[[!meta title="Entre o cristal e a fumaça"]] ## Geral * Gráfico de Bourgeois, pág. 58. * Delírio, aprendizagem, memória e novidade, 124. * Metafísica, 146. * Limites da teoria de Shannon para explicar a hipercomplexidade: ausência de significado, 171. * Cérebro volumoso, juvenilização, aprendizagem, individuação, 172. * Erros fecundos, erros fatais em Morin, diversificação, juventude, velhice, 180. ## Natural ou artificial Em particular, será um sistema humano - social, por exemplo - natural ou artificial? Pelo fato de ser fabricado por seres humanos, ele parece ser uma organização artificial, como todas as que resultam de planos e programas saídos de cérebros humanos. Nessa medida, a lógica dos sistemas naturais bem poderia afigurar-se inadequada, ou até deslo- cada e perigosa. Entretanto, pelo fato de uma organização social ser também o resultado da composição de efeitos de um grande número de indivíduos, trata-se igualmente, sob certos aspectos, de um sistema auto- organizador natural. Nele, forçosamente, o papel dos planos e programas é relativamente limitado pelo papel das finalidades e desejos dos indiví- duos e dos grupos. Mesmo nas sociedades totalitárias, a questão da origem da autoridade planificadora remete às motivações individuais que fazem com que a aceitemos ou nos adaptemos a ela. Essas motivações, conscien- tes e inconscientes, apesar de humanas, não provêm do cérebro de um engenheiro superdotado. O que equivale a dizer que, numa grande medida, também elas se oferecem a nossa observação sob a forma de sistemas naturais imperfeitamente conhecidos, constituídos por suas interações. -- 10 ## Finalismo: teleonomia versus teleologia Na verdade, quer o admitamos ou não, há um finalismo implícito na maioria dos discursos biológicos. Ofa, essa situação é incômoda, do ponto de vista do método científico, por negar o princípio · de causalidade, segundo o qual as causas de um fenômeno devem ser descobertas antes, e não depois de sua ocorrência. Sendo esse princípio um fundamento do método científico, a impossibilidade de prescindir do finalismo na biolo- gia era uma deficiência dessa ciência que J. Monod analisou brilhante- mente na primeira parte de seu livro. [...] Resumida em termos muito sucintos, sua tese é a seguinte: um processo teleonômico não funciona em virtude das causas finais, apesar de ter essa aparência e embora pareça orientado para a realização de formas que só se evidenciarão no final do processo. O que o determina, de fato, não são essas formas como causas finais, e sim a realização' de um programa, como numa máquina programada cujo funcionamento parece orientado para a realização de um estado futuro, quando, na verdade, é cau.s almente determinado pela seqüência de estados pela qual o programa preestabelecido a faz passar. O programa em si, contido no genoma característico da espécie, é o resultado da longa -- 18 ## Origem da vida O problema da origem da vida, hoje em dia, é o do aparecimento do primeiro programa. De fato, a admitirmos a metáfora da programação genética contida nos ADNs - e veremos, mais adiante, que ela não está a salvo de sérias críticas - , o programa do desenvolvimento de Um indivíduo lhe é fornecido no nascimento, por ocasião da fecundação do óvulo, a partir da replicação dos ADNs de seus pais. Assim, coloca-se a questão da origem do primeiro programa, isto é, do primeiro ADN capaz de se reproduzir e de codificar a síntese das enzimas. Ante essa questão, várias linhas de resposta são possíveis. Uma delas extrapola a reprodução laboratorial de condições físico-químicas que, supostamente, teriam sido as da atmosfera primitiva e da •·sopa•• primitiva. Ela se baseia nos resultados de experiências que demonstraram a possibilidade, nessas condições, de sínteses de aminoácidos e de nucleo- tídios, tijolos iniciais indispensáveis à fabricação do já complicadíssimo edifício desse primeiro programa. Evidentemente, devemos sublinhar o caráter hipotético dessas teorias, às quais J. Monod, por sua vez, não pareceu dar muita importância. Para ele, a questão da origem da vida e do primeiro programa era uma questão não-científica, pois concernia à ocor- rência de um evento de baixíssima probabilidade, mas que mesmo assim ocorreu, e de uma vez só. Para ele, já que nada além de encontros moleculares ao acaso poderia explicar a constituição do primeiro organis- mo vivo, e já que esta, em tais circunstâncias, só poderia ser imaginada com uma probabilidade praticamente nula, a questão de sua ocorrência