aboutsummaryrefslogtreecommitdiff
path: root/books/sociedade
diff options
context:
space:
mode:
authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-06-15 10:37:40 -0300
committerSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-06-15 10:37:40 -0300
commit68369cb8d41c07d922dfeb98bde99bf5136da8b2 (patch)
tree5dc18cbbc4659979f8fd2c0a30be00872deda0fb /books/sociedade
parent0c97a72569309121b0bc1396595e6cefea4a1e0d (diff)
downloadblog-68369cb8d41c07d922dfeb98bde99bf5136da8b2.tar.gz
blog-68369cb8d41c07d922dfeb98bde99bf5136da8b2.tar.bz2
Updates books/sociedade/processo-civilizador
Diffstat (limited to 'books/sociedade')
-rw-r--r--books/sociedade/processo-civilizador.md209
1 files changed, 209 insertions, 0 deletions
diff --git a/books/sociedade/processo-civilizador.md b/books/sociedade/processo-civilizador.md
index 851df2b..714c329 100644
--- a/books/sociedade/processo-civilizador.md
+++ b/books/sociedade/processo-civilizador.md
@@ -1165,3 +1165,212 @@ desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje
por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de
uma elucidação psicogenética e sociogenética.
+
+### Estágios
+
+ No estágio da aristocracia de corte, as restrições impostas às inclinações e
+ emoções baseavam-se principalmente em consideração e respeito devidos a outras
+ pessoas e, acima de tudo, aos superiores sociais. No estágio subsequente, a
+ renúncia e o controle de impulsos são muito menos determinados por pessoas
+ particulares. Expressadas provisória e aproximativamente, nesse instante, mais
+ diretamente do que antes, são as compulsões menos visíveis e mais impessoais da
+ interdependência social, a divisão do trabalho, o mercado, a competição, que
+ impõem restrições e controle aos impulsos e emoções. São essas pressões, e os
+ correspondentes tipos de explicação e condicionamento acima mencionados, que
+ fazem parecer que o comportamento socialmente desejável seja gerado
+ voluntariamente pelo próprio indivíduo, por sua própria iniciativa. Isto se
+ aplica à regulação e às restrições de impulsos necessárias ao “trabalho”, e
+ também a todo padrão de acordo com o qual eles são modelados nas sociedades
+ industrializadas burguesas.
+
+ [...]
+
+ Em ambos os casos, na sociedade aristocrática da corte e nas sociedades
+ burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente
+ controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado
+ por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da
+ civilização, será demonstrado adiante.
+
+ [...]
+
+ Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro, como
+ de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto “primitivas” como
+ “civilizadas”. O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são
+ sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que imaginários —
+ isto é, por controles externos — ao passo que, nas últimas, são transformados
+ mais ou menos completamente em controles internos. As tendências proibidas (por
+ exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem em parte da consciência, sob
+ pressão desse controle interno, ou, como poderia ser também chamado, do
+ superego e do “hábito de previsão”. O que sobra na consciência como motivação
+ da ansiedade é alguma consideração de longo prazo. Assim, em nossa época o medo
+ de escarrar, e os sentimentos de vergonha e repugnância nos quais isto se
+ expressa, concentram-se na ideia mais precisamente definida e logicamente
+ compreensível de certas doenças e suas “causas”, e não em torno da imagem de
+ influências mágicas, deuses, espíritos, ou demônios. Mas a série de exemplos
+ mostra também com grande clareza que a compreensão racional das origens de
+ certas doenças, do perigo do esputo como transmissor, não é a causa primária do
+ medo e da repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás
+ das mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar.
+
+ [...]
+
+ Vale a pena deixar esclarecido, de uma vez por todas, que algo que sabemos ser
+ prejudicial à saúde de maneira alguma desperta necessariamente sentimentos de
+ desagrado ou vergonha. E, reciprocamente, algo que desperta esses sentimentos
+ não tem que ser prejudicial à saúde. Alguém que coma hoje barulhentamente ou
+ com as mãos provoca profundo desagrado, mas sem que haja o menor receio pela
+ saúde. E nem a ideia de ler com má iluminação nem a de gás venenoso, por
+ exemplo, despertam sentimentos de desagrado ou vergonha remotamente
+ semelhantes, embora sejam óbvias suas más consequências para a saúde. Desta
+ maneira, o nojo da expectoração, e os tabus que a cercam, aumentam muito antes
+ que as pessoas tenham uma ideia clara da transmissão de certas doenças pelo
+ escarro. O que inicialmente prova e agrava os sentimentos de nojo e as
+ restrições é a transformação das relações e dependência humanas.
