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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-04-20 20:07:53 -0300
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Books: processo civilizador
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@@ -0,0 +1,259 @@
+[[!meta title="O processo civilizador"]]
+
+## Índice
+
+* Processo civiliza-DOR.
+* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
+
+### Kultur e Zivilization
+
+ O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
+ da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
+ científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
+
+ [...]
+
+ Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
+ útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
+ apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
+ A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
+ expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
+ Kultur.
+
+ [...]
+
+ O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
+ superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
+ autoimagem do estrato intelectual de classe média.
+
+### Vanguarda
+
+ Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
+ não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
+ manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
+ sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
+ Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
+ descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
+ mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
+ pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
+ membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
+ maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
+ em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
+ cortesã.
+
+ Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
+ ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
+ solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
+ Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
+ geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.
+
+ [...]
+
+ E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
+ andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
+ Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
+ murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
+ um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
+ ver um burguês entre seus membros.
+
+ “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
+ aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
+ de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
+ que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
+ guardadores de porcos.”
+
+ Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
+ formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
+ livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
+ referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
+ situação social muito específica.
+
+ No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
+ as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
+ dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
+ bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
+ quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
+ como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
+ de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
+ fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
+ médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
+ pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
+ a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.
+
+ Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
+ ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
+ cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
+ conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
+ título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.
+
+ O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
+ avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
+ semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
+ de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
+ August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.
+
+ [...]
+
+ De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
+ paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
+ aristocrática na Alemanha.
+
+ [...]
+
+ A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
+ é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
+ A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
+ Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
+ flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
+ erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
+ oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
+ ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
+ sociedade onde se integram, são interesses marginais.
+ O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
+ e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
+ política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
+ a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
+ fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
+ política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
+ Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
+ arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
+ do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.
+
+ [...]
+
+ Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
+ alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
+ com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
+ com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
+ descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
+ anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
+ de 1827):
+
+ Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
+ Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
+ porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
+ chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
+ país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
+ Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
+ é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
+ isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
+ fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
+ viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.
+
+ Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
+ reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
+ rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
+ de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
+ ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
+ transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
+ pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
+ onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
+ essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
+ todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
+ desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
+ no seu 24o ano de vida.
+
+ [...]
+
+ Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
+ disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
+ importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
+ essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
+ ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
+ média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.
+
+### Civilização como máquina automática em constante reforma
+
+ No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
+ de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
+ Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
+ indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
+ despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
+ decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
+ ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
+ parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
+ em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
+ concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
+ inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
+ reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
+ capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
+ uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
+
+ [...]
+
+ A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
+ todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
+ verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
+ civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
+ governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
+ florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
+ de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
+ do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
+ que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
+ crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
+ permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
+ de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
+ conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
+ desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
+ governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.
+
+ [...]
+
+ Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
+ conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
+ Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
+ Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
+ uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
+ variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30
+
+ No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
+ civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
+ frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
+ caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
+ civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
+ estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
+ não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
+ completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
+ conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
+ nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
+ moral.”32
+
+ O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
+ crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
+ da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
+ “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
+ expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
+ intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
+ medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
+ em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
+ “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
+ nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
+ reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
+ designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
+ individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
+ sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
+ encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
+ A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
+ civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
+ processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
+ não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
+ lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
+ barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
+ sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.
+
+ Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
+ movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
+ estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
+ no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
+ ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
+ ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
+ moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
+ complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
+ membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
+ para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
+ Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
+ população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
+ condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
+ burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
+ processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
+ interna do país pelos reis.