não mais podia ser colocada em termos de probabilidade, a posteriori, agora que sabemos que isso aconteceu. Tratar-se-ia, portanto, tipicamente de um evçnto único, não-reprodutível, e que escaparia por definição ao campo de aplicação da pesquisa científica. Outros, ao contrário, como A. Katzir-Katchalsky, 10 M. Eigen 11 e 1. Prigogine, 12 não desistiram e partiram em busca de leis de organização - físico-químicas, é claro - que permitissem compreender, desta vez, não apenas que o primeiro programa não tivera uma probabilidade quase nula, mas que, ao contrário, sua ocorrência fora obrigatória e inelutável. Dentro dessa perspectiva, a origem da vida não teria sido um evento único de baixíssima probabilidade, mas um evento que se reproduziria todas as ve- zes que as condições físico-químicas da terra primitiva se materializassem. A eventual descoberta de formas de vida em outros planetas seria, eviden- temente, um argumento a favor dessa segunda linha de pensamento. -- 21 ## Ordem dos documentos É conhecida a história da escrivaninha e das prateleiras entulhadas de livros e documentos.• Estes, aparentemente, acham-se empilhados de qualquer maneira. No. entanto, seu dono sabe perfeitamente encontrar, se for preciso, o documento que procura. Ao contrário, quando, por infelid- dade, alguém ousa pôr ordem neles .. , é possível que o dono se tome incapaz de encontrar o que quer que seja. É evidente, neste caso, que a aparente desordem era uma ordem, e vice-versa. Aqui, trata-se de docu- mentos em sua relação com seu usuário. A desordem aparente oculta uma ordem determinada pelo conhecimento individual de cada um dos docu- mentos e de sua possível significação utilitária. Mas, em que aspecto essa ordem tem a aparência de desordem? É que, para o segundo observador, aquele que quer ºpôr em ordem .. , os documentos já não têm, individual- mente, a mesma significação. Em casos extremos, não têm significação alguma, a não ser a que se liga a sua forma geométrica e ao lugar que eles podem ocupar na escrivaninha e nas prateleiras, de maneira a que coinci- dam, em seu conjunto, com uma certa idéia a priori, com um padrão consiederado globalmente ordenado. Vemos, portanto, que a oposição entre ordem e aparência de ordem provém de os doc-umentos serem considerados, quer individualmente, com . sua significação, quer global- mente~ com uma significação individual diferente (determinada, por exemplo, por seu tamanho ou sua cor, ou por qualquer outro princípio de alinhamento importado de fora e sem a opinião de seu usuário), quer ainda sem significação alguma. -- 27 ## Confiabilidade dos organismos Daí todo um campo de pesquisas, inaugurado por von Neumann [4] e seguido por muitos outros, especialmente Winograd e Cowan [3, 6], com a finalidade de descobrir princípios de construção de autômatos cuja confiabilidade fosse maior que a de seus componentes! Essas pesquisas resultaram na definição de condições necessárias (e suficientes) para a realização desses autômatos. A maioria dessas condi- ções (redundância dos componentes, redundância das funções, complexi- dade dos componentes, deslocalização das funções) [6, 7] resultou numa espécie de compromisso entre determinismo e indeterminismo na cons- trução dos autômatos, como se uma certa quantidade de indeterminação fosse necessária, a partir de certo grau de complexidade, para pennitir ao sistema adaptar-se a um certo nível de ruído. Isso, evidentemente, não tleixa de lembrar um resultado análogo obtido na teoria dos jogos pelo mesmo Neumann [8]. [...] Quando um sistema se fixa num estado particular, ele fica inadaptável, e esse estado final pode ser igualmente ruim. Ele será incapaz de se ajustar a alguma coisa que constitua uma situação inadequada" [9]. -- 38 ## Ordem pelo ruído Isso é apenas uma conseqüência de que, na ausência de erros de replicação, nenhuma novidade pode aparecer. -- 49 Assim, ao menos em princípio, vemos como uma produção de informação sob o efeito de fatores aleatórios nada tem de misterioso: ela não passa da co.nseqüência de produções de erros num sistema repetitivo, constituído de maneira a não se: destruído quase que de imediato por um número relativamente pequeno de erros. Na verdade, no que concerne à evolução das espécies, nenhum mecanismo é concebível, à parte os que foram sugeridos por determinadas teorias, nas quais eventos aleatórios (mutações ao acaso) são responsáveis por uma evolução orientada para uma complexidade e uma riqueza ma-io- res da organização. No que concerne