[[!meta title="Apatia, gerenciamento e autogestão distribuída"]] The reasonable man adapts himself to the world; the unreasonable one persists in trying to adapt the world to himself. Therefore all progress depends on the unreasonable man. -- George Bernard Shaw Não é um jogo e nem as cartas estão na mesa. Até agora, mostramos que o capitalismo se perpetua pela busca por inovações oriundas no seu próprio descontrole, mas que apesar disso as utopias não deixaram de morrer. Ainda existem chances e provavelmente sempre existirão. Nesse sentido, os dois próximos textos são sugestões de configurações sociais que em princípio não parecem essencialmente novas, não buscam serem consideradas como "de vanguarda". O que impulsionou a escrita de todos esses textos e principalmente destes próximos é a crença de que eles podem contribuir para o fortalecimento do descontrole (descontrole do ponto de vista do capitalismo) e principalmente do ruído destinado a nos levar a uma sociedade mais justa. Talvez muito do que aqui esteja escrito já tenha sido apropriado pelo capitalismo e pela lógica empresarial, talvez o que houver de novidade aqui possa no futuro ser também apropriado. Talvez, até a própria ruína do capitalismo e demais sistemas sociais produtores da miséria não dependa de alguma descoberta e inovação da esquerda, mas do seu próprio e imprevisível colapso. De qualquer modo, julgamos que devemos nos arriscar: não fazer nada é jogar as chances no lixo e terminar a vida como perdedores que nem jogaram. Acontece que não é um jogo e nem as cartas estão na mesa. No entanto, a rodada anterior já foi concluída, o movimento antiglobalização já inventou novidades, o sistema se apropriou de parte delas e o mundo segue seu curso. Agora talvez seja uma nova rodada deste não-jogo. O que exatamente deve ser feito, quais práticas adotadas e quais horizontes vislumbrados dependem de cada pessoa e de cada grupo, Aqui, colocamos apenas algumas sugestões e possibilidades. Recomendamos que cada grupo reflita e adote suas próprias. Estas conclusões são destinadas primeiramente aos grupos e pessoas que trabalham por um mundo mais justo mas que no entanto tem seus esforços em muito diminuídos pelo excesso de burocracia, formalizações, concentração de poder (mesmo que involuntária), falta de engajamento e vontade das pessoas, etc. Em segundo lugar, estas são conclusões sobre como uma sociedade livre e justa pode operar de forma autogestionada, autocontrolada e de forma distribuída. Em nossos últimos textos temos discutido o controle social baseado no modelo de gerenciamento de fluxos de informação, na exploração do trabalho alheio e no aprisionamento do desejo humano. Postulamos inicialmente que o controle total não existe e podemos também dizer que hoje em dia não há meios para um descontrole total. Todo o controle pode gerar descontrole, um modula o outro e o inapropriável se situa naquilo que pode ser amplificado de modo a quebrar com o ciclo vicioso. Durante nossa discussão sobre cultura e de acordo com cada um dos exemplos utilizados ao longo dos diversos textos, a questão do gerenciamento e do controle social desembocaram na necessidade das pessoas serem capazes de decidirem quais práticas sociais devem escolher. Em outras palavras, autogestão distribuída. À luz do que já foi dito sobre cultura[1], a descrição dos procedimentos contida neste texto deve ser entendida como um objeto cultural ou até como uma inovação cultural, se é que neste texto há alguma alusão a comportamentos que sejam novos. De todo modo, este texto sugere comportamenteos sociais e portanto pode ser entendido como um dado cultural. A autogestão distribuída ------------------------ A dominação das pessoas se estabelece quando as mesmas são gerenciadas de forma a se comportar conforme normas previamente desejadas ou quando suas condutas são aceitas ou negadas. * O Gerenciamento é valido? Existe a possibilidade do auto-gerenciamento ou gerenciamento distribuído, onde cada pessoa contribui favoravelmente para a probabilidade de certos eventos ocorrerem em detrimento de outros? * Exemplo 1: listar o que cada pessoa quer fazer coletivamente; pergunta retórica: o controle dessa listagem e das associações entre pessoas que advir dela deve ser feito por uma única pessoa (o/a gerente) ou cada pessoa deve saber como se associar (emergência de padrões). * Exemplo 2: a própria organização desta reunião pode ser observada sobre a óptica do gerenciamento centralizado/distribuído: se todo mundo saber auto-organizar sua vida e organizar o coletivo e sua inserção nele, a organização desta