [...]
-
- O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
- superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
- autoimagem do estrato intelectual de classe média.
-
-### Vanguarda
-
- Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
- não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
- manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
- sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
- Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
- descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
- mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
- pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
- membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
- maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
- em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
- cortesã.
-
- Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
- ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
- solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
- Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
- geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.
-
- [...]
-
- E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
- andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
- Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
- murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
- um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
- ver um burguês entre seus membros.
-
- “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
- aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
- de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
- que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
- guardadores de porcos.”
-
- Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
- formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
- livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
- referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
- situação social muito específica.
-
- No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
- as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
- dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
- bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
- quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
- como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
- de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
- fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
- médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
- pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
- a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.
-
- Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
- ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
- cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
- conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
- título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.
-
- O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
- avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
- semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
- de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
- August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.
-
- [...]
-
- De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
- paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
- aristocrática na Alemanha.
-
- [...]
-
- A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
- é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
- A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
- Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
- flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
- erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
- oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
- ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
- sociedade onde se integram, são interesses marginais.
- O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
- e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
- política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
- a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
- fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
- política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
- Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
- arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
- do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.
-
- [...]
-
- Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
- alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
- com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
- com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
- descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
- anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
- de 1827):
-
- Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
- Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
- porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
- chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
- país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
- Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
- é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
- isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
- fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
- viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.
-
- Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
- reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
- rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
- de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
- ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
- transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
- pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
- onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
- essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
- todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
- desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
- no seu 24o ano de vida.
-
- [...]
-
- Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
- disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
- importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
- essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
- ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
- média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.
-
-### Civilização como máquina automática em constante reforma
-
- No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
- de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
- Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
- indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
- despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
- decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
- ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
- parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
- em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
- concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
- inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
- reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
- capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
- uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
-
- [...]
-
- A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
- todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
- verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
- civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
- governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
- florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
- de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
- do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
- que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
- crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
- permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
- de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
- conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
- desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
- governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.
-
- [...]
-
- Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
- conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
- Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
- Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
- uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
- variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30
-
- No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
- civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
- frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
- caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
- civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
- estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
- não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
- completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
- conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
- nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
- moral.”32
-
- O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
- crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
- da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
- “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
- expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
- intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
- medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
- em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
- “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
- nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
- reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
- designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
- individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
- sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
- encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
- A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
- civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
- processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
- não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
- lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
- barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
- sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.
-
- Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
- movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
- estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
- no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
- ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
- ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
- moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
- complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
- membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
- para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
- Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
- população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
- condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
- burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
- processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
- interna do país pelos reis.
-
-### Ruderia
-
- Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham.
-
- [...]
-
- A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento
- “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro.
- Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este
- decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante
- descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens
- excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante.
- O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no
- braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida,
- enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano,
- preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
- com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o
- pé. O mesmo se aplica ao escarro.
-
- Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a
- mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas
- de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar
- alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por
- exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos
- dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou
- estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas
- preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós,
- materializações de uma estrutura mental e emocional diferente.
-
- [...]
-
- Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de
- mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para
- nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos
- tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes
- para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as
- quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e
- rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras
- mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz
- Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende
- as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente
- perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as
- mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um
- dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa.
-
- Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam
- extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no
- casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca
- comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer
- a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não
- é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta:
- “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e
- demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na
- quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em
- algum lugar.”
-
- [...]
-
- Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens
- alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã:
- cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são
- apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e
- crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava
- as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas
- a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar
- da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas
- escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em
- seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e
- molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho
- melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o
- vinho não lhe serve, procure outras acomodações.
-
- [...]
-
- Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões,
- tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e
- para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum
- emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou
- tentar soltar ventosidades intestinais).
-
- [...]
-
- É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse
- um porrete: segure-as sempre com os dedos.
-
-### Conduta
-
- A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos
- sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo
- um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que
- na Idade Média.
-
- Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa
- era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares
- segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes.
- Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre
- a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente.
- Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de
- que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam
- sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados
- sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro
- à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal
- da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o
- aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o
- Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma
- direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos
- adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo
- menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes
- origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de
- grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade.
-
- Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e
- em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma
- hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos
- de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova
- aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento
- uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura
- alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma
- extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é
- neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e
- outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em
- sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não
- bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso
- e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e
- não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em
- conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
- semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As
- regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito
- ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36
-
- [...]
-
- A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com
- frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém,
- mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse
- momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a
- pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se
- imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e
- relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um
- superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para
- inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência
- física.
-
- Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de
- comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle
- social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda
- a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de
- boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais,
- evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos
- séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só
- conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas.
- Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo
- de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de
- policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o
- modelo de comportamento.
-
- [...]
-
- 8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo
- porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer
- — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais
- curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única
- fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere.
- Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento
- dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma
- série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do
- processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções,
- o patamar, que se alarga, da aversão.
-
- [...]
-
- o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não
- como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de
- movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes.
-
- [...]
-
- Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e
- os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as
- pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem
- cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se
- tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo
- hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É
- errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes
- com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se
- assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca,
- lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o
- pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um
- dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados
- em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por
- grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma,
- como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em
- conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.]
-
-### Dinâmica
-
- A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos
- poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”.
-
- As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns
- aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa
- ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes
- discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se
- aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande
- extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro
- do que na primeira versão.
-
- [...]
-
- Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo
- assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as
- tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em
- diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de
- conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento
- ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas,
- através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global
- clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são
- ouvidas em conjunto.
-
- Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia
- de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias
- origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento.
-
- De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de
- corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige
- principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na
- corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso.
-
- Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a
- atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo
- particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho,
- que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o
- autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes
- bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que
- poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos
- têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender
- os refinamentos da polidez.”
-
- Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de
- livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é
- importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são
- escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo
- dos fechados círculos da aristocracia de corte.
-
-Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
-
- O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as
- honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar,
- o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o
- comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se
- supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do
- interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que
- demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte
- espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados
- e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem
- assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação
- da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que
- estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é
- desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo,
- sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o
- movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte
- sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do
- comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e
- acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de
- desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o
- avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
- como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
- natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
-
-Tecnologia:
-
- Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
- série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
- notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
- uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
- classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
- civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
- força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
- sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
- garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
- permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
- tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
- novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
- outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
- observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.
-
- O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
- consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
- igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
- refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
- esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
- ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
- rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.
-
-Forma da curva:
-
- Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma:
- em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da
- sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em
- seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo
- aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma
- conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um
- novo padrão de maneiras à mesa.
-
- Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido,
- embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da
- conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância
- como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha
- o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a
- base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e
- produzem torna-se mais importante que suas maneiras.
-
-"Delicadeza" e padronização:
-
- É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a
- sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por
- várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela,
- também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação
- extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir
- que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo
- texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a
- sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a
- própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão
- delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam
- mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a
- colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas
- queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente
- na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim.
-
- Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos
- estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa
- mudança.
-
- Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa
- está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é
- servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo
- estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social.
-
- Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim
- dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo
- não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e
- instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no
- emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas
- investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais
- insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de
- comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como
- o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão —
- como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo
- — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização
- em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo
- na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para
- atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a
- condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o
- desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada
- vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos
- desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande
- lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo
- por algumas modificações.
-
-Transmissão e abrangência da análise:
-
- A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma
- sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense
- para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na
- França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser
- considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos
- movimentos individuais.
-
- [...]
-
- a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito
- simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais
- abrangente.
-
-Fala, jargão a partir de um duplo movimento:
-
- Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de
- movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a
- aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é
- influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo
- para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no
- século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de
- propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à
- régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro
- exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima
- a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte
- gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz
- também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para
- os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente
- assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em
- uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos
- círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de
- la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na
- burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente
- burgueses”.