ao desenvolvimento e à maturação dos indivíduos, é muito possível que esses mecanismos também desem- penhem um papel nada desprezível, especialmente se incluirmos aí os fenômenos de aprendizagem adaptativa não dirigida, na qual o indivíduo se adapta a uma situação radicalmente nova, em que é difícil recorrer a um programa preestabelecido. De qualquer modo, essa noção de programa preestabelecido, aplicada aos organismos, é muito discutível, na medida em que se trata de programas de ••origem interna .. , fabricados pelos próprios organismos e modificados no curso de seu desenvolvimento. Na medida em que o genoma é fornecido de fora (pelos pais), é freqüente ele ser assemelhado a um programa de computador, mas essa semelhança nos parece inteiramente abusiva. Se há uma metáfora cibernética apta a ser utilizada para descrever o papel do genoma, a da memória nos parece muito mais adequada que a do programa, pois esta última implica todos os mecanismos de regulação que não se acham presentes no próprio genoma. Sem isso, não evitamos o paradoxo do programa que precisa dos produtos de sua execução para ser lido e executado. Ao contrário, as teorias da auto-organização permitem compreender a natureza lógica de sistemas onde o que desempenha a função do programa se modifica sem parar, de maneira não preestabelecida, sob o efeito de fatores .. aleató- rios" do ambiente, produtores de .. erros" no sistema. Mas, que são esses erros? Segundo o que acabamos de ver, até por causa de seus efeitos positivos, eles já não parecem ser erros em absoluto. O ruído provocado no sistema pelos fatores aleatórios do ambiente já não seria um verdadeiro ruído, a partir do momento em que fosse utilizado pelo sistema como fator de organização. Isso significaria que os fatores do ambiente não são aleatórios. Mas eles são. Ou, mais exatamente, depende da reação posterior do sistema em relação a eles o fato de, a posteriori, esses · fatores serem reconhecidos como aleatórios ou como parte de uma organização. A priori, eles são efetivamente aleatórios, se definirmos o acaso como a intersecção de duas cadeias de causalidade independentes: as causas de sua ocorrência nada têm a ver com o enca- deamento dos fenômenos que constituiu a história anterior do sistema até então. É nesse sentido que sua ocorrência e seu encontro com essa história constituem ruído, do ponto de vista das trocas de informação no sistema, e só são passíveis de produzir erros nele. Mas, a partir do momento em que o sistema é capaz de reagir a esses erros, de modo não apenas a não desaparecer, mas também a modificar a si mesmo num sentido que lhe seja benéfico, ou que, no mínimo, preserve sua sobrevivência posterior; em outras palavras, a partir do momento em que o sistema é capaz de integrar esses erros em sua própria organização, .eles então perdem um pouco, a posteriori, seu caráter de erros. Preservam-no apenas de um ponto de vista externo ao sistema; no sentido de que., como efeitos do ambiente sobre este, eles mesmos não correspondem a nenhum programa preestabelecido, contido no ambiente e destinado a organizar ou desorga- nizar o sistema. 11 Ao contrário, de um ponto de vista interno, na medida em que a organização consiste precisamente numa seqüência de desorga- nizações resgatadas, eles só aparecem como erros no instante exato de sua ocorrência e em relação a uma manutenção, que seria tão nefasta quanto imaginária, de um statu quo do sistema organizado, que imaginamos tão logo uma descrição estática dele nos possa ser dada. Caso contrário, e depois desse instante, eles são integrados e recuperados como fatores de organização. Os efeitos do ruído tomam-se, então, eventos da história do sistema e de seu processo de organização. Contudo, permanecem como efeitos de um ruído, visto que sua ocorrência era imprevisível. -- 50-51 ## Ruído organizacional Uma das questões mais difíceis a propósito desse problema capital das organizações hierárquicas, que encontramos por toda parte na ·biolo- gia, é a seguinte: como passamos de um nível para outro, ou, mais precisamente, quais são as determinações causais que dirigem a passagem de um nível de integração para outro? Num sistema dinâmico, descrito por um sistema de equações dife- renciais, às funções (soluções do sistema) caracterizam o nível em que estamos interessados; as condições limites caracterizam o nível superior. Compreendemos perfeitamente como as condições limites, que impõem as constantes de integração, determinam as funções de soluções do