[[!meta title="O processo civilizador"]] ## Índice * Processo civiliza-DOR. * Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução. ### Kultur e Zivilization O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. [...] Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é Kultur. [...] O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a autoimagem do estrato intelectual de classe média. ### Vanguarda Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão. Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país, pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia cortesã. Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca. [...] E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde, andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social. Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde, um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao ver um burguês entre seus membros. “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes guardadores de porcos.” Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma situação social muito específica. No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe, quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque. Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt. O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento. [...] De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior aristocrática na Alemanha. [...] A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores, é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII. A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período. Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da sociedade onde se integram, são interesses marginais. O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião, arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung) do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade. [...] Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo, descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20 anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio de 1827): Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse viajado um ano inteiro em meu caminho solitário. Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX, onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot, essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa no seu 24o ano de vida. [...] Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento. ### Civilização como máquina automática em constante reforma No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo. Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico, em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de uma maneira mais esclarecida e racional do que até então. [...] A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”, que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente, desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica. [...] Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30 No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa moral.”32 O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários, intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte, em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é, reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente. A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité. Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação interna do país pelos reis. ### Ruderia Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham. [...] A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro. Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante. O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano, preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o pé. O mesmo se aplica ao escarro. Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós, materializações de uma estrutura mental e emocional diferente. [...] Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa. Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta: “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em algum lugar.” [...] Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã: cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o vinho não lhe serve, procure outras acomodações. [...] Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões, tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou tentar soltar ventosidades intestinais). [...] É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse um porrete: segure-as sempre com os dedos. ### Conduta A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que na Idade Média. Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes. Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente. Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade. Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36 [...] A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém, mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência física. Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais, evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas. Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o modelo de comportamento. [...] 8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere. Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções, o patamar, que se alarga, da aversão. [...] o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes. [...] Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca, lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma, como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.] ### Dinâmica A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”. As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro do que na primeira versão. [...] Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas, através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são ouvidas em conjunto. Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento. De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso. Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho, que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender os refinamentos da polidez.” Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo dos fechados círculos da aristocracia de corte. Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social: O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar, o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.