+
+ [...]
+
+ A motivação fundada na consideração social surge muito antes da motivação por
+ conhecimento científico. O rei, como “sinal de respeito”, exige esse
+ comportamento de seus cortesãos. Nos círculos da corte, este sinal da
+ dependência em que ela vive, a crescente compulsão para controlar-se e
+ moderar-se torna-se uma “marca de distinção” a mais, que é imediatamente
+ imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. E aqui,
+ como nas precedentes curvas de civilização, a admoestação “Isso não se faz”,
+ com a qual a moderação, o medo e a repugnância são inculcados, só muito depois
+ é ligada, como resultado de certa “democratização”, a uma teoria científica,
+ com um argumento que se aplica por igual a todos os homens, qualquer que seja
+ sua posição ou status. O impulso primário a essa lenta repressão de uma
+ inclinação que antes era forte e geral não vem da compreensão racional das
+ causas das doenças, mas — conforme será discutido em detalhe mais adiante — de
+ mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade.
+
+ 4. A modificação de hábito de escarrar e, finalmente, a eliminação mais ou
+ menos completa de sua necessidade constitui um bom exemplo da maleabilidade da
+ vida psíquica. Pode ser que essa necessidade tenha sido compensada por outras
+ (como, por exemplo, a necessidade de fumar) ou debilitada por certas mudanças
+ na dieta. Mas é certo que o grau de supressão que se tornou possível neste caso
+ não aconteceu no tocante a muitas outras inclinações. A tendência a escarrar,
+ como a de examinar o esputo, mencionada nesses exemplos, é substituível. Ela se
+ manifesta agora apenas em crianças e em análise de sonhos, e sua eliminação é
+ vista no riso específico que nos sacode quando “essas coisas” são mencionadas
+ abertamente.
+
+ Outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis na mesma extensão. E
+ isto coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana.
+ Sem dúvida ela é submissa a certas fidelidades que podem ser chamadas
+ “naturais”. O processo histórico modifica-a dentro desses limites. O grau em
+ que a vida e o comportamento humanos podem ser moldados por processos
+ históricos não foi ainda analisado em suficiente detalhe. De qualquer modo,
+ tudo isso mostra, mais uma vez, como processos naturais e históricos se
+ influenciam mútua e inseparavelmente. A formação de sentimentos de vergonha e
+ asco e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos
+ naturais e históricos. Essas formas de emoções são manifestações da natureza
+ humana em condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo
+ sócio-histórico como um de seus elementos.
+
+ É difícil concluir se a oposição radical entre “civilização” e “natureza” é
+ mais do que uma expressão das tensões da própria psique “civilizada”, de um
+ desequilíbrio específico na vida psíquica gerado no estágio recente da
+ civilização ocidental. De qualquer modo, a vida psíquica de povos “primitivos”
+ não é menos historicamente (isto é, socialmente) marcada do que a dos povos
+ “civilizados”, mesmo que os primeiros mal estejam conscientes de sua própria
+ história. Não há um ponto zero na historicidade do desenvolvimento humano, da
+ mesma forma que não o há na socialidade, na interdependência social dos homens.
+ Nos povos “primitivos” e “civilizados”, observam-se as mesmas proibições e
+ restrições socialmente induzidas juntamente com suas equivalentes psíquicas,
+ socialmente induzidas: ansiedades, prazer a aversão, desagrado e deleite. No
+ mínimo, por conseguinte, não é muito claro o que se tem em vista quando o
+ chamado padrão primitivo é oposto, como “natural”, ao “civilizado”, como social
+ e histórico. No que interessa às funções psíquicas do homem, processos naturais
+ e históricos trabalham indissoluvelmente juntos.
+
+### Fundo da vida social
+
+ Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo
+ transferido para o fundo da vida social. [...] Suas paredes visíveis e
+ invisíveis vedam os aspectos mais “privados”, “íntimos”, irrepreensivelmente
+ “animais” da existência humana, à vista de outras pessoas.
+
+ [...]
+
+ Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na
+ ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. Tal como outros
+ “implementos de civilização”, espalhou-se de forma bem gradual pela Europa. E,
+ como eles, era símbolo de uma mudança decisiva que ocorria nessa época nos
+ seres humanos. Aumentava a sensibilidade com tudo aquilo que entrava em contato
+ com o corpo. A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes
+ haviam estado livres desse sentimento.