siste- ma. Mas, inversamente, como podem as funções influenciar as condições limites? Em outras palavras, como pode um nível inferior - menos integrado - , na matemática, influenciar o nível superior? Como repre- sentar o efeito do nível molecular sobre as células, o das células nos órgãos e o dos órgãos no organismo, embora esse seja o pão de cada dia da observação biológica? -- 60 Isso significa que a introdução da posição do observador não cons- titui apenas uma etapa lógica do raciocínio: esse observador, externo ao sistema, é, de fato, num sistema hierarquizado, o nível de organização superior (englobante), comparado aos sistemas-elementos que o consti-_ tuem; é o órgão em relação à célula, o organismo em relação ao órgão etc. É em relação a ele que os efeitos do ruído sobre uma via no interior do sistema, em certas condições, podem ser positivos. -- 61 ## Auto-organização e individuação A teoria da auto-organização fornece um princípio geral de diferenciação pela destruição, eventualmen- te aleatória, de uma redundância que caracteriza o estado inicial de indiferenciação. Assim, a quantidade de informação contida num eventual programa genético pode ser consideravelmente reduzida em comparação com a que seria necessária no caso de uma determinação rigorosa dos detalhes da diferenciação. Isso parece particularmente pertinente no que concerne ao desenvolvimento do sistema nervoso, onde uma parcela de aleatoriedade permite uma considerável economia de informação genéti- ca I 5 que, de outra maneira, seria insuficiente, caso tivesse que especificar em todos os seus detalhes um sistema constituído de mais de dez bilhões de neurônios interligados. Também aí podemos observar, pelo menos em alguns casos, conexões inicialmente redundantes, que se especificam no curso do desenvolvimento, perdendo essa redundância. 16 [...] Esses processos são empregados não apenas nos "reconhecimentos de formas" que caracterizam nosso sistema cognitivo, mas também na constituição e no funcionamento do sistema imunológico, verdadeira máquina de aprendizagem e de integração do novo, desta vez no nível de formas celulares e moleculares. De fato, o sistema imunológico realiza uma rede celular em que as células - os linfócitos - são ligadas, entre si e com os antígenos que constituem seus estímulos externos, por meca- nismos de reconhecimento molecular ao nível de suas membranas. Tam- bém aí estamos diante de um sistema de aprendizagem não-dirigida cujo desenvolvimento é condicionado pela história dos contatos com diferen- tes andgenos, uma história, evidentemente, pelo menos em parte, não-pro- gramada e aleatória. Ora, o reconhecimento dos antígenos pelos linfócitos é o resultado, no nível molecular e celular, de uma seleção de linfócitos preexistentes, com suas estruturas membranosas adequadas, cuja multi- plicação é desencadeada pelo contato com determinado antígeno (seleção clonai). Por isso, a possibilidade de uma variedade praticamente infinita e imprevisível de reações imunológicas, a partir de um número finito de linfócitos determinados, implica a cooperação de diversos níveis diferen- tes de reconhecimento. Uma combinação de células diferentes, pertencen- tes a níveis diferentes, multiplica consideravelmente a variedade das respostas possíveis (Jerne 18) . Por fim, também nesse caso, uma redundân- cia inicial nessa cooperação - transmissão de informações entre diferen- tes níveis da rede celular que constitui o sistema imunológico - talvez permita explicar o desenvolvimento com aumento da diversidade e da especificidade. 19 Este, no final das contas, leva à constituição da indivi- dualidade molecular de cada organismo, que, no homem, sabemos ser praticamente absoluta. Na verdade, ela é condicionada pelos encontros parcialmente aleatórios com estruturas moleculares e celulares trazidas por um ambiente sempre renovado, pelo menos em parte. -- 62-63 ### Ruído e significação Como vimos anteriormente a propósito da história da escrivaninha desar- rumada, a idéia do sentido e da significação está sempre presente na noção de ordem, bem como na de informação. Contudo, vimos também que a teoria de Shannon só permitiu quantificar a informação ao preço da colocação de sua significação entre parênteses. O princípio da ordem a partir do ruído, em suas sucessivas formulações quantitativas (H. von Foerster, 1960; H. Atlan, 1968, 1972, 1975 2 º), utilizou igualmente a teoria de Shannon, da qual estão ausentes as preocupações com a significação. Na verdade, o problema