[[!meta title="A Cidade Perversa"]] * Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs. * Marquês de Sade versus Sady Baby? ## Trechos ### Zanga 58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor (tipo de jogo no qual os jogadores mostram alternadamente uma carta na mesa, e aquele que jogou a carta mais forte, segundo as regras do jogo, se apodera de tudo, abrindo e fechando as cartas). Foi muito jogado na França no século XVII e no início do século XVIII, e continua em uso com regras muito semelhantes com o nome de tresillo na Espanha, hombre [como na França] na Dinamarca e tridge na Inglaterra. ### Misc 103 A leitura de Mandeville permite entender o que muitos estudos econômicos não conseguem explicar. Não teria sido possível o desenvolvimento do capitalismo sem a liberação das paixões. Aí é que se encontra, em minha opinião, a resposta a essa pergunta, até hoje sem resposta, concludente e constantemente reiterada desde Marx. Por que exatamente o capitalismo, tendo amadurecido desde a Idade Média, finalmente nasceu na Europa por volta de 1700, nas Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na Inglaterra? Por que, se em tantos lugares existiam poderosos mercados tradicionais, nenhum se transformou em mercado liberal capitalista? Por que essa transformação ocorreu na Europa por volta de 1700, e não nos séculos de ouro do Império Romano, sob a dinastia dos Antoninos, tanto mais que a primeira máquina a vapor, a eolípila, acabava de ser inventada por Héron de Alexandria? Ou ainda na China, por exemplo, no apogeu da dinastia Qing, nos séculos XVII e XVIII? Ou ainda no apogeu do Império Otomano, no século XVI, por exemplo, sob Solimão, o Magnífico? Ou ainda na Índia, na época da dinastia Maurya, no século IV antes de Jesus Cristo, durante a qual foi escrito o primeiro tratado de economia política, intitulado Arthaçastra — Instrução sobre a prosperidade material? E ainda poderíamos mencionar muitos outros lugares. A única resposta possível parece-me a seguinte: as condições materiais identificadas por Marx provavelmente estavam reunidas nesses diferentes lugares (acumulação primitiva, tendo por um lado uma mão de obra desenraizada e, por outro, fluxos de dinheiro), mas a condição moral, ou antes, amoral, não estava. Quero dizer que nesses lugares as paixões eram contidas em sistemas simbólicos poderosos, ao passo que aqui foram liberadas. Essa liberação das paixões ao longo dos séculos XVII e XVIII é que permitiu a entrada no capitalismo. 104 Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas morais. E, de fato, ele o era — ao mesmo tempo trazendo consigo formas absolutamente inéditas de alienação. [...] Mas, sobretudo, a colmeia é uma ilustração perfeita do gênio do Criador da natureza, que consegue construir uma organização extremamente complexa, implicando a divisão do trabalho entre os homens, a partir de uma única causa muito simples: o amor próprio (chamado de self-liking por Mandeville). Utilizando da melhor maneira possível este simples e mesmo estúpido amor próprio, gerando todas as libidos possíveis, podemos chegar, sem precisar intervir com leis jurídicas ou regras morais, a uma metáfora “admirável”, tão perfeita quanto a da colmeia. Existe aí uma espécie de astúcia do Criador, que utiliza os defeitos dos homens para criar, apesar deles próprios, uma ordem perfeita que os transcende. É pura e simplesmente o projeto cibernético, tal como viria a ser desenvolvido por Norbert Wiener, que já está contido na ideia de colmeia, já que ela é organizada de acordo com um programa perfeito de grande complexidade, que resulta de subprogramas muito simples (comportando apenas algumas instruções) seguidos por cada um dos habitantes.101 [...] O que me parece analisar mais radicalmente a colmeia mandevilliana, no que ela tem de extremamente inquietante para a liberdade humana, com esses homens incapazes de sair de uma total alienação aos seus vícios, é o castelo sadeano, que também se organiza a partir de uma exploração sistemática de todas as paixões imagináveis e mesmo inimagináveis. [...] 