+
+ [...]
+
+ Neste particular, também, houve certa reação e relaxação desde a guerra. Isto
+ esteve claramente ligado à crescente mobilidade da sociedade, à difusão dos
+ esportes, a excursões e viagens, e também à separação relativamente cedo dos
+ jovens da comunidade familiar. A transição da camisola para o pijama — isto é,
+ para um trajo de dormir mais “socialmente apresentável” — constitui um sintoma
+ desta situação. A mudança não é, como se pensa algumas vezes, apenas um
+ movimento de retrogressão, uma diminuição dos sentimentos de vergonha ou
+ delicadeza ou, quem sabe, uma liberação e descontrole de ânsias instintivas,
+ mas o desenvolvimento de uma forma que se ajusta a nosso padrão avançado de
+ delicadeza e da situação específica em que a atual vida social coloca o
+ indivíduo.
+
+ [...]
+
+ As roupas de dormir da fase precedente despertavam sentimentos de vergonha e
+ embaraço exatamente porque eram relativamente informes. Não havia intenção de
+ que fossem vistas por pessoa fora do círculo familiar.
+
+### Ansiedades pelo condicionamento
+
+ “Se for forçado por necessidade inevitável a dividir a cama com outra pessoa…
+ em uma viagem, não é correto ficar tão perto dele que o perturbe ou mesmo o
+ toque”, escreve La Salle (Exemplo D) e: “Você não deve nem se despir nem ir
+ para a cama na presença de qualquer outra pessoa.”
+
+ Na edição de 1774, os detalhes são mais uma vez evitados em todos os casos
+ possíveis. E o tom é visivelmente mais severo: “Se for forçado a dividir a cama
+ com uma pessoa do mesmo sexo, o que raramente acontece, deve manter um rigoroso
+ e vigilante recato” (Exemplo E). Este é o tom da injunção moral. Até mesmo dar
+ uma razão tornou-se penoso para o adulto. Pela ameaça do tom, a criança é
+ levada a associar essa situação a perigo. Quanto mais o padrão “natural” de
+ delicadeza e vergonha parece aos adultos e quanto mais o controle civilizado de
+ ânsias instintivas é aceito como natural, mais incompreensível se torna para os
+ adultos que as crianças não sintam “por natureza” esta delicadeza e vergonha.
+ Necessariamente as crianças tocam repetidamente o patamar adulto de embaraço e
+ — uma vez que não estão ainda adaptadas — transgridem os tabus da sociedade,
+ cruzam o patamar adulto de vergonha, e penetram em zonas de perigo emocionais
+ que o próprio adulto só com dificuldade consegue controlar. Nesta situação, o
+ adulto não explica as exigências que faz em matéria de comportamento. Não tem
+ como fazê-lo adequadamente. Está tão condicionado que se conforma de maneira
+ mais ou menos automática a um padrão social. Qualquer outro comportamento,
+ qualquer desobediência às proibições ou restrições que prevalecem em sua
+ sociedade, implica perigo e uma desvalorização das restrições que ele mesmo se
+ impõe. A conotação peculiarmente emocional tão amiúde ligada a exigências
+ morais, à severidade agressiva e ameaçadora com que são frequentemente
+ defendidas, refletem a ameaça que qualquer desafio às proibições representa
+ para o equilíbrio instável de todos aqueles a cujos olhos o padrão de
+ comportamento da sociedade se tornou mais ou menos uma “segunda natureza”.
+ Essas atitudes são sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os
+ casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva, e com ela sua própria
+ existência social e ordem social onde se radica, é, mesmo remotamente,
+ ameaçada.
+
+ [...]
+
+ a parede entre pessoas, a reserva, a barreira emocional erigida pelo
+ condicionamento entre um corpo e outro cresceram sem cessar. Desde cedo as
+ crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e
+ experiências que isto traz.
+
+ [...]
+
+ Com uma certa impotência, o observador do século XIX e, até certo ponto, do
+ século XX, vê-se diante de modelos e regras de condicionamento do passado. E
+ até que compreendamos que nosso próprio patamar de repugnância, nossa própria
+ estrutura de sentimentos, evoluíram — em um processo estruturado — e seguem
+ evoluindo, continua realmente quase incompreensível, do atual ponto de vista,
+ como diálogos como esses pudessem ser incluídos em um livro escolar ou
+ deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é
+ exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em
+ relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu.