[[!meta title="A Arte de Viver para Novas Gerações"]] Sobre ----- A Arte de Viver para Novas Gerações, Raoul Vaneigem. Versões ------- * http://library.nothingness.org/articles/SI/en/pub_contents/5 * http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/ Trechos ------- The path toward simplicity is the most complex of all, and here in particular it seemed best not to tear away from the commonplace the tangle of roots which enable us to transplant it into another region, where we can cultivate it to our own profit. -- http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/34 Gostaria que um livro como este fosse acessível às cabeças menos acostumadas com a linguagem das idéias. Espero não ter fracassado totalmente. Desse caos, algum dia sairão fórmulas capazes de atingir à queima-roupa os nosso inimigos. Até lá, que as frases relidas aqui e ali tenham seus efeitos. A via para a simplicidade é a mais complexa de todas e, especialmente nesse caso, era conveniente não arrancar ao lugar-comum as múltiplas raízes que poderemos transplantar a outro terreno e cultivá-las em nosso benefício. -- 8 O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de ser lamentável para uma boa organização social (mesmo se o suicida não tiver a feliz idéia de se matar no estilo dos príncipes orientais, levando com ele todos os seus servos: juízes, bispos, generais, policiais, psiquiatras, filósofos, managers, especialistas e cibernéticos). -- 36 Assim que o líder do jogo se torna um chefe, o princípio hierárquico se salva, e a revolução se detém para presidir o massacre dos revolucionários. É preciso lembrar sempre: o projeto insurrecional só pertence às massas, o líder reforça-o, o chefe o trai. É entre o líder e o chefe que inicialmente se desenrola a luta autêntica. -- 37 Resumindo, a descompressão nada mais é do que o controle dos antagonismos pelo poder. A oposição de dois termos toma sentido pela introdução de um terceiro. Se só existem dois pólos, eles se neutralizam, uma vez que cada um se define pelos valores do outro. É impossível escolher entre eles, entra-se no domínio da tolerância e do relativismo, tão querido à burguesia. Como é compreensível o interesse da hierarquia apostólica romana na querela entre o maniqueísmo e o trinitarismo! -- 38 O poder aquisitivo é a licença de aquisição do poder. O velho proletariado vendia a força de trabalho para subsistir; o seu escasso tempo livre era gasto mais ou menos de maneira agradável em discussões, conversas, nos bares, fazendo amor, caminhando em festas e motins. O novo proletariado vende a força de trabalho para consumir. Quando não busca no trabalho forçado uma promoção hierárquica, o trabalhador é convidado a comprar objetos (carro, gravata, cultura...) que lhe atribuirão o seu lugar na escala social. Esta é a era em que a ideologia do consumo se torna o consumo da ideologia. A expansão cultural leste-oeste não é um acidente. De um lado, o homo consumidor compra um litro de uísque e recebe como prêmio a mentira que o acompanha. Do outro, o homem comunista compra ideologia e recebe como prêmio um litro de vodca. Paradoxalmente, os regimes soviéticos e capitalistas seguem um caminho comum, os primeiros graças à sua economia de produção, os segundos pela sua economia de consumo. -- 46 Com as diferenças crescendo em número e se tornando menores, a distância entre ricos e pobres diminui de fato, e a humanidade é nivelada, com as variações de pobreza sendo as únicas variações. O ponto culminante seria a sociedade cibernética composta de especialistas hierarquizados segundo a sua aptidão de consumir e de fazer consumir as doses de poder necessárias ao funcionamento de uma gigantesca máquina social da qual eles seriam ao mesmo tempo a entrada e a saída de dados. Uma sociedade de exploradores-explorados onde alguns escravos são mais iguais do que outros. -- 47 A história é a transformação contínua da alienação natural em alienação social, e também, paradoxalmente, o contínuo reforço de um movimento de contestação que irá dissolvê-la, “desalienando-a”. A luta histórica contra a alienação natural transforma a alienação natural em alienaçao social, mas o movimento de desalienação histórica atinge por sua vez a alienação social e denuncia a sua magia fundamental. [...] O apodrecimento das relações humanas pela troca e pela contrapartida está evidentemente ligado à existência da burguesia. Que a troca persista em uma parte do mundo em que se diz que a sociedade sem classes se realizou atesta que a sombra da burguesia continua reinar debaixo da bandeira vermelha. Enquanto isso, entre as pessoas que vivem nos