-
- [...]
-
- Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte
- tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas
- linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”,
- “afetadas demais”.
-
- [...]
-
- 10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta
- incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de
- passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e
- incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar
- expressões?”
-
- Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à
- primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a
- esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os
- membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as
- usam.
-
- [...]
-
- “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que
- não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza
- que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as
- leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.”
-
- Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem.
- Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta.
- Os juízos de valor são apodícticos.
-
- [...]
-
- Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito
- novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo.
- Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens
- du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são
- conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade.
-
-Motivos ou razões "higiênicas":
-
- A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte
- do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também
- evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas
- argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que
- outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma
- expressão linguística é preferível a outra.
-
- Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX.
- Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as
- mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais
- rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”.
- Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses
- costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século
- XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as
- pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações
- racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras.
-
- [...]
-
- Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na
- formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais
- e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes
- foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na
- motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas
- para motivar a “fala correta”.
-
-Tendência ao aumento do embaraço:
-
- Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de
- embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte
- e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem
- exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta
- em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não
- aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do
- embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica,
- os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a
- estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se
- difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau
- de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente
- racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais.
- Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham
- “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com
- outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob
- pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será
- parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos
- tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte
- esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a
- “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de
- sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de
- uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro
- lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica
- nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A
- estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a
- despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta
- conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por
- uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e
- eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a
- experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente
- inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente,
- talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não
- esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será
- confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que
- condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de
- comportamento.
-
-Difusão e cristalização:
-
- Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a
- “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do
- comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam
- sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras
- desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas
- estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente
- pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a
- segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e,
- por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela
- certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para
- classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo,
- condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem
- possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento,
- um avanço no patamar do embaraço.
-
- O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —,
- processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de
- mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma
- cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza
- em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da
- cristalização como causa da transformação.
-
-### Família como unidade de consumo
-
- O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes
- pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais
- importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59
- como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em
- seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como
- fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos,
- mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a
- família torna-se basicamente uma unidade de consumo.
-
-### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável
-
- Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram
- suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual
- maneira, suprimem essas características em seus alimentos.
-
- [...]
-
- A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se,
- com raras exceções, ao trincho do animal inteiro.
-
- O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte
- importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser
- julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que
- o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém,
- é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue
- ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o
- processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este
- ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que
- ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo
- avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a
- transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas,
- constitui uma típica curva civilizadora.
-
- Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a
- fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais
- que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi
- efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo
- é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente
- reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa.
-
- [...]
-
- Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que
- as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a
- suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras,
- oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar
- de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação
- inescapável.
-
- À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas
- configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no
- emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As
- instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada
- vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador
- é tão limitado quanto possível.
-
- Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume
- há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há
- muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente
- incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem
- eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao
- fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China,
- não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de
- funcionários públicos eruditos.
-
-### Pedagogia da proibição
-
- Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas,
- mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de
- dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
- difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
- amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez
- sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos
- através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente
- reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente
- alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como
- natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses
- sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente
- de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar
- alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é
- repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado
- com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o
- hábito, sem ser induzido por outra pessoa.
-
- Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à
- força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que
- um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo
- adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas
- por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta,
- a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o
- fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são
- moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão
- externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado
- neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La
- Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os
- dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros
- um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as
- mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a
- marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de
- qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora
- inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente
- reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole
- que opera mesmo contra seus desejos conscientes.
-
- Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão
- do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em
- forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar
- processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um
- paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e
- psicogênese.
-
- [...]
-
- Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função
- de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada
- para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é
- bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim
- de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social,
- muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a
- renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos
- de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente
- com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente
- aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como
- vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a
- referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para
- condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde
- recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos
- e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel
- importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se
- perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo
- praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de
- racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é,
- fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos
- adultos.
-
- [...]
-
- Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de
- natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se
- opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais
- tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para
- compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX
- é que aparece uma ligeira relaxação.
-
-Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
-boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
-os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
-numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas e naturalizadas
-geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
-sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
-desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
-épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua:
-
- Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar
- como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito
- instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo
- a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é
- encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais
- sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo
- que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas —
- adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito
- delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas
- envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que
- nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da
- Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes
- altas.
-
- Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as
- referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”.
- Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras
- que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao
- associativamente as lembre é evitado.
-
- Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o
- processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66
- sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado
- antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse
- tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é
- sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se
- adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do
- processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são
- acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso
- mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão
- naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram
- portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra.
-
- [...]
-
- Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se
- encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado
- acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos
- beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os
- Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a
- interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na
- corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso
- dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio.
-
- O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
- elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus
- socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa,
- compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior,
- governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a
- principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de
- impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se
- particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
- socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.
-
-### Segunda natureza
-
- No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas
- próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No
- estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não
- havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um
- hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está
- sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas
- quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões
- sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da
- pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto
- muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se
- torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a
- interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada
- vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente
- inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos
- primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de
- seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em
- um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas.
-
- [...]
-
- Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
- não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
- modelada segundo a estrutura social.
-
-### Polidez: condicionamento, isolamento e segredo; distância entre adultos e crianças
-
- Nessa sociedade hierarquicamente estruturada, todos os atos praticados na
- presença de numerosas pessoas adquiriam valor de prestígio. Por este motivo, o
- controle das emoções, aquilo que chamamos “polidez”, revestia uma forma
- diferente da que adotou mais tarde, época em que diferenças externas em
- categoria haviam sido parcialmente niveladas. O que se menciona aqui é um caso
- especial de intercâmbio entre iguais (que uma pessoa não deve servir outra), e
- que mais tarde se torna a prática geral. Em sociedade, todos se servem
- pessoalmente e todos começam a comer no mesmo momento.
-
- A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se
- uma infração repugnante mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de
- categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo
- a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se
- tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em
- qualquer caso. A referência social à vergonha e ao embaraço desaparece cada vez
- mais da consciência. Exatamente porque a injunção social de não se mostrar ou
- desincumbir-se de funções naturais opera nesse momento no tocante a todos e é
- gravada nesta forma na criança, ela parece ao adulto uma injunção de seu
- próprio ser interno e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total e
- automático.
-
- 5. Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente
- regulação ou moldagens das necessidades instintivas, porém, só se tornaram
- possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um
- aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema
- de eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais
- discretos. A situação não foi diferente no tocante às maneiras à mesa. O
- processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar
- de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e,
- decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas
- científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases
- sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas
-
- Uma vez posta em movimento a reformulação das necessidades humanas, devido à
- transformação generalizada das relações entre os homens, o desenvolvimento de
- aparelhagem técnica correspondente ao padrão mudado consolidou os novos hábitos
- em um grau extraordinário. Este aparelho contribuiu para a reprodução constante
- do padrão e para sua disseminação.
-
- Não deixa de ser interessante observar que hoje [década de 1930], época em que
- este padrão de conduta se consolidou tanto que é aceito como inteiramente
- natural, certa relaxação está começando, sobretudo em comparação com o século
- XIX, pelo menos no que diz respeito a referências verbais a funções corporais.
- [...] Mas isto, tal como os costumes modernos de banho e dança, é possível
- apenas porque o nível habitual de autocontrole, técnica e institucionalmente
- consolidado, a capacidade do indivíduo de restringir suas necessidades e
- comportamento de acordo com os sentimentos mais atuais sobre o que é
- desgostoso, foram atingidos. O que se observa é uma relaxação dentro do
- contexto de um padrão já firmemente radicado.
-
- 6. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por
- uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das
- crianças. Estas têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de
- vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva
- delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem
- específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão
- dos séculos. Nisto, os pais são apenas os instrumentos, amiúde inadequados, os
- agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros
- instrumentos, é sempre a sociedade como um todo, o conjunto de seres humanos,
- que exerce pressão sobre a nova geração, levando-a mais perfeitamente, ou
- menos, para seus fins.
