[[!meta title="Ruptura"]] ## Trechos Os únicos que se sustentam são aqueles que não fingem mais governar nada, mas que usam o poder simplesmente para fornecer a parcelas da população o gosto drogado da autorização da violência contra os vulneráveis. -- 11 Só governos fracos são violentos. Eles têm de vigiar todos os poros, pois sabem que seu fim pode vir de qualquer lugar. Governos fortes são magnânimos, porque vislumbram tranquila- mente sua perpetuação. O que se contrapõe a nós é fraco e desesperado. Ele cairá. É hora de fazê-lo cair. -- 13 Generais e almirantes tomam o poder. Eles exterminam seus predecessores de esquerda, exilam os opositores, aprisionam os intelectuais dissidentes, sufocam os sindicatos, controlam a imprensa e paralisam toda atividade política. Mas, nesta variante do fascismo de mercado, os che- fes militares tomam distância das decisões eco- nômicas. Eles não planificam a economia nem aceitam suborno. Eles confiam toda a economia a fanáticos religiosos – fanáticos cuja religião é o laissez-faire do mercado (...) Então o relógio da história anda para trás. O mercado é liberado e a massa monetária estritamente controlada. Os créditos de ajuda social são cortados, os trabalha- dores devem aceitar qualquer coisa ou morrer de fome (...) A inflação baixa reduz-se a quase nada (...) A liberdade política estando fora de circula- ção, as desigualdades de rendimentos, consumo e riqueza tendem a crescer. É evidente que as elucubrações de Samuelson a respeito do “fascismo de mercado” se inspiravam no Chile da ditadura de Augusto Pinochet (1973- 1990). Esse regime sucedeu um governo que ten- tava construir o socialismo pela via eleitoral e foi derrubado por uma articulação envolvendo a social- -democracia cristã, grupos terroristas neofascistas, entidades patronais e Washington, num processo que culminou no bombardeio do Palácio de La Moneda em 11 de setembro de 1973. A partir daí, Pinochet aniquilou a oposição com uma brutali- dade poucas vezes vista. O Estado chileno torturou cerca de 30 mil opositores, em centros espalhados por todo o território nacional, e assassinou milhares de pessoas. Apenas assim foi possível impor à população as políticas dos fanáticos do laissez-faire. Iniciava-se o experimento neoliberal imposto pelos Chicago boys. Após o golpe, esse grupo de econo- mistas, ligados ao teórico e guru Milton Friedman, ocuparia todos os espaços do Estado ditatorial, dos ministérios à presidência do Banco Central. No mesmo momento em que o neoliberalismo aparecia como modelo de gestão social nas democracias liberais do Reino Unido de Margaret Thatcher e dos EUA de Ronald Reagan, a ditadura chilena explicitava a linha de fuga para a qual o capitalismo mundial se encaminhava. Essa junção de brutalidade política e neoliberalismo econômico, aplicada inicialmente no Chile, agora se mostra como a tendência generalizada do capitalismo atual e tem no Brasil seu mais recente laboratório. Tal processo ocorre precisamente no momento em que a farsa da livre concorrência foi definitivamente rasgada pelo retorno a práticas de acumulação primitiva, fazendo com que até mesmo a democracia liberal-parlamentar tenda a ser descartada – especialmente aqui, na periferia do capitalismo. [...] Por isso, segundo Hayek, o único regime totalitário que a América do Sul conheceu até os anos 1980 não teria sido o Brasil dos militares, a Argentina de Videla ou o Chile de Pinochet, mas o governo da Unidade Popular de Allende. A tese implícita era de que um modo de vida e de produção não baseado na propriedade privada dos meios de produção seria a definição mesma de totalitarismo. Mas esse conceito liberal de liberdade só poderia se impor à base de choques. Afinal, as sociedades não aceitam sem resistência limitar seus desejos e sua inquietude à liberdade de empreender (reservada para alguns). A experiência histórica das lutas por liberdade revela justamente a insistência em livrar a atividade da submissão à forma do trabalho, da ânsia pela igualdade radical e pelo fim da naturalização da exploração, da vontade de liberação do mundo das coisas dos contratos de propriedade. Sendo assim, apenas uma fina engenharia social, que envolveria todas as instâncias do governo e do capital e que mobilizaria tanto o soldado de baixa patente como o burocrata do primeiro escalão, seria capaz de neutralizar esses desejos, criando uma homofonia social. Embora paradoxal, a liberdade de empreender exige “mais” e não “menos” Estado, que se impõe na forma de repressão sanguinária e vigilância constante. [...] A aproximação entre Hayek e o principal jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, não deixa dúvida sobre sua concepção de democracia. [...] O autoritarismo, portanto, não é um acidente do capitalismo e não é a antítese da democracia burguesa. Ele é parte constitutiva desse modo de gestão de populações. Afinal, foi no esteio da belle époque das grandes potências ocidentais que se consumou o holocausto dos povos coloniais, primeiro laboratório do caos. -- 17-25