países industrializados, o prazer de dar delimita muito claramente a fronteira entre o mundo do cálculo e o mundo da exuberância, da festa. -- 49 Dom, troca, contrapartida e doação. -- 49 Técnica. -- 50 Desse ponto de vista, a história não passa da transformação da alienação natural em alienação social: um processo de desalienação transformado em um processo de alienação social, um movimento de libertação que produza novos grilhões. Embora, no final, a vontade de emancipação humana ataque diretamente o conjunto dos mecanismos paralisantes, ou seja, a organização social baseada na apropriação privada. Esse é o movimento de desalienação que vai desfazer a história e realizá-la em novos modos de vida. A ascensão da burguesia ao poder anuncia a vitória do homem sobre as forças naturais. Mas, na mesma hora, a organização social hierárquica, nascida da necessidade de luta contra a fome, a doença, o desconforto etc., perde sua justificativa e é obrigada a endossar a responsabilidade pelo mal-estar nas civilizações industriais. Hoje os homens já não atribuem a sua miséria à hostilidade da natureza, mas sim, à tirania de uma forma social totalmente inadequada, totalmente anacrônica. Destruindo o poder mágico dos senhores feudais, a burguesia condenou a magia do poder hierárquico. O proletariado executará a sentença. -- 50 O princípio hierárquico é o princípio mágico que resitiu à emancipação dos homens e as suas lutas históricas pela liberdade. De agora em diante nenhuma revolução será digna desse nome se não implicar pelo menos a eliminação radical de toda hierarquia. -- 51 Rigidamente quantificado (pelo dinheiro e depois pela quantidade de poder, por aquilo a que poderíamos chamar “unidades sociométricas de poder”), a troca polui todas as relações humanas, todos os sentimentos, todos os pensamentos. Onde quer que a troca domine, só sobram coisas, um mundo de homens-objetos congelados nos organogramas do poder cibernético: o mundo da reificação. Mas é também, paradoxalmente, a oportunidade de uma reestruturação radical dos nossos modelos de vida e de pensamento. Um ponto zero em que tudo pode verdadeiramente começar. [...] Ao sacrifício do senhor sucede o último estágio do sacrifício, o sacrifício do especialista. Para consumir, o especialista faz outros consumirem de acordo com um programa cibernético no qual a hiper-racionalidade das trocas suprimirá o sacrifício – e o homem ao mesmo tempo! Se a troca pura regular um dia as modalidades de existência dos cidadãos- robôs da democracia cibernética, o sacrifício deixará de existir. Para obedecer, os objetos não têm necessidade de justificativa. O sacrifício não faz parte do programa das máquinas assim como do seu oposto, o projeto do homem total. -- 52 Contrariamente aos interesses daqueles que controlam seu uso, a técnica tende a desmistificar o mundo. [...] As mediações alienadas enfraquecem o homem ao tornarem-se indispensáveis. Uma máscara social cobre os seres e objetos. No estado atual de apropriação primitiva, essa máscara transforma aquilo que ela cobre em coisas mortas, em mercadorias. Não existe mais natureza. Reencontrar a natureza é reinventá-la como adversário vantajoso construindo novas relações sociais. A excrescência do equipamento material arrebenta o casulo da velha sociedade hierárquica. -- 55 O quantitativo e o linear confundem-se. O qualitativo é plurivalente, o quantitativo, unívoco. A vida quantificada se torna uma linha uniforme que é seguida em direção à morte. -- 61 que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo? Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob pretexto de me proteger? E como me reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. Tudo se passa como se os meus passos me precedessem, como se pensamentos e afetos seguissem os contornos de uma paisagem mental que eles pensam criar, e que na realidade os modela. Uma força absurda – tanto mais absurda quanto se inscreve na racionalidade do mundo e parece incontestável – coage a saltar sem parar para atingir um solo que os meus pés nunca abandonaram. E com esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto... A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o -- 63 Ao saciar a sobrevivência por meio de uma alimentação artificial, a sociedade de consumo suscita um novo apetite de viver. Onde quer que a sobrevivência esteja tão garantida quanto o trabalho, as antigas salvaguardas transformam-se em obstáculos. Não só a luta para sobreviver impede de viver: uma vez que se torna uma luta sem objetivos reais, ela corrói iaté a própria sobrevivência, tornando precário o que era irrisório. A