reunião e de qualquer outro processo coletivo passa a não ser gerenciado e controlado por uma instância central. * Exemplo 3: sítios da Web 2.0 que exploram redes sociais são sistemas de gerenciamento de pessoas. Como combate à apatia, ao espetáculo (no sentido das pessoas se portarem como espectadoras, pessoas gerenciadas que permanecem em estado de espera, letárgico e apático), ao ruído existente na lista de discussão, à dificuldade de acompanhamento dos processos no coletivo e à inexistência de muitos processos realmente coletivos em andamento (e não apenas às iniciativas pessoais existentes dentro de um grupo), foi elaborado o seguinte esquema mental de como ele lidou e como qualquer pessoa pode participar de um grupo, onde três espaços básicos do coletivo são visualizados e uma função é atribuída a cada um deles: * Reuniões informais: discussões, bate-papo descompromissado, elaboração de propostas de decisão e ação. * Wiki Fechado: relatos, propostas e formalizações. * Lista de discussão: instância de tomada de decisão. Ou seja: * Instância informal: reuniões presenciais ou via bate-papo. * Instãncia formalizadora: lista de discussão. * Meio de campo: Wiki Fechado. Num exemplo concreto, trata-se de aplicar ao máximo esse esquema mental de como lidar com o coletivo: * Usar a lista de discussão o mínimo possível para não gerar ruído. * Usar os encontros informais para a maior troca de idéia. * Usar o wiki ao máximo para passar o que foi discutido informalmente para a lista e vice-versa. Esse esquema mental nada mais faz do que sugerir um modelo pessoal de entendimento e participação no processo coletivo, onde a pessoa pode determinar a melhor forma de se comunicar e submeter propostas, idéias e relatos sem que suas mensagens façam parte de um ruído (isto é, excesso de mensagens sendo enviadas à lista) ou caiam num processo de formalização muito burocrático. Com relação às reuniões informais, não há problema de autonomia se as pessoas combinarem previamente, avisarem a lista e depois acrescentarem relatos ao wiki (e informarem a lista dessas alterações). Inclusive, as reuniões informais, se feitas dessa forma, evitam o problema de gastarmos semanas tentando encaixar na agenda de todo mundo uma reunião onde no fim das contas aparecem poucas pessoas. Desse modo, quando alguém quiser ou sentir que uma reunião é necessária, basta combinar com outras pessoas interessadas, comunicar na lista e pronto :) Tal modelo nem precisa ser aprovado pelo coletivo, pois é um modelo de entendimento e relacionamento pessoal de como as coisas podem fluir e como processos interessantes podem emergir, lembrando que emergência pode ser entendida como pequenas regras (ou modelos, esquemas) de comportamento que cada pessoa mantém e aplica. Por fim, a questão da apatia versus o protagonismo. Tal modelo de relacionamento proposto só funciona de modo saudável se todas as pessoas forem protagonistas, deixando sua apatia e sua preguiça de lado. Caso contrário, ela levará a um gerenciamento centralizado nas poucas pessoas que forem ativas. Sentiu que uma troca de idéias deve ser feita? Vá, faça, se possível informe a lista com antecedência e depois adicione o conteúdo no wiki e avise a lista dessa adição. Quem não tem iniciativa está destinado/a a ser gerenciado/a e governado/a. Autogestão ---------- * Fazer e tornar público na medida do possível. * Número máximo de pessoas com as quais alguém consegue se relacionar. * Espaços formais e informais, momentos formais e informais. * Os processos devem ser de modo a _viabilizar sempre_ o trabalho de todos/as, levando em conta as limitações das pessoas (tempo, capacidade, vontade, etc). * Entender os fatores que devem ser considerados na autogestão de quaisquer procedimentos coletivos (escalabilidades, fluxo de informação, etc). * As pessoas devem determinar os fluxos e os processos e não os sistemas que devem determinar a forma de organização e o trabalho das pessoas (nem as pesoas devem se realizar apenas mediante a existência dos sistemas, devem ser independentes deles). * Os fluxos exercidos são realizados apenas a partir das vontades e desejos das pessoas, sendo que estes sentimentos devem ser compreendidos também de acordo com a vontade de que a liberdade e o bem-estar de uma pessoa contemplem e reforce a de outra. Exemplos -------- * Agendas pessoais públicas. * Aproveitamento de material. * Equipamentos coletivizados: o uso constante de espaços e equipamentos pelos seus donos é impraticável. Um "fundo" comum mas sem ser necessariamente um depósito comum: esquema de empréstimos distribuído. Informatizando -------------- A autogestão hoje pode ser muito enriquecida através da assimilação de conceitos e protocolos oriundos da teoria da informação. Teoria que foi criada para a centralização e o controle, mas que igualmente pode ser utilizada para a descentralização do mesmo. O modelo de uma organização autogestionada ou mesmo de grupelhos tem também muito o que herdar das experiências da educação, da pedagogia e das escolas libertárias onde existem espaços e estruturas disponíveis para a investigação pessoal ou coletiva impulsionada pela vontade de conhecer. Sem controle centralizado significa dizer que a priori não há necessidade de conhecimento global, mas apenas local (o que vale na maioria dos casos). Portanto, a terceira contribuição à autogestão pode vir da chamada "emergência de padrões" e da "inteligência coletiva": comportamentos simples e adotados por várias pessoas que levam a um fluxo complexo. Mas cuidado: se a subversão depender de comportamentos simples e previsíveis, pode também existir uma possibilidade maior de enfraquecimento da resistência. A cibernética é a ciência do controle do ruído, é uma tentativa de estabelecer controles e lidar com descontroles. O caos é a ciência de tentar encontrar e controlar padrões não determinísticos. Se a cibernética já é uma ciência há muito estabelecida, o caos ainda é um ramo relativamente novo. No entanto, da cibernética para o caos uma mudança de ocorreu: do estudo dos sistemas de eliminação de ruído, já bem estabelecidos pela cibernética, passou-se para o estudo do próprio ruído, nem sempre passível de eliminação (mesmo em sistemas bem simples). O caos hoje é o atual ramo do conhecimento onde se efetua a batalha entre o controle e o descontrole. É imprescindível para um grupo autônomo também ter autonomia e autocontrole sobre sua estrutura informacional e portanto depender o mínimo possível de estruturas corporativas, pois estas podem, ao mesmo tempo que facilitar o trabalho do grupo, também dele obter informações fundamentais e por isso também ser capaz de, em algum momento, controlá-lo. Resiliência ----------- O monitoramento em massa e a consequente seleção de alvos funcionam muito bem porque mesmo nos movimentos sociais existe concentração de poder, controle e gerenciamento, de modo que, com a remoção de apenas algumas poucas pessoas, é possível acabar completamente com muitos movimentos. Em grupos onde há um gerenciamento distribuído, onde há autocontrole e autogestão, os grupos se tornam muito mais resistentes à seleção de alvos. ^ |. | . | . | . | . | . | . |-----------------------------> Gráfico 1: Tráfego em função do número de pessoas Hoje, porém, os grupos -- mesmo os autônomos --, tem suas estruturas muito diferentes do modelo autogestionario, autocontrolado e autogerenciado. Inclusive isso é verdade mesmo para aqueles que adotam a forma de organização horizontal e anti-hierárquica. Os grupos são compostos por inúmeras pessoas que, no entanto, deles pouco participam ou neles desempenham papéis menores nas decisões tomadas e nas tarefas executadas. O gráfico acima mostra um levantamento das mensagens que circularam dentro de um dado grupo durante um certo período. Logo de cara percebe-se que poucas pessoas são responsáveis pela maior parte das mensagens nele trafegadas, ou seja, poucas pessoam tomam conta e gerenciam a comunicação dentro e fora do grupo, eventualmente também sendo elas as responsáveis pela própria gestão interna. O gráfico, no entanto, não é apenas representativo de um comportameteo dominante nos movimentos sociais. Ele é na verdade representante da própria característica do sistema social vigente que, mesmo possuindo uma massa enorme de gente que efetivamente realiza trabalho, a mesma não participa dos processos de gestão e controle social, tanto porque o trabalho suga boa parte de suas energias ou também porque elas não tem percepção ou mesmo interesse na necessidade de serem aptas de modificarem o próprio destino. Portanto, as pessoas atuam (ou deixam de atuar, afinal, acabam por não participar em toda sua plenitude) nos movimentos com a mesma tendências de delegação de poder com que entregam seus destinos aos gestores sociais. Concordo em parte: sim, o controle não é automático simplesmente porque, em primeiro lugar, monitoramento e controle demandam custos e até hoje não compensou monitorar todas as pessoas cadastradas aumenta demais os limitados orçamentos destinados a isso (o que é válido principalmente em países subdesenvolvidos que tem pouca verba destinada a esse tipo de coisa). Em segundo lugar, monitorar todo mundo não é