do sentido e da significação. continua presente, muito embora o suponhamos eliminado. Está presente, é claro, nas noções de codificação e decodificação. Mas também está presente, de maneira implícita-negativa e como uma espécie de sombra, em todas as utilizações das noções de quantidade de informação ou de entropia para avaliar o estado de complexidade, de ordem ou desordem de um sistema. Finalmen- te, veremos que o princípio de ordem a partir do ruído, apesar de expresso num formalismo puramente probabilístico do qual o sentido se acha ausente, repousa implicitamente na existência da significação, e até de diversas significações da informação. Em outras palavras, trata-se de uma possível via .de abordagem para a solução do último dos problemas que a teoria de Shannon negligenciou: o da significação da informação. 2 1 Para isso, é conveniente apreendermos, logo de saída, a inversão que efetuamos em relação à formulação inicial de von Foetster, quando exprimimos o princípio da ordem através do ruído como um aumento da variedade, da informação de Shannon e da complexidade, ligado a uma diminuição da redundância. -- 63-64 ### Complexidade Em outras palavras, complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código não conhecemos. -- 67 É pelo fato de a informação ser medida (por nós) por uma fórmula da qual o sentido está ausente, que seu oposto, o ruído, pode ser gerador de informação. Isso nos permite continuar a exprimi-lo pela mesma função H, embora sua significação seja diferente, por ser recebida em dois ·níveis diferentes de organização. A informação, num nível elementar, tem um sentido que desprezamos quando a medimos pelas fórmulas de Shan- non, mas que se traduz por seus efeitos em seu destinatário, a saber a estrutura e as funções desse nível, tal como as percebemos. -- 74-75 ### Delírio Qualquer hipótese científica realmente nova é, de fato, da ordem do delírio, do ponto de vista de seu conteúdo, por se tratar de uma projéção do imaginário no real. É tão-somente por aceitar, a priori, a possibilidade de ser transformada ou mesmo abandonada, sob o efeito de confrontações com novas observações e experiências, qu~ ela fmalmente se separa disso. Em particular, poqemos compreender como a própria interpretação psica- nalítica pode desempenhar o papel de um delírio organizado, ou, ao contrário, o de uma criação libertária, conforme seja vivida de maneira fechada, como o modelo central - o padrão imutável-, o pólo organi- zador, ou de maneira aberta, como uma etapa fugaz no processo auto-or- ganizador. Entretanto, seja qual for o caso, o conteúdo da interpretação consiste sempre no que costumamos chamar "uma projeção do imaginá- rio no real". [...] Dentro dessa pers- pectiva, podemos compreender que esse desvelamento do delírio no Homo sapiens, latente, por ser inconsciente em seus predecessores, tenha sido concomitante a'o desenvolvimento da linguagem simbólica, na medi- da em que este implicou e permitiu, justamente, um considerável aumento das capacidades de memória, em comparação com as que lhe eram preexistentes. -- 124-125 ### Humanismo Num artigo publicado há alguns anos, A. David constatou que cada um dos progressos da cibernética fazia o homem desaparecer um pouco mais [6]. Mas um último sobressalto de humanismo o fez localizar em nós o derradeiro recôndito de onde seria impossível desalojar o homem: seria o desejo (nosso programa, em outras palavras?). Mediante isso, ele nos sugeriu uma descrição futurista de homens telegrafados no espaço sob a forma de "programas puros ... Mas, que acontece com isso quando se constata que, nos sistemas cibernéticos auto-organizadores dotados da complexidade dos organismos vivos, o programa não pode ser localizado, porque se reconstitui sem parar? Pois bem, isso significa que o homem é finalmente desalojado até mesmo daí, e que para nós é melhor que seja assim, porque, dessa maneira, a unidade e a autonomia de nossa pessoa, na medida em que se produzirem, não mais poderão ser telegrafadas no espaço, separadas do resto, que a superfície que limita um volume e define sua unidade não pode ser separada desse volume. Alguns programas de organizações talvez possam ser telegrafados: os sistemas assim realizados talvez possam assemelhar-se a nós e dialogar conosco. Não há nada de inquietante nisso, 9 muito pelo contrário, porque eles não serão nós; como tampouco o são as máquinas, inclusive as mais poderosas, que nos prolongam. [6. A. David, "Nouvelles définitions de l'humanisme", in