-
- [...]
-
- O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior
- do que o imposto às crianças. Era pequena, medida pelos padrões de hoje, a
- distância que separava adultos de crianças.
-
- [...]
-
- De modo geral, sob as pressões do condicionamento, impulsos desse tipo
- desapareceram da consciência do adulto no estado de vigília. Só a psicanálise é
- que os descobre sob a forma de desejos insatisfeitos ou irrealizáveis, que são
- descritos como o nível inconsciente ou onírico da mente. E estes desejos têm,
- de fato, em nossa sociedade, o caráter de um resíduo “infantil” porque o padrão
- social dos adultos torna necessária a completa supressão e transformação dessas
- tendências, de modo que elas parecem, quando ocorrem em adultos, um “resto” da
- infância.
-
- [...]
-
- A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer
- positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais
- exatamente, está tornando esse prazer “privado” e “secreto” (isto é,
- reprimindo-o no indivíduo), enquanto fomenta emoções negativamente carregadas —
- desagrado, repugnância, nojo — como os únicos sentimentos aceitáveis em
- sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos
- impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do
- indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da
- personalidade e o comportamento de adultos e crianças.
-
- [...]
-
- Está avançando a “conspiração do silêncio”. Ela se baseia na pressuposição —
- que evidentemente não podia ser feita à época da edição anterior — de que todos
- os detalhes são conhecidos dos adultos e podem ser controlados no seio da
- família.
-
-### Interesse instintivo remanescente
-
- O uso do lenço tornou-se generalizado, pelo menos entre as pessoas que alegam
- saber “como se comportar”. Mas o uso das mãos não desapareceu inteiramente.
- [...] Quase parece que inclinações que ficaram sujeitas a certo controle e
- comedimento com a adoção do lenço estariam, dessa maneira, procurando uma nova
- maneira de se manifestar. De qualquer modo, uma tendência instintiva que
- aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou
- mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas
- secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo
- histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é “normalmente”
- visível apenas em crianças.
-
-### Culpa e neuroses
-
- Como em outros hábitos infantis, o aviso médico aparece agora em conjunto ou em
- lugar do social como instrumento de condicionamento, com referência ao mal que
- pode decorrer de fazer “tal coisa” com frequência excessiva. Vemos aí um
- exemplo de mudança na maneira de condicionar alguém, que já havia sido
- considerada de outros pontos de vista. Até essa ocasião, os hábitos eram quase
- sempre julgados claramente em sua relação com outras pessoas e se eram
- proibidos, pelo menos na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos
- ou embaraçosos para terceiros ou porque revelasse “falta de respeito”. Mas
- agora, os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que
- possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações
- socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao
- embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está
- sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral”
- preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”:
- condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por
- esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável,
- uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do
- indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria
- saúde ou dignidade humana. Só com o aparecimento dessa maneira de consolidar
- hábitos ou, em outras palavras, de condicionamento, que ganha predominância com
- a ascensão da classe média, é que o conflito entre impulsos e tendências
- socialmente inadmissíveis, por um lado, e o padrão de exigências sociais feitas
- ao indivíduo, por outro, assume a forma rigorosamente definida e fundamental às
- teorias psicológicas dos tempos modernos — acima de tudo, à psicanálise. É bem
- possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje
- por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de
- uma elucidação psicogenética e sociogenética.
-
-### Estágios
-
- No estágio da aristocracia de corte, as restrições impostas às inclinações e
- emoções baseavam-se principalmente em consideração e respeito devidos a outras
- pessoas e, acima de tudo, aos superiores sociais. No estágio subsequente, a
- renúncia e o controle de impulsos são muito menos determinados por pessoas
- particulares. Expressadas provisória e aproximativamente, nesse instante, mais
- diretamente do que antes, são as compulsões menos visíveis e mais impessoais da
- interdependência social, a divisão do trabalho, o mercado, a competição, que
- impõem restrições e controle aos impulsos e emoções. São essas pressões, e os
- correspondentes tipos de explicação e condicionamento acima mencionados, que
- fazem parecer que o comportamento socialmente desejável seja gerado
- voluntariamente pelo próprio indivíduo, por sua própria iniciativa. Isto se
- aplica à regulação e às restrições de impulsos necessárias ao “trabalho”, e
- também a todo padrão de acordo com o qual eles são modelados nas sociedades
- industrializadas burguesas.
-
- [...]
-
- Em ambos os casos, na sociedade aristocrática da corte e nas sociedades
- burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente
- controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado
- por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da
- civilização, será demonstrado adiante.
-
- [...]
-
- Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro, como
- de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto “primitivas” como
- “civilizadas”. O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são
- sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que imaginários —
- isto é, por controles externos — ao passo que, nas últimas, são transformados
- mais ou menos completamente em controles internos. As tendências proibidas (por
- exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem em parte da consciência, sob
- pressão desse controle interno, ou, como poderia ser também chamado, do
- superego e do “hábito de previsão”. O que sobra na consciência como motivação
- da ansiedade é alguma consideração de longo prazo. Assim, em nossa época o medo
- de escarrar, e os sentimentos de vergonha e repugnância nos quais isto se
- expressa, concentram-se na ideia mais precisamente definida e logicamente
- compreensível de certas doenças e suas “causas”, e não em torno da imagem de
- influências mágicas, deuses, espíritos, ou demônios. Mas a série de exemplos
- mostra também com grande clareza que a compreensão racional das origens de
- certas doenças, do perigo do esputo como transmissor, não é a causa primária do
- medo e da repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás
- das mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar.
-
- [...]
-
- Vale a pena deixar esclarecido, de uma vez por todas, que algo que sabemos ser
- prejudicial à saúde de maneira alguma desperta necessariamente sentimentos de
- desagrado ou vergonha. E, reciprocamente, algo que desperta esses sentimentos
- não tem que ser prejudicial à saúde. Alguém que coma hoje barulhentamente ou
- com as mãos provoca profundo desagrado, mas sem que haja o menor receio pela
- saúde. E nem a ideia de ler com má iluminação nem a de gás venenoso, por
- exemplo, despertam sentimentos de desagrado ou vergonha remotamente
- semelhantes, embora sejam óbvias suas más consequências para a saúde. Desta
- maneira, o nojo da expectoração, e os tabus que a cercam, aumentam muito antes
- que as pessoas tenham uma ideia clara da transmissão de certas doenças pelo
- escarro. O que inicialmente prova e agrava os sentimentos de nojo e as
- restrições é a transformação das relações e dependência humanas.
-
- [...]
-
- A motivação fundada na consideração social surge muito antes da motivação por
- conhecimento científico. O rei, como “sinal de respeito”, exige esse
- comportamento de seus cortesãos. Nos círculos da corte, este sinal da
- dependência em que ela vive, a crescente compulsão para controlar-se e
- moderar-se torna-se uma “marca de distinção” a mais, que é imediatamente
- imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. E aqui,
- como nas precedentes curvas de civilização, a admoestação “Isso não se faz”,
- com a qual a moderação, o medo e a repugnância são inculcados, só muito depois
- é ligada, como resultado de certa “democratização”, a uma teoria científica,
- com um argumento que se aplica por igual a todos os homens, qualquer que seja
- sua posição ou status. O impulso primário a essa lenta repressão de uma
- inclinação que antes era forte e geral não vem da compreensão racional das
- causas das doenças, mas — conforme será discutido em detalhe mais adiante — de
- mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade.
-
- 4. A modificação de hábito de escarrar e, finalmente, a eliminação mais ou
- menos completa de sua necessidade constitui um bom exemplo da maleabilidade da
- vida psíquica. Pode ser que essa necessidade tenha sido compensada por outras
- (como, por exemplo, a necessidade de fumar) ou debilitada por certas mudanças
- na dieta. Mas é certo que o grau de supressão que se tornou possível neste caso
- não aconteceu no tocante a muitas outras inclinações. A tendência a escarrar,
- como a de examinar o esputo, mencionada nesses exemplos, é substituível. Ela se
- manifesta agora apenas em crianças e em análise de sonhos, e sua eliminação é
- vista no riso específico que nos sacode quando “essas coisas” são mencionadas
- abertamente.