necessário pra ter um bom mapa esquemático sobre uma dada organização. Terceiro, porque efetivamente nenhuma agência de inteligência é realmente inteligente, algumas se aproximam mais, outras menos, mas nenhuma é completamente eficaz. Agora, dado o barateamento da informática e a quantidade enorme de desenvolvimento na computação de sistemas de mineração de dados, começam a surgir sistemas de monitoramento em massa que aumentam muito a eficácia tanto das agências de inteligência quanto da nova indústria cultural. Não quero com essa afirmação dizer que agências de inteligência são a mesma coisa que olheiros/as da indústria cultural, apenas falo que ambas tem interesses muito próximos, ainda que para finalidades diversas, na utilização de algoritmos de mineração de dados. Sobre isso recomendo o seguinte artigo: The Economics of Mass Surveillance and the Questionable Value of Anonymous Communication http://freehaven.net/anonbib/cache/danezis:weis2006.pdf Ele não fala apenas sobre monitoramento em massa e segurança. Uma leitura atenta mostra que inclusive ele toca no ponto da gestão dos grupos. Se você ler, conto um segredo sobre ele! :P Concordo em parte. A programação da TV tende a evitar inovações mas aos poucos elas são sim introduzidas, bem aos poucos. O que discordo é acreditar que a análise para a TV vale para outros instrumentos midiáticos. Paro tubo de ensaio, por exemplo, isso não vale, porque não existe um "canal" e uma programação única veiculada sincronizadamente para uma massa de telespectadores/as. Nessas novas formas de comunicação a inovação não acarreta em prejuízos, já que é o usuário/a que monta a sua programação. Concordo que muita coisa permanece subterrânea, mas nem tudo fica, especialmente aquilo que já circula pela rede mundial de computadores. Sim, sabotagens são possíveis :) Uma dos pressupostos do combate ao terror é a seleção de alvos, mas o suposto terrorismo funciona como células independentes com pouca ou nenhuma comunicação entre si; por isso, na prática o objetivo do combate ao terror é a desmobilização dos movimentos sociais legítimos. Misc ---- "Quando um grupo de desejos se agrupa e tenta deixar escoar um pouco desta demanda represada, eles são represados." - http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/10/398279.shtml * Disciplinarização, trabalho, produtividade, preguiça e desejo. * Conhecimento do todo (informação global do sistema) ou apenas de algumas partes (informações locais): emergência. * O problema, como foi diagnosticado, parece ter raíz no gerenciamento e na administração centralizadoras e/ou alheia (externa) às pessoas. A autogestão distribuída pode ser um pressuposto. * Desejo pode gerar descontrole. * A pixação e o grafite em princípio são manifestações não gerenciadas. * A tirania das organizações sem estrutura: relações entre instâncias formais de democracia e informais de tirania. * Espectro de desejos e espectro de energia. * Na sociedade de controle, não há apenas a disciplina individual e a biopolítica das massas, mas uma junção das mesmas: é possível simultaneamente vigiar um indivíduo específico assim como qualquer massa que ele integre. * Capital humano: a sala de bate-papo foi substituída pela lista de contatos do Orkut e do MSN. Economia dos contatos. * A racionalidade dos gestos do trabalhador/a se faz muito mais presente na informática do que em outras áreas principalmente porque é nela em que os menores atos tem grande alcance. Racionalização que também provoca lesões por esforços repetitivos. * Nome de um grupo ou pessoa é um bem rival, já que é utilizado na atividade política. Em muitos casos, o uso contraditório do nome pode levar a perda de credibilidade, em outros pode ser operacional. * Parece mais sensato nos referirmos a _conteúdo_ e não à cultura. * Cuidado com a busca pela regularidade nas ações (reuniões, etc). * Verificar se isso aqui é interessante: [Informação e inteligência coletiva no ciberespaço: uma abordagem dialética](http://www.cienciasecognicao.org/artigos/v11/317144.html). * Redes com escala, redes sem escala, redes com escala exponencial e resiliência. * O erro das análises de Bauman e Adorno está em não contar com a possibilidade do gerenciamento totalmente distribuído, onde qualquer pessoa possa ser ao mesmo tempo consumidora, produtora, gerenciadora, distribuidora, etc, e isso se extende para qualquer tipo de cadeia produtiva e não apenas para conteúdos culturais. Referências ----------- 1. [A cultura sob o ponto de vista da sociedade do controle e descontrole](http://wiki.sarava.org/Estudos/CulturaControleDescontrole).