145 Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter visto que toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional. Se Marx tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação desses monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda paixão, exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente nociva entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na economia libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum freudo-marxista, nem mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de resolver. Se Marx tivesse lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral das paixões. O mundo poderia ter sido reformado de outra maneira. Teríamos evitado a captação e o desvio dos espíritos resistentes à teodiceia smithiana nas falsas alternativas ao capitalismo representadas pelas economias socialistas, que só poderiam levar ao mais lamentável dos fiascos. Ao passo que, para Kant, era absolutamente necessário regular — a moral deve ser baseada no imperativo categórico consistindo em se impor a si mesmo uma lei na vida prática —, para Smith cabia, sobretudo, deixar fazer [laisser faire], vale dizer, desregular — o que conduz logicamente a Sade. [...] Postulada essa distinção entre os dois Iluminismos, fica mais fácil indicar o que distingue a modernidade da pós-modernidade. A modernidade é o equilíbrio instável entre essas duas correntes opostas. Terá durado um século e meio. A pós-modernidade é o recuo cada vez mais acentuado da zona transcendental que remete ao que “não tem preço, mas uma dignidade” (Kant), em proveito do princípio liberal, segundo o qual tudo tem um preço (Smith). Com efeito, podemos conceber Sade como aquele que, no fim do século, se apropriou dessas teses liberais, por sinal de maneira extremamente sadeana, levando-as a suas últimas consequências e mostrando, de uma forma que tendo a considerar irretocável, aonde conduz, do ponto de vista do ser-si-mesmo e do ser-junto, a sua escolha, constantemente reiterada ao longo de seus textos, da moral egoísta contra a moral altruísta. Fazer de Sade um homem-chave do seu século, o século XVIII, é, portanto, afastar-se das interpretações tão frequentes quanto anacrônicas que pretendem considerá-lo arauto perfeito dos sistemas fascistas. Basta pensar, por exemplo, na posição assumida por um autor tão estimável quanto Pasolini no filme intitulado Salò ou Os cento e vinte dias de Sodoma, lançado no fim de 1975. É provável que Pasolini, irritado com as visões, cada vez mais frequentes depois de 1968, de um Sade simpático, bon vivant, alvo de perseguições dos obscurantistas de sua época, tenha pretendido reagir a esse absoluto contrassenso. Com isso, situou a ação de Os cento e vinte dias… em Salò, a cidade do norte da Itália onde Mussolini se refugiara no fim da Segunda Guerra Mundial para fundar uma república fascista. Como sabemos, foi o último filme de Pasolini: ele seria assassinado após o lançamento. A morte trágica de Pasolini nos faz pensar. Não podemos, com efeito, passar por cima de uma questão pungente: será que as circunstâncias de sua morte… não desmentiriam sua tese? Pois ele foi morto, de maneira extremamente sadeana, não por fascistas, mas por jovens extremamente liberados, tão liberados que não tinham controle de suas paixões e pulsões, já que, pelo que sabemos, foi um jovem prostituto romano de dezessete anos, um dos que eram frequentados por Pasolini, que o matou a cacetadas no dia 1º de novembro de 1975, para em seguida esmagá-lo várias vezes com seu próprio carro na praia de Ostia, perto de Roma. [...] Situar Sade dessa maneira permite adiantar que o liberalismo tem duas faces: uma face puritana, representada pelo “primeiro filho” de Mandeville, vale dizer, Adam Smith, e uma face perversa, indissociavelmente ligada, representada pelo “segundo filho” de Mandeville, Sade. Em outras palavras, devemos entender o liberalismo como um sistema bifronte, à Janus, vale dizer, como um conjunto perverso-puritano. O que poderia ser dito assim: o liberalismo é Smith com Sade. 153 A tese que defendo, portanto, é a seguinte: Sade diz a verdade do liberalismo e por esse motivo é que foi necessário aprisioná-lo durante toda a vida e atirá-lo no inferno após a morte, enquanto o conto da harmonização dos interesses privados pela mão invisível, prometido pela teodiceia puritana de Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e escondido por alguns eruditos durante dois séculos.