-
- Outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis na mesma extensão. E
- isto coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana.
- Sem dúvida ela é submissa a certas fidelidades que podem ser chamadas
- “naturais”. O processo histórico modifica-a dentro desses limites. O grau em
- que a vida e o comportamento humanos podem ser moldados por processos
- históricos não foi ainda analisado em suficiente detalhe. De qualquer modo,
- tudo isso mostra, mais uma vez, como processos naturais e históricos se
- influenciam mútua e inseparavelmente. A formação de sentimentos de vergonha e
- asco e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos
- naturais e históricos. Essas formas de emoções são manifestações da natureza
- humana em condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo
- sócio-histórico como um de seus elementos.
-
- É difícil concluir se a oposição radical entre “civilização” e “natureza” é
- mais do que uma expressão das tensões da própria psique “civilizada”, de um
- desequilíbrio específico na vida psíquica gerado no estágio recente da
- civilização ocidental. De qualquer modo, a vida psíquica de povos “primitivos”
- não é menos historicamente (isto é, socialmente) marcada do que a dos povos
- “civilizados”, mesmo que os primeiros mal estejam conscientes de sua própria
- história. Não há um ponto zero na historicidade do desenvolvimento humano, da
- mesma forma que não o há na socialidade, na interdependência social dos homens.
- Nos povos “primitivos” e “civilizados”, observam-se as mesmas proibições e
- restrições socialmente induzidas juntamente com suas equivalentes psíquicas,
- socialmente induzidas: ansiedades, prazer a aversão, desagrado e deleite. No
- mínimo, por conseguinte, não é muito claro o que se tem em vista quando o
- chamado padrão primitivo é oposto, como “natural”, ao “civilizado”, como social
- e histórico. No que interessa às funções psíquicas do homem, processos naturais
- e históricos trabalham indissoluvelmente juntos.
-
-### Fundo da vida social
-
- Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo
- transferido para o fundo da vida social. [...] Suas paredes visíveis e
- invisíveis vedam os aspectos mais “privados”, “íntimos”, irrepreensivelmente
- “animais” da existência humana, à vista de outras pessoas.
-
- [...]
-
- Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na
- ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. Tal como outros
- “implementos de civilização”, espalhou-se de forma bem gradual pela Europa. E,
- como eles, era símbolo de uma mudança decisiva que ocorria nessa época nos
- seres humanos. Aumentava a sensibilidade com tudo aquilo que entrava em contato
- com o corpo. A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes
- haviam estado livres desse sentimento.
-
- [...]
-
- Neste particular, também, houve certa reação e relaxação desde a guerra. Isto
- esteve claramente ligado à crescente mobilidade da sociedade, à difusão dos
- esportes, a excursões e viagens, e também à separação relativamente cedo dos
- jovens da comunidade familiar. A transição da camisola para o pijama — isto é,
- para um trajo de dormir mais “socialmente apresentável” — constitui um sintoma
- desta situação. A mudança não é, como se pensa algumas vezes, apenas um
- movimento de retrogressão, uma diminuição dos sentimentos de vergonha ou
- delicadeza ou, quem sabe, uma liberação e descontrole de ânsias instintivas,
- mas o desenvolvimento de uma forma que se ajusta a nosso padrão avançado de
- delicadeza e da situação específica em que a atual vida social coloca o
- indivíduo.
-
- [...]
-
- As roupas de dormir da fase precedente despertavam sentimentos de vergonha e
- embaraço exatamente porque eram relativamente informes. Não havia intenção de
- que fossem vistas por pessoa fora do círculo familiar.
-
-### Ansiedades pelo condicionamento
-
- “Se for forçado por necessidade inevitável a dividir a cama com outra pessoa…
- em uma viagem, não é correto ficar tão perto dele que o perturbe ou mesmo o
- toque”, escreve La Salle (Exemplo D) e: “Você não deve nem se despir nem ir
- para a cama na presença de qualquer outra pessoa.”
-
- Na edição de 1774, os detalhes são mais uma vez evitados em todos os casos
- possíveis. E o tom é visivelmente mais severo: “Se for forçado a dividir a cama
- com uma pessoa do mesmo sexo, o que raramente acontece, deve manter um rigoroso
- e vigilante recato” (Exemplo E). Este é o tom da injunção moral. Até mesmo dar
- uma razão tornou-se penoso para o adulto. Pela ameaça do tom, a criança é
- levada a associar essa situação a perigo. Quanto mais o padrão “natural” de
- delicadeza e vergonha parece aos adultos e quanto mais o controle civilizado de
- ânsias instintivas é aceito como natural, mais incompreensível se torna para os
- adultos que as crianças não sintam “por natureza” esta delicadeza e vergonha.
- Necessariamente as crianças tocam repetidamente o patamar adulto de embaraço e
- — uma vez que não estão ainda adaptadas — transgridem os tabus da sociedade,
- cruzam o patamar adulto de vergonha, e penetram em zonas de perigo emocionais
- que o próprio adulto só com dificuldade consegue controlar. Nesta situação, o
- adulto não explica as exigências que faz em matéria de comportamento. Não tem
- como fazê-lo adequadamente. Está tão condicionado que se conforma de maneira
- mais ou menos automática a um padrão social. Qualquer outro comportamento,
- qualquer desobediência às proibições ou restrições que prevalecem em sua
- sociedade, implica perigo e uma desvalorização das restrições que ele mesmo se
- impõe. A conotação peculiarmente emocional tão amiúde ligada a exigências
- morais, à severidade agressiva e ameaçadora com que são frequentemente
- defendidas, refletem a ameaça que qualquer desafio às proibições representa
- para o equilíbrio instável de todos aqueles a cujos olhos o padrão de
- comportamento da sociedade se tornou mais ou menos uma “segunda natureza”.
- Essas atitudes são sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os
- casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva, e com ela sua própria
- existência social e ordem social onde se radica, é, mesmo remotamente,
- ameaçada.
-
- [...]
-
- a parede entre pessoas, a reserva, a barreira emocional erigida pelo
- condicionamento entre um corpo e outro cresceram sem cessar. Desde cedo as
- crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e
- experiências que isto traz.
-
- [...]
-
- Com uma certa impotência, o observador do século XIX e, até certo ponto, do
- século XX, vê-se diante de modelos e regras de condicionamento do passado. E
- até que compreendamos que nosso próprio patamar de repugnância, nossa própria
- estrutura de sentimentos, evoluíram — em um processo estruturado — e seguem
- evoluindo, continua realmente quase incompreensível, do atual ponto de vista,
- como diálogos como esses pudessem ser incluídos em um livro escolar ou
- deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é
- exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em
- relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu.
-
-### Constituição psíquisa: "a conspiração do silêncio"
-
- Vemos, mais uma vez, como é importante para a compreensão de uma constituição
- psíquica mais antiga, e de nossa própria, observar o aumento dessa distância, a
- formação gradual de uma área segregada especial na qual as pessoas vêm, aos
- poucos, a passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de sua
- vida. O desenvolvimento biológico humano em tempos mais antigos não tomou um
- curso diferente do de hoje. Só com relação a essa mudança social podemos
- compreender melhor todos os problemas de “crescer” como se apresentam hoje e,
- com eles, os “resíduos infantis” na estrutura de personalidade de pessoas
- crescidas (adultos). A diferença mais pronunciada entre as roupas de crianças e
- adultos em nosso tempo é apenas uma expressão particularmente visível desse
- fato. E, também essa diferença era mínima no tempo de Erasmo e durante um longo
- período depois.
-
- [...]
-
- Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a
- representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante
- à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo
- civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás da
- cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De
- maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de
- paredes da consciência.
-
- [...]