sobrevivência cresceu tanto que, se não trocar de pele, ela nos sufocará na sua pele à medida que morre. A proteção fornecida pelos senhores perdeu razão de ser desde que a solicitude mecânica [...] O poder já não protege, ele protege a si próprio contra todos. -- 65-66 Quais são os métodos de sedução do poder? A coação interiorizada que assegura uma consciência tranquila baseada na mentira: o masoquismo do cidadão honesto. Foi de fato necessário chamar de desprendimento ao que não passava de castração, pintar com as cores da liberdade a escolha entre várias formas de servidão. -- 71 Sedução para domesticar, ordem, morte em pequenas ou grandes doses, bloqueio da força criativa. -- 72 Quando o rebelde começa a acreditar que luta por um bem superior, o princípio autoritário ganha impulso. Nunca faltaram razões à humanidade para renunciar ao humano. De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra “coisa” arrastando por toda parte o seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, abdica-se o mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura, pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da doença. [...] A revolução se faz todos os dias, apesar dos especialistas da revolução e em oposição a eles: uma revolução sem nome, como tudo aquilo que pertence à experiência vivida. Ela prepara, na clandestinidade cotidiana dos gestos e dos sonhos, a sua coerência explosiva. Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído na minha mente enquanto durmo. [...] Escrevo por impaciência e com impaciência. Para viver sem tempo morto. O que as outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou menor. -- 74 Arte, vida, criatividade. -- 75-77 Do mesmo modo que a classe dominante tem os melhores motivos do mundo para negar a existência da luta de classes, assim a história da separação não pode deixar de se confundir com a história da dissimulação. -- 78 Excetuando as máquinas de guerra, as máquinas antigas têm origem no teatro: gruas, roldanas, mecanismos hidráulicos eram usados como acessórios teatrais bem antes de transformarem as relações de produção. Este fato merece ser salientado: por mais longe que se recue, a dominação da terra e dos homens depende sempre de técnicas invariavelmente consagradas ao serviço do trabalho e da ilusão. -- 84 Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem- consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de estereótipos, é aquilo a que hoje se -- 85 Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da pseudo-atividade. -- 86 A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2) A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a escolha dos modelos de identifiicação. A identificação é um estado doentio, mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no domínio do lúdico(4) [...] O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver. -- 87 Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária. E por isso cultivamos aparências. -- 88 Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de jogo que transforma os papéis. -- 89 a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão. Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório climatizado dos hispitais psiquiátricos. Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias, sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um compromisso, por uma atividade prática. -- 90 Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos tratarão disso, se lhes dermos a chance. [...] A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos papéis ou os recusam. -- 91 Papel, Reich, couraça. -- 92 Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos. Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos não são um crime. -- 94 Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se uma fase clandestina de tática, a era do jogo. O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa apoderar. -- 99 Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento. No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E, hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do homem pelo homem e do poder hierárquico. -- 102 Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da mesquinhez e do pensamento pequeno. -- 105 Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver. -- 107 O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo, zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um cemitério. [...] Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos específicos! Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que seu preço seja tão alto quanto a liberdade. -- 114-115