Wiener e Schadc, (orgs.), Progress in Biocybernetics, Nova York, Elsevier Publications Co., 1966.] -- 122 ### Tempo e irreversibilidade Mas existe um outro tipo de situação, muito diferente, que aparece ao observarmos fenômenos naturais - não artificialmente criados por outro seres humanos -, e quando estes nos parecem orientados de tal maneira que as coisas acontecem como se fossem determinadas por um projeto, ou seja, também por uma vontade, um desejo ou uma intenção. Naturalmente, esse tipo de situação é encontrado, em especial, quando observamos os sistemas biológicos em todos os seus níveis de organiza- ção, exceto, talvez, ;io nível molecular. Isso explica que a biologia tenha freqüentemente dado margem a toda sorte de especulações místicas ou religiosas, e nem sempre no melhor sentido: se observamos fenômenos em que as coisas se produzem de maneira aparentemente finalista, como se resultassem de uma vontade (mesmo que não haja ninguém para nos dar informações sobre essa vontade), torna-se tentador, é claro, assimilar a existência dessa suposta vontade à vontade de Deus ou do Criador. O que vimos até o momento nos mostra em que sentido essa hipótese não é necessária, pois começamos a compreender como a matéria pode ser um locus de fenômenos de àuto-organização: em razão de diversos tipos de interações entre a ordem e o acaso, amostras de matéria podem evoluir de tal maneira que, aos olhos do observador externo, parecem determinadas por seu futuro, embora, na verdade, isso não aconteça. A verdade é que, nessas situações - e embora não sejamos obriga- dos a presumir a existência de uma vontade consciente -, estamos lidando com uma inversão local do tempo, na medida em que se produz uma diminuição local da entropia. Essa inversão não resulta, é claro, de uma vontade humana que dite sua orientação, e as vontades humanas são as únicas que conhecemos, porque a vontade de Deus é apenas uma abstração da vontade humana. -- 143 A biologia físico-química nos indica - sem por isso nos dar nenhuma receita, é claro - como tudo isso é teoricamente possível, pek· menos em princípio, e como funciona nos sistemas biológicos em desen - volvimento. Exatamente, embora de maneira abstrata, isso pode se resu- mir assim: a habitual direção irreversível do tempo se inverte nos proces- sos em que a entropia de um sistema aberto decresce e em que a informação e a organização são criadas através da utilização de interações aleatórias do sistema com seu ambiente. Isso é apenas uma conseqüência direta do fato de que o habitual caráter irreversível do tempo, na física, é - determinado pela lei do aumento da entropia. De fato, daí decorre que, quando se pode produzir uma diminuição da entropia em algum lugar, é como se a direção do tempo, localmente, fosse invertida nesse ponto; o que equivale a dizer que a passagem do tempo, de destrutiva, toma-se criadora. -- 149 ### Novas ciência e epistemologia Assim, a ciência do homem, visando a uma ciência do político, desembocaria inevitavelmente numa ciência do homem conhecedor e sábio, e portanto, numa ciência sobre a ciência, numa nova epistemologia, e portanto, num novo paradigma, numa nova prática científica. A reforma da ciência aqui conclamada implica uma superação da atitude operacional que se impôs e continua a se impor cada vez mais na prática científica: o objetivo da ciência já não é compreender - pois, afinal, que é compreender, se só nos colocamos problemas que podemos resolver e eliminamos todas as questões consideradas "não-científicas"? - , e sim resolver problemas de laboratório graças aos quais se molda um novo universo técnico e lógico, que tendemos a considerar -- em virtude de sua eficácia operacional - coincidente com a realidade física inteira. O fato de isso não acontecer, de esse universo ser cada vez mais artificial - para ser repetitivo e reproduzível, para que a antiga ciência possa aplicar-se a ele eficazmente-, constitui, evidentemente, a razão do abismo que reconhecemos, sempre com um certo espanto ingênuo, entre as ciências laboratoriais e a ciência do real vivido . Há nisso uma maquinação da epistemologia ocidental, que H. Marcuse, ao que saibamos, foi o primeiro a denunciar. Julgou-se que, para escapar aos engodos da metafísica, a ciência deveria ser apenas operacional, e eis que nos encerramos no universo alienante e unidimensional do operacional sem negatividade, onde o estrangeiro e o estranho são simplesmente rechaçados, afastados, quando não podem ser recuperados. -- 181-182