-
- Uma vez que no curso do processo civilizador o impulso sexual, como tantos
- outros, está sujeito a controle e transformação cada vez mais rigorosos, muda o
- problema que ele coloca. A pressão aplicada sobre adultos para privatizar todos
- os seus impulsos (em especial, os sexuais), a “conspiração de silêncio”, as
- restrições socialmente geradas à fala, o caráter emocionalmente carregado da
- maioria das palavras relativas a ardores sexuais, tudo isto constrói uma grossa
- parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual
- tão difícil — a derrubada desse muro, que um dia será necessário — não é só a
- necessidade de fazer o adolescente conformar-se ao mesmo padrão de controle de
- instintos e de domínio como o adulto. É, acima de tudo, a estrutura de
- personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas
- secretas.
-
- [...]
-
- À vista de tudo isso, torna-se claro como deve ser colocada a questão da
- infância. Os problemas psicológicos de indivíduos que crescem não podem ser
- compreendidos se forem considerados como se desenvolvendo uniformemente em
- todas as épocas históricas. Os problemas relativos à consciência e impulsos
- instintivos da criança variam com a natureza das relações entre ela e os
- adultos. Essas relações têm em todas as sociedades uma forma específica
- correspondente às peculiaridades de sua estrutura. [...] Por isso
- mesmo, os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao
- padrão dos adultos — por exemplo, os problemas específicos da puberdade em
- nossa sociedade civilizada — só podem ser compreendidos em relação à fase
- histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse
- padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre
- adultos e crianças.
-
-### Relação civilizacional tendencial entre ganhos de liberdade exterior e aumento de coerção interior
-
- Há evidência de sobra de que, nessa aristocracia de corte, a restrição a
- relações sexuais ao casamento era frequentemente considerada como burguesa e
- socialmente descabida. Não obstante, tudo isto dá uma ideia de como um tipo
- específico de liberdade corresponde diretamente a formas e estágios
- particulares de interdependência social entre seres humanos.
-
- As formas linguísticas não dinâmicas, às quais continuamos presos, opõem
- liberdade a coerção como se fossem céu e inferno. A curto prazo, esse
- raciocínio em opostos absolutos muitas vezes se mostra razoavelmente adequado.
- Para quem está na prisão, o mundo do outro lado das grades é um mundo de
- liberdade. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, não há, ao contrário do
- que sugerem antíteses como essas, uma suposta liberdade “absoluta”, se por ela
- entendemos total independência e ausência de qualquer coação social. O que há é
- libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra,
- menos pesada. Dessa maneira, o processo civilizador, a despeito da
- transformação e aumento das limitações que impõe às emoções, é acompanhado
- permanentemente por tipos de libertação dos mais diversos. A forma de casamento
- nas cortes absolutistas, simbolizada pela igual disposição de salas de estar e
- quartos de dormir para homens e mulheres nas mansões da aristocracia de corte,
- constitui um dos muitos exemplos desta situação. A mulher era mais livre de
- restrições externas do que na sociedade feudal. Mas a coação interior que ela
- era obrigada a impor a si mesma de acordo com a forma de integração e com o
- código de comportamento em vigor na sociedade de corte, que se originavam ambos
- dos mesmos aspectos estruturais dessa sociedade que engendraram sua
- “liberação”, havia aumentado para ela e para os homens em confronto com a
- sociedade cavaleirosa.
-
- [...]
-
- Burgueses e burguesas libertaram-se das limitações externas a que estiveram
- sujeitos como pessoas de segunda classe, na hierarquia dos estamentos. Aumentou
- o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes deu o poder
- social necessário para se libertarem. Mas, neste aspecto, as limitações sociais
- do indivíduo também são mais fortes do que antes. [...] O motivo por que o
- trabalho como ocupação, que com a ascensão da burguesia se tornou estilo geral
- de vida, deveria exigir uma disciplina particularmente rigorosa da sexualidade
- é uma questão independente; as ligações entre a estrutura da personalidade e a
- social no século XIX não cabem aqui. Não obstante, para os padrões da sociedade
- burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na
- sociedade de corte eram extremamente débeis. [...] Mas ambas as quebras de
- padrão têm, nessa época, de ser inteiramente excluídas da vida social oficial.
- Ao contrário do que acontece na corte, devem ser rigorosamente confinadas atrás
- da cena, banidas para o reino do segredo. Este é apenas um dos muitos exemplos
- do aumento da reserva e do autocontrole que o indivíduo então se impõe.
-
- 10. O processo civilizador não segue uma linha reta. A tendência geral da
- mudança pode ser identificada, como aqui fizemos. Em escala menor, observamos
- os mais diversos movimentos que se entrecruzam, mudanças e surtos nesta ou
- naquela direção. Mas se estudamos o movimento da perspectiva de grandes
- períodos de tempo, vemos claramente que diminuem as compulsões originadas
- diretamente na ameaça do uso das armas e da força física, e que as formas de
- dependência que levam à regulação dos efeitos, sob a forma de autocontrole,
- gradualmente aumentam. Esta mudança desponta em seu aspecto mais retilíneo se
- observamos os homens da classe alta do tempo — isto é, a classe composta
- inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente
- de profissionais burgueses. Se analisamos o tecido de muitas camadas do
- desenvolvimento histórico, contudo, verificamos que o movimento é infinitamente
- mais complexo. Em todas as fases ocorrem numerosas flutuações, frequentes
- avanços ou recuos dos controles internos e externos. O estudo dessas
- flutuações, particularmente das mais próximas de nós no tempo, pode facilmente
- obscurecer a tendência geral. Uma delas está presente ainda hoje na memória de
- todos: no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, em comparação com o
- período anterior à guerra, parece ter ocorrido uma “relaxação da moral”. Certo
- número de limitações impostas ao comportamento antes da guerra debilitou-se ou
- desapareceu inteiramente. Muitas coisas antes proibidas passaram a ser
- permitidas. Visto bem de perto, o movimento parece estar ocorrendo na direção
- oposta à demonstrada aqui, a levar a uma relação dos controles impostos ao
- indivíduo pela vida social. Apurando-se o exame, porém, não é difícil notar que
- isto é apenas uma recessão muito ligeira, uma das flutuações que constantemente
- ocorrem na complexidade do movimento histórico, em cada fase do processo total.
-
- Um dos exemplos no particular é o das roupas de banho. No século XIX, cairia no
- ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora
- comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão do esporte entre ambos os
- sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa
- sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as
- mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada
- indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta,
- podiam surgir trajos de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É
- uma relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão “civilizado”
- particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação automática e
- de transformação de emoções, condicionados para se tornarem hábitos.
-
- [...]
-
- O mecanismo de condicionamento, contudo, pouco difere do usado em épocas
- anteriores. Isto porque não implica uma supervisão mais rigorosa da tarefa, ou
- planejamento mais exato que leve em conta as circunstâncias especiais da
- criança, mas é efetuado, principalmente e por meios automáticos e, até certo
- ponto, por reflexos.
-
- [...]
-
- 12. A tendência do processo civilizador a tornar mais íntimas todas as funções
- corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las “atrás de
- portas fechadas”, produz diversas consequências. Uma das mais importantes, já
- observada em conexão com várias outras formas de impulsos, notamos com especial
- clareza no desenvolvimento de limitações civilizadoras à sexualidade. É a
- peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os
- aspectos da vida humana que podem ser exibidos na vida social são separados dos
- que não podem, e que devem permanecer “privados” ou “secretos”. [...]
- Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica
- cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre
- comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural,
- torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência.
-
- [...]
-
- Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos
- socialmente gerados de vergonha e repugnância, entram em luta no interior do
- indivíduo. Este, conforme já apontamos, é o estado de coisas que Freud tenta
- descrever através de conceitos como “superego” e “inconsciente” ou, como se diz
- não sem razões na fala diária, como “subconsciente”. Mas, como quer que seja
- expresso, o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta
- ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo. E este
- elemento, o superego, tal como a estrutura da personalidade do indivíduo como
- um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento
- e a estrutura da sociedade. A acentuada divisão do “ego”, ou consciência,
- característica do homem em nossa fase de civilização, que encontra expressão em
- termos como “superego” e “inconsciente”, corresponde à cisão específica no
- comportamento que a sociedade civilizada exige de seus membros. É igual ao grau
- de regulamentação e restrição imposto à expressão de necessidades profundas e
- impulsos. Tendências nessa direção podem se desenvolver sob qualquer forma na
- sociedade humana, mesmo naquelas que chamamos de “primitivas”. Mas a força
- adquirida em sociedades como a nossa por essa diferenciação, e a forma como ela
- aparece, são reflexo de um desenvolvimento histórico particular, são resultado
- de um processo civilizador.
-
- É isso o que temos em mente quando nos referimos aqui à constante
- correspondência entre a estrutura social e a estrutura da personalidade, do ser
- individual.
-
-### A "forma socialmente impressa" da agressividade
-
- Como todos os demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente
- militares, pelo estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente
- aumento na dependência dos indivíduos entre si e face ao aparato técnico. É
- confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em
- autolimitações. Foi tão transformada, “refinada”, “civilizada” como todas as
- outras forma de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparece apenas
- em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas.
-
- [...]
-
- Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram
- práticas comuns da sociedade guerreira dessa época, conforme anotou Luchaire, o
- historiador da sociedade francesa do século XIII. Há pouca evidência de que as
- coisas fossem diferentes em outros países ou nos séculos que se seguiram.
- Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não
- eram banidos. O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. Até certo
- ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo
- com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa
- maneira.
-
- O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro
- nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da
- mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros?
- Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a
- riqueza e o poder de luta do inimigo. Isto porque os súditos (isto é, os que
- trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante
- daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão
- mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se
- aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de
- árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas
- representavam a maior parte da propriedade, isto também servia para enfraquecer
- o inimigo. A emotividade mais forte do comportamento era até certo ponto
- socialmente necessária. As pessoas se comportavam de maneira socialmente útil e
- tinham prazer nisso.
-
- [...]
-
- Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura
- marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa. Muito pelo
- contrário, em um momento estão pilheriando, no outro trocam zombarias, uma
- palavra leva a outra e, de repente, emergindo do riso se veem no meio de uma
- rixa feroz. Grande parte do que nos parece contraditório — a intensidade da
- religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências,
- as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força
- incontrolável do ódio e da beligerância — tudo isso, tal como a rápida mudança
- de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de
- personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre,
- mais direta, mais aberta, do que mais tarde. Só para nós, para quem tudo é mais
- controlado, moderado, calculado, em quem tabus sociais mergulham muito mais
- fundamente no tecido da vida instintiva como forma de autocontrole, é que esta
- visível intensidade de religiosidade, beligerância ou crueldade parece
- contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de
- Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções. Muito
- ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” como a sociedade
- ou classe que a sustenta. E porque as emoções são expressas nessa época de uma
- maneira que, em nosso mundo, é geralmente observada em crianças, chamamos de
- “infantis” essas manifestações e formas de comportamento.
-
- [...]
-
- Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que
- não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um
- mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como,
- inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o
- homem que não pudesse controlá-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas
- emoções.
-
- [...]
-
- Nessa sociedade não havia poder central suficientemente forte para obrigar as
- pessoas a se controlarem. [...] Conforme veremos no detalhe mais adiante, a
- reserva e a “consideração mútua” entre as pessoas aumentavam, inicialmente na
- vida social diária comum. E a descarga de emoções em ataque físico se limitava
- a certos enclaves temporais e espaciais. Uma vez tivesse o monopólio da força
- física passado a autoridades centrais, nem todos os homens fortes podiam se dar
- ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado àqueles
- poucos legitimados pela autoridade central (como, por exemplo, a polícia contra
- criminosos) e a números maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou
- revolução, na luta socialmente legitimada contra inimigos internos ou externos.
-
- Mas até mesmo esses enclaves temporais ou espaciais na sociedade civilizada,
- nos quais se deu maior liberdade à beligerância — acima de tudo, nas guerras
- entre nações — tornaram-se mais impessoais e levavam cada vez menos a uma
- descarga emocional marcada pelo imediatismo e intensidade da fase medieval.
- [...] Ainda assim, isso poderia acontecer com maior rapidez do que poderíamos supor,
- não tivesse o combate físico direto entre um homem e seu odiado adversário
- cedido lugar a uma luta mecanizada que exige rigoroso controle dos afetos.
- Mesmo nas guerras do mundo civilizado, o indivíduo não pode mais dar rédea
- livre ao prazer provocado pela vista do inimigo, mas lutar, pouco importando
- como se sinta, obedecendo ao comando de chefes invisíveis, ou apenas
- indiretamente visíveis, e contra inimigos frequentemente invisíveis ou só
- indiretamente visíveis. E foi preciso uma imensa perturbação social, aguçada
- por propaganda habilmente concertada, para reacender e legitimar em grandes
- massas de pessoas os instintos socialmente proibidos, o prazer de matar e a
- destruição, que foram eliminados do cotidiano da vida civilizada.
-
- [...]
-
- Para dar um exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão
- socialmente permitida nos jogos esportivos. [...] Esse aspecto determina em
- parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia
- decisivamente o papel do cinema em nosso mundo.
- Essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa
- e frequentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir
- (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de
- condicionamento dos jovens.
-
- Na edição de 1774 da Civilité, de La Salle, lemos (p.23): “Crianças gostam de
- tocar em roupas e em outras coisas que lhes agradam as mãos. Esta ânsia deve
- ser corrigida e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos.”
-
- Hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do
- homem civilizado que seja proibido por autocontrole socialmente inculcado de,
- espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a modelação de
- seus gestos — pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações
- ocidentais no tocante a detalhes — é decisivamente influenciada por essa
- necessidade. Já mostramos páginas atrás como o emprego do sentido do olfato, a
- tendência de cheirar o alimento ou outras coisas, veio a ser restringido como
- algo animal. Aqui temos uma das interconexões através da qual um diferente
- órgão dos sentidos, o olho, assume importância muito específica na sociedade
- civilizada. De maneira semelhante à da orelha, e talvez ainda mais, o olho se
- torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo
- pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições.
-
- [...]
-
- Todos os que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados
- “anormais”. Por conseguinte, alguém que desejasse gratificar seu prazer à
- maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado “anormal”
- simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização
- restringe a manifestação de prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada
- sob a forma de autocontrole.
- Neste caso, obviamente, opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no
- qual ocorreu a mudança a longo prazo da personalidade: manifestações
- socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
- medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do
- desagrado despertado pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado
- dominante é compulsoriamente associado até mesmo a comportamentos que, na sua
- origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a ansiedade
- socialmente despertados — hoje representados, embora nem sempre nem
- exclusivamente, pelos pais — lutam com desejos ocultos. O que foi mostrado
- aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do
- patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em
- movimento por mecanismos como esses.
-
-### Em tempos medievais
-
- A forca, o símbolo do poder judiciário de cavaleiro, é parte do ambiente de sua
- vida. Talvez não seja muito importante, mas, de qualquer maneira, não é um
- espetáculo particularmente doloroso. Sentença, execução, morte tudo isto é uma
- presença constante nessa vida. Elas, também, não foram ainda removidas para
- trás da cena.
-
- [...]
-
- por exemplo, na obra de Breughel, um padrão de repugnância que lhe permite
- trazer para as telas aleijados, camponeses, cadafalsos, ou pessoas que se
- aliviam de necessidades corporais. Mas o padrão visto neles está vinculado a
- sentimentos sociais muito diferentes dos que vemos nesses quadros em que
- aparece a classe alta de fins do período medieval.
-
- [...]
-
- Essas cenas de amor são tudo, menos “obscenas”. O amor é apresentado nelas como
- tudo o mais na vida do cavaleiro fidalgo, torneios, caçadas, campanhas,
- pilhagens. As cenas não são especialmente ressaltadas. Não sentimos em sua
- representação coisa alguma da violência, da tendência para excitar ou
- gratificar a satisfação de desejos negados na vida, característica de tudo o
- que é “obsceno”. Esse desenho não nasce de uma alma oprimida, nem revela nada
- de “secreto” mediante a violação de tabus.
-
- [...]
-
- Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão
- a impulsos e sentimentos de forma incomparavelmente mais fácil, rápida,
- espontânea e aberta do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e,
- em consequência, menos reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente
- entre extremos.
-
- Mas tais restrições e controles se faziam em uma direção diferente e em grau
- menor que em períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole
- constante, quase automático. O tipo de integração e interdependência em que
- viviam essas pessoas não as compelia a abster-se de funções corporais uma na
- frente da outra ou a controlar seus impulsos agressivos na mesma extensão que
- na fase seguinte. Isto se aplica a todos. Mas, claro, para os camponeses, a
- margem para agressão era mais restrita do que para o cavaleiro — isto é,
- restrita a seus pares. [...] Uma restrição de ordem social às vezes se
- impunha ao camponês pelo simples fato de que não tinha o suficiente para comer.
- Isto certamente representa um controle de impulsos do mais alto grau e que
- afeta todo o comportamento do ser humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e
- esta situação social dificilmente lhe tornava necessário impor controles a si
- mesmo quando assoava o nariz, escarrava, ou pegava vorazmente comida na mesa.
-
- [...]
-
- A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais
- espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem
- social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma.
- Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles
- e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o
- equilíbrio das emoções e, de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que
- o indivíduo procura e consegue.
-
-### Autocontrole como resposta ao avanço da interdependência
-
- Quanto mais avançam a interdependência e a divisão de trabalho na sociedade,
- mais dependente a classe alta se torna das outras e maior, por conseguinte, a
- força social destas, pelo menos potencialmente. Mesmo quando ela ainda é
- principalmente uma classe guerreira, quando mantém as outras classes
- dependentes sobretudo pela espada e o monopólio das armas, algum grau de
- dependência dessas outras classes não está de todo ausente. Mas é
- incomparavelmente menor, e menor também é, conforme veremos em mais detalhes
- adiante, a pressão vinda de baixo. Em consequência, o senso de domínio da
- classe alta, seu desprezo pelas demais, é muito mais franco, e muito menos
- forte a pressão sobre ela para praticar moderação e controlar seus impulsos.
-
- [...]
-
- Um novo comedimento, um controle e regulação novo e mais extenso do
- comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessário ou possível, são
- agora exigidos do nobre. São resultado da nova e maior dependência em que foi
- colocado o nobre. Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu
- castelo, do castelo que é sua pátria.
-
-### Para uma teoria sobre civilizações
-
- como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em
- longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado
- o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência
- humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas,
- e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em
- uma direção particular? Essas mudanças são indicadas na fala diária quando
- dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que
- antes, ou que as de outras sociedades são mais “incivis” ou menos “civilizadas”
- (ou mesmo mais “bárbaras”) que as da nossa. São óbvios os juízos de valor
- contidos nessas palavras, embora sejam menos óbvios os fatos a que se referem.
- Isto acontece em parte porque os estudos empíricos de transformações a longo
- prazo de estruturas de personalidade, e em especial de controle de emoções, dão
- origem a grandes dificuldades no estágio atual das pesquisas sociológicas. À
- frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo
- relativamente curto e, em geral, apenas problemas relativos a um dado estado da
- sociedade. As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por
- conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na
- maioria dos casos.
-
- O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo. A sua
- compreensão pode ser facilitada por uma curta indicação dos vários tipos que
- esses processos assumem. Para começar, podemos distinguir duas direções
- principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior
- diferenciação e integração, e as que tendem para menos. Além disso, há um
- terceiro tipo de processo social, no curso do qual é mudada a estrutura de uma
- sociedade, ou de alguns de seus aspectos particulares, mas sem haver tendência
- de aumento ou diminuição no nível de diferenciação e integração. Por último,
- são incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua
- estrutura. Este trabalho não faz justiça a toda a complexidade dessas mudanças,
- porquanto numerosas formas híbridas, e não raro vários tipos de mudança, mesmo
- em direções opostas, podem ser observadas simultaneamente na mesma sociedade.
- Mas, por ora, este curto esboço dos diferentes tipos de mudança deve bastar
- para indicar os problemas de que trata este estudo.
-
- O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a
- suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo
- nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares —
- mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante
- grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e
- encontrar comprovação factual.
-
- [...]
-
- A demonstração de uma mudança em emoções e estruturas de controle humanas que
- ocorre ao longo de muitas gerações, e na mesma direção ou, em curtas palavras,
- o aumento do reforço e diferenciação dos controles — gera outra questão: é
- possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade
- com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira
- tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e
- integração social? O segundo volume trata desses problemas.
-
- No tocante a essas mudanças estruturais a longo prazo da sociedade, falta
- também prova empírica. Tornou-se, por conseguinte, necessário no segundo volume
- dedicar parte do mesmo à descoberta e elucidação das ligações factuais nesta
- segunda área. A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo,
- tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser
- demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou
- possível. O processo de formação dos Estados nacionais, discutido no segundo
- volume, constitui um exemplo desse tipo de mudança estrutural. Finalmente, em
- um esboço provisório de uma teoria de civilização, elabora-se um modelo, a fim
- de demonstrar possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas
- da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles
- emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível
- mais alto de diferenciação e integração como, por exemplo, visando a uma
- diferenciação e prolongamento das cadeias de interdependência e à consolidação
- dos “controles estatais”.
-
- [...]
-
- Facilmente se pode compreender que ao adotar uma metodologia voltada para
- ligações factuais e suas explicações (isto é, um enfoque empírico e teórico
- preocupado com mudanças estruturais de longo prazo de um tipo específico, ou
- “desenvolvimento”), abandonamos as ideias metafísicas que vinculam o conceito
- de desenvolvimento à noção ou de uma necessidade mecânica ou de uma finalidade
- teleológica.
-
- [...]
-
- este estudo nem era de uma “evolução”, no sentido do século XIX, de um
- progresso automático, nem de uma “mudança social” inespecífica no sentido do
- século XX. Naquele tempo isto me pareceu tão óbvio que deixei de mencionar
- explicitamente essas implicações teóricas. A introdução à segunda edição me dá
- a oportunidade de corrigir essa omissão.
-
- [...]
-
- A situação é semelhante no tocante a grande número de outros problemas aqui
- estudados. Quando, após vários estudos preparatórios que me permitiram
- investigar a evidência documentária e explorar os problemas teóricos
- gradualmente emergentes, o caminho para uma possível solução pareceu mais
- claro, tornei-me consciente de que este estudo ajuda a solucionar o renitente
- problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim
- chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números
- de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda
- ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como
- mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo
- prazo.
-
-### Os limites de conceber as coisas como um mero jogo de cartas
-
- A fim de exemplificar este fato, bastará discutir a maneira como o homem que é
- atualmente considerado o principal teórico da sociologia, Talcott Parsons,
- tenta colocar e solucionar alguns dos problemas aqui estudados. É
- característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em
- seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de
- sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente
- elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão
- incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção
- pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas:
- cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente.
- As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais
- diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a
- polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva. Parsons concebeu
- originariamente essa ideia, segundo nos diz, analisando os tipos de sociedade
- de Tönnies, a Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A
- “comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a
- “sociedade”, pela neutralidade afetiva. Mas, ao determinar as diferenças entre
- diferentes tipos de sociedade, e diferentes tipos de relacionamentos dentro da
- mesma, ele atribui a essa “variável de padrão” no jogo de cartas, como a
- outras, um significado inteiramente geral. No mesmo contexto, Parsons trata do
- problema da relação entre estrutura social e personalidade.2 Indica que
- conquanto antes os tivesse interpretado simplesmente como “sistemas de ação
- humana” estreitamente vinculados e interatuantes, agora pode declarar com
- certeza que, em um sentido teórico, eles são fases, ou aspectos, diferentes de
- um único e mesmo sistema de ação fundamental. Ilustra isto com um exemplo,
- explicando que o que no plano sociológico pode ser considerado como uma
- institucionalização da neutralidade afetiva é, essencialmente, o mesmo que no
- nível da personalidade pode ser considerado como “na imposição da renúncia à
- gratificação imediata, no interesse da organização disciplinada e dos objetivos
- a longo prazo da personalidade”.
-
- [...]
-
- [1] in Talcott Parsons, Essays in Sociological Theory (Glencoe, 1963), p.359 e segs.
-
- [...]
-
- O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é
- um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz
- retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em
- vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das
- pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções —
- mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere
- uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva,
- que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de
- sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas.
-
- [...]
-
- Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e
- tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a
- análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento
- da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico.
-
- [...]
-
- As categorias básicas selecionadas por Parsons, no entanto, parecem-me
- arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não
- comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria
- científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e
- simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes
- individuais.
-
-Construções auxiliares desnecessariamente complicadas:
-
- O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da
- sociologia é mais complicada, do que simplificada, por uma sistemática redução
- dos processos sociais a estados sociais, e de fenômenos complexos,
- heterogêneos, a componentes mais simples e só aparentemente homogêneos. Este
- tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização
- apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda
- pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso,
- descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do
- epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente
- complicadas, a fim de fazer com que concordem com os fatos observáveis. Não
- raro elas parecem nuvens escuras das quais, daqui e dali, caem uns poucos raios
- de luz que tocam a terra.
-
-Processos:
-
- Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias
- sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos. Conforme
- demonstrado neste estudo, a relação entre o indivíduo e as estruturas sociais
- só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e
- evolução. Só então será possível construir modelos de seus relacionamentos,
- como é feito aqui, que concordam com fatos demonstráveis.
-
- [...]
-
- Sem jamais dizer isto clara e abertamente, Parsons e todos os sociólogos da
- mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se
- referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”. Assim — para dar apenas um
- exemplo —, Parsons adota a noção, já desenvolvida por Durkheim, de que a
- relação entre “indivíduo” e “sociedade” é uma “interpenetração” do indivíduo e
- do sistema social. Como quer que essa “interpenetração” seja concebida, o que
- mais pode essa metáfora significar, senão que estamos tratando de duas
- entidades diferentes que, primeiro, existem separadamente e que depois se
- “interpenetram”?3
-
-Segue uma ótima crítica à sociologia estrutural/estática que enxerga sociedades
-como sistemas em repouso e que apenas buscam o repouso quando ocorre algum acidente
-perturbando seu equilíbrio homeostático.
-
-### Humildar: sacar mais qual é a real e não se iludir
-
- Muitos dos artigos de fé sociológicos pioneiros não foram mais aceitos pelos
- sociólogos do século XX. Eles incluíam, acima de tudo, a crença em que o
- desenvolvimento da sociedade é necessariamente uma evolução para o melhor, um
- movimento na direção do progresso. Esta crença foi categoricamente rejeitada
- por muitos sociólogos posteriores, de acordo com sua própria experiência
- social.
-
- [...]
-
- Se, no século XIX, concepções específicas do que devia ser ou do que se
- desejava que fosse — concepções ideológicas específicas — levaram a um
- interesse fundamental pelo desenvolvimento da sociedade, no século XX outras
- concepções do que devia ser ou era desejável — outras concepções ideológicas —
- geraram pronunciado interesse entre os principais teóricos pelo estado da
- sociedade como ela se encontra, negligenciando os problemas da dinâmica das
- formações sociais, e sua falta de interesse por problemas de processo de longa
- duração e por todas as oportunidades de explicação que o estudo desses
- problemas proporciona.
-
- [...]
-
- Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os
- primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam
- as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes
- industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a
- ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas
- de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com
- sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um
- futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no
- futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento
- da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais
- emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o
- desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças.
- Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento
- social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre
- doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela
- época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de
- importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a
- fatos verificáveis.
-
- Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra
- razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização,
- cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que
- ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um
- passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados
- dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os
- que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida
- tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os
- adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes
- classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação
- ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor,
- no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes
- dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro
- mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o
- progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes
- das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se
- identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses
- como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim.
-
- [...]
-
- O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas
- procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o
- arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas
- sociais. Isto porque só poderemos reunir conhecimentos sociológicos adequados o
- suficiente para serem usados na solução dos agudos problemas da sociedade se,
- quando equacionamos e resolvemos problemas sociológicos, deixamos de subordinar
- a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções
- devem ser.
-
-A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial:
-
- Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua
- oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com
- ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a
- ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que
- exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de
- influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O
- que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da
- prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que
- deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi.
-
- [...]
-
- Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as
- pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como
- ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira”
- realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras
- começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas
- concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um
- indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social”
- igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza
- do problema.
-
-### Indivíduo como sujeito aberto
-
- No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em
- uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual
- usado aqui, realmente significa.
-
- [...]
-
- Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico.
- Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo
- “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber
- seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o
- processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são
- ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da
- humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a
- compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a
- chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de
- conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a
- “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia
- causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem
- precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo
- inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade.
- [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber
- processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações
- formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender
- os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de
- imagem do homem e da sua percepção de si mesmo.
- [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o
- que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de
- todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir
- importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua
- vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as
- pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes,
- formando configurações mutáveis entre si.
-
- [...]
-
- A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias
- estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito
- aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos,
- isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a
- processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária
- convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da
- Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio
- isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é
- “exterior”.
-
- [...]
-
- Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na
- literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a
- incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...]
- Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência
- eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra
- explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio
- no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as
- formam?
-
- [...]
-
- Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos
- conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários
- para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para
- heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na
- capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos
- científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente
- aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária,
- irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de
- seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um
- conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por
- conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido
- de maior autocontrole pelo homem.
-
- [...]
-
- Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o
- desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de
- objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para
- consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças
- rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez
- contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo
- espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento
- nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções,
- desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau
- mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do
- mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por
- outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos
- observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto
- tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos
- muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da
- natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa
- científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem
- acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora
- republico examino a partir de outros aspectos.
-
- [...]
-
- O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira
- puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de
- forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por
- conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o
- homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios
- seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da
- sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse
- respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se
- relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os
- homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os
- processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade
- ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação
- ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do
- conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e
- finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o
- suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria
- contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o
- sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da
- indagação científica.
-
- [...]
-
- Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social,
- tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se
- interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e
- emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais
- eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação)
- sem a permissão desses mecanismos de controle.
-
- [...]
-
- Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de
- autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais
- forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação
- afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas
- ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si
- mesmas um objeto de investigação.
-
- [...]
-
- Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade
- individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se
- perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de
- indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe
- fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos
- humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O
- controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa
- mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais
- implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se
- manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de
- controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que
- separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes
- versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo”
- da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e
- emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na
- autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o
- verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é
- uma metáfora conveniente, mas que induz em erro.
-
-### O conceito de configuração
-
- A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de
- “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto
- ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante
- toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente
- delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas
- formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de
- pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou
- menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde
- através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades
- recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer,
- apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que,
- conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à
- imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de
- numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou
- sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico,
- desaparece a cisão na visão tradicional do homem.
-
-### Dança, mu-dança
-
- O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente
- explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo
- mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na
- polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de
- pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar
- Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e
- feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as
- antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje
- no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na
- dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do
- indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente
- ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
- reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais
- configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos
- específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria
- absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações
- de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais
- configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam —
- tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou
- com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de
- sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças.
-
-### Dinâmica criadora de monopólios
-
- Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do
- Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais
- relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação
- mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há
- explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma
- mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma,
- a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades
- livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso
- dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas
- grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição
- social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na
- rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica
- como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto
- com essas mudanças de configuração.