From b6c0ffcaf707ee1968a7f29021d20357692a84d0 Mon Sep 17 00:00:00 2001 From: Silvio Rhatto Date: Tue, 7 Aug 2018 10:05:58 -0300 Subject: Reorganization --- books/sociology/processo-civilizador.md | 2400 +++++++++++++++++++++++++++++++ 1 file changed, 2400 insertions(+) create mode 100644 books/sociology/processo-civilizador.md (limited to 'books/sociology/processo-civilizador.md') diff --git a/books/sociology/processo-civilizador.md b/books/sociology/processo-civilizador.md new file mode 100644 index 0000000..a82b834 --- /dev/null +++ b/books/sociology/processo-civilizador.md @@ -0,0 +1,2400 @@ +[[!meta title="O Processo civilizador - Volume 1"]] + +## Índice + +* Processo civiliza-DOR. +* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução. +* Controle social, "restrições ao jogo de emoções". +* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação. +* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc. +* [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg) + (Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg)) + e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/). +* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta, + conceito explanado por Gilbert Ryle em seu livro The Concept of Mind (1949)). + +## Excertos + +### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro + + Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi + muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a + “civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro), + prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que + tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana — + nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este + lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a + Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem + como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim + deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche. + + Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste + em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou + mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é + um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um + processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal + interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele + constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o + passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna + como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que + prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto + pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor. + Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou + esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo + lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.* + + É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se + civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em + mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai + pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à + luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas, + sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da + cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria + civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade. + + Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que + a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão + do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse, + Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à + ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento + das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir, + e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora. + + [...] + + Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao + contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um + “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora + seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado + à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de + nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida + melhor, ou uma cura. + + [...] + + O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe + um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que + fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na + escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma + medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os + historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a + medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou + “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa + a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade + que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível, + menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu + ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um + caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por + mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos, + vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval. + +### Notas + +Do Capítulo I: + + Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as + culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem, + decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas, + crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem, + como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta + de Newton.” + +### Kultur e Zivilization + + O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível + da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos + científicos, às ideias religiosas e aos costumes. + + [...] + + Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato + útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo + apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. + A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra + expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é + Kultur. + + [...] + + O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e + superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a + autoimagem do estrato intelectual de classe média. + +### Vanguarda + + Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII + não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua + manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para + sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão. + Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que + descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na + mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país, + pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente + membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período + maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite + em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia + cortesã. + + Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os + ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação + solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No + Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada + geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca. + + [...] + + E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde, + andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social. + Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres + murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde, + um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao + ver um burguês entre seus membros. + + “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo + aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim + de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto + que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes + guardadores de porcos.” + + Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas + formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em + livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste + referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma + situação social muito específica. + + No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre + as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de + dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão + bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe, + quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente + como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência + de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer + fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes + médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia + pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que + a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque. + + Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora + ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela + cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se + conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de + título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt. + + O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu + avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais + semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração + de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich + August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento. + + [...] + + De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as + paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior + aristocrática na Alemanha. + + [...] + + A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores, + é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII. + A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período. + Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que + flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na + erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe + oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a + ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da + sociedade onde se integram, são interesses marginais. + O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos + e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma + política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima + a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que + fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da + política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein + Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião, + arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung) + do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade. + + [...] + + Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual + alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe + com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas + com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo, + descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20 + anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio + de 1827): + + Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da + Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto + porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos + chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo + país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em + Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que + é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que + isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e + fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse + viajado um ano inteiro em meu caminho solitário. + + Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o + reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e + rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor + de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode + ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se + transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não + pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX, + onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot, + essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de + todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se + desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa + no seu 24o ano de vida. + + [...] + + Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além + disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais + importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que + essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um + ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe + média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento. + +### Civilização como máquina automática em constante reforma + + No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância + de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo. + Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a + indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no + despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a + decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um + ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela + parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico, + em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a + concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo + inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política + reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de + capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de + uma maneira mais esclarecida e racional do que até então. + + [...] + + A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a + todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A + verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa + civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do + governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa + florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa + de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação + do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”, + que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das + crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma + permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado + de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou + conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente, + desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo + governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica. + + [...] + + Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um + conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da + Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des + Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem + uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor + variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30 + + No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra + civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com + frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no + caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a + civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes + estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana + não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se + completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do + conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de + nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa + moral.”32 + + O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente + crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e + da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa + “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se + expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários, + intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do + medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte, + em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a + “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela + nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é, + reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser + designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão + individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela + sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era + encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente. + A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a + civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O + processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda + não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um + lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a + barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara + sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité. + + Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do + movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um + estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto + no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar + ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada + ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de + moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos + complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos + membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário + para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a + Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da + população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas + condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à + burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este + processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação + interna do país pelos reis. + +### Ruderia + + Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham. + + [...] + + A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento + “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro. + Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este + decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante + descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens + excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante. + O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no + braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, + enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano, + preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa + com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o + pé. O mesmo se aplica ao escarro. + + Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a + mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas + de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar + alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por + exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos + dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou + estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas + preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós, + materializações de uma estrutura mental e emocional diferente. + + [...] + + Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de + mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para + nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos + tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes + para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as + quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e + rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras + mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz + Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende + as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente + perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as + mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um + dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa. + + Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam + extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no + casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca + comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer + a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não + é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta: + “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e + demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na + quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em + algum lugar.” + + [...] + + Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens + alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã: + cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são + apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e + crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava + as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas + a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar + da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas + escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em + seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e + molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho + melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o + vinho não lhe serve, procure outras acomodações. + + [...] + + Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões, + tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e + para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum + emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou + tentar soltar ventosidades intestinais). + + [...] + + É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse + um porrete: segure-as sempre com os dedos. + +### Conduta + + A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos + sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo + um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que + na Idade Média. + + Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa + era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares + segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes. + Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre + a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente. + Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de + que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam + sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados + sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro + à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal + da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o + aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o + Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma + direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos + adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo + menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes + origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de + grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade. + + Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e + em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma + hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos + de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova + aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento + uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura + alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma + extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é + neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e + outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em + sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não + bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso + e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e + não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em + conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os + semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As + regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito + ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36 + + [...] + + A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com + frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém, + mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse + momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a + pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se + imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e + relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um + superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para + inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência + física. + + Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de + comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle + social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda + a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de + boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais, + evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos + séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só + conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas. + Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo + de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de + policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o + modelo de comportamento. + + [...] + + 8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo + porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer + — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais + curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única + fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere. + Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento + dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma + série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do + processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções, + o patamar, que se alarga, da aversão. + + [...] + + o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não + como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de + movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes. + + [...] + + Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e + os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as + pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem + cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se + tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo + hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É + errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes + com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se + assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca, + lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o + pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um + dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados + em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por + grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma, + como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em + conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.] + +### Dinâmica + + A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos + poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”. + + As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns + aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa + ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes + discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se + aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande + extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro + do que na primeira versão. + + [...] + + Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo + assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as + tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em + diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de + conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento + ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas, + através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global + clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são + ouvidas em conjunto. + + Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia + de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias + origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento. + + De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de + corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige + principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na + corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso. + + Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a + atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo + particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho, + que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o + autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes + bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que + poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos + têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender + os refinamentos da polidez.” + + Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de + livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é + importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são + escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo + dos fechados círculos da aristocracia de corte. + +Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social: + + O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as + honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar, + o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o + comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se + supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do + interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que + demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte + espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados + e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem + assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação + da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que + estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é + desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, + sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o + movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte + sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do + comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e + acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de + desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o + avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou + como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de + natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades. + +Tecnologia: + + Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta + série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam + notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge + uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na + classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da + civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em + força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na + sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca, + garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes + permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da + tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de + novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e + outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que + observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se. + + O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do + consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca + igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso + refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a + esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o + ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente + rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez. + +Forma da curva: + + Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma: + em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da + sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em + seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo + aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma + conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um + novo padrão de maneiras à mesa. + + Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido, + embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da + conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância + como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha + o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a + base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e + produzem torna-se mais importante que suas maneiras. + +"Delicadeza" e padronização: + + É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a + sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por + várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela, + também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação + extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir + que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo + texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a + sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a + própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão + delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam + mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a + colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas + queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente + na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim. + + Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos + estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa + mudança. + + Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa + está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é + servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo + estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social. + + Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim + dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo + não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e + instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no + emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas + investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais + insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de + comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como + o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão — + como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo + — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização + em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo + na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para + atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a + condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o + desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada + vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos + desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande + lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo + por algumas modificações. + +Transmissão e abrangência da análise: + + A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma + sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense + para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na + França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser + considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos + movimentos individuais. + + [...] + + a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito + simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais + abrangente. + +Fala, jargão a partir de um duplo movimento: + + Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de + movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a + aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é + influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo + para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no + século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de + propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à + régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro + exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima + a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte + gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz + também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para + os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente + assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em + uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos + círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de + la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na + burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente + burgueses”. + + [...] + + Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte + tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas + linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”, + “afetadas demais”. + + [...] + + 10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta + incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de + passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e + incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar + expressões?” + + Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à + primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a + esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os + membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as + usam. + + [...] + + “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que + não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza + que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as + leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.” + + Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem. + Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta. + Os juízos de valor são apodícticos. + + [...] + + Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito + novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo. + Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens + du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são + conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade. + +Motivos ou razões "higiênicas": + + A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte + do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também + evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas + argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que + outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma + expressão linguística é preferível a outra. + + Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX. + Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as + mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais + rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”. + Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses + costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século + XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as + pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações + racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras. + + [...] + + Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na + formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais + e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes + foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na + motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas + para motivar a “fala correta”. + +Tendência ao aumento do embaraço: + + Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de + embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte + e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem + exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta + em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não + aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do + embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica, + os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a + estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se + difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau + de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente + racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais. + Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham + “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com + outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob + pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será + parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos + tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte + esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a + “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de + sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de + uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro + lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica + nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A + estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a + despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta + conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por + uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e + eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a + experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente + inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente, + talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não + esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será + confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que + condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de + comportamento. + +Difusão e cristalização: + + Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a + “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do + comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam + sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras + desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas + estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente + pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a + segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e, + por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela + certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para + classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo, + condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem + possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento, + um avanço no patamar do embaraço. + + O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —, + processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de + mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma + cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza + em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da + cristalização como causa da transformação. + +### Família como unidade de consumo + + O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes + pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais + importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59 + como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em + seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como + fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos, + mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a + família torna-se basicamente uma unidade de consumo. + +### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável + + Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram + suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual + maneira, suprimem essas características em seus alimentos. + + [...] + + A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se, + com raras exceções, ao trincho do animal inteiro. + + O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte + importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser + julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que + o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém, + é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue + ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o + processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este + ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que + ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo + avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a + transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas, + constitui uma típica curva civilizadora. + + Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a + fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais + que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi + efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo + é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente + reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa. + + [...] + + Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que + as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a + suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras, + oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar + de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação + inescapável. + + À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas + configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no + emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As + instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada + vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador + é tão limitado quanto possível. + + Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume + há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há + muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente + incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem + eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao + fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China, + não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de + funcionários públicos eruditos. + +### Pedagogia da proibição + + Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas, + mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de + dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações, + difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais + amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez + sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos + através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente + reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente + alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como + natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses + sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente + de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar + alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é + repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado + com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o + hábito, sem ser induzido por outra pessoa. + + Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à + força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que + um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo + adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas + por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta, + a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o + fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são + moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão + externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado + neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La + Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os + dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros + um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as + mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a + marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de + qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora + inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente + reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole + que opera mesmo contra seus desejos conscientes. + + Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão + do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em + forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar + processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um + paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e + psicogênese. + + [...] + + Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função + de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada + para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é + bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim + de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social, + muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a + renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos + de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente + com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente + aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como + vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a + referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para + condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde + recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos + e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel + importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se + perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo + praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de + racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é, + fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos + adultos. + + [...] + + Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de + natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se + opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais + tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para + compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX + é que aparece uma ligeira relaxação. + +Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de +boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre +os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas +numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas e naturalizadas +geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na +sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos +desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras +épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua: + + Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar + como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito + instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo + a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é + encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais + sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo + que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas — + adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito + delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas + envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que + nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da + Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes + altas. + + Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as + referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”. + Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras + que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao + associativamente as lembre é evitado. + + Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o + processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66 + sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado + antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse + tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é + sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se + adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do + processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são + acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso + mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão + naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram + portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra. + + [...] + + Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se + encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado + acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos + beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os + Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a + interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na + corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso + dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio. + + O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por + elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus + socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa, + compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior, + governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a + principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de + impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se + particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem + socialmente requeridas dos impulsos e das emoções. + +### Segunda natureza + + No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas + próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No + estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não + havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um + hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está + sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas + quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões + sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da + pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto + muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se + torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a + interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada + vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente + inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos + primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de + seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em + um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas. + + [...] + + Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso + não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social + modelada segundo a estrutura social. + +### Polidez: condicionamento, isolamento e segredo; distância entre adultos e crianças + + Nessa sociedade hierarquicamente estruturada, todos os atos praticados na + presença de numerosas pessoas adquiriam valor de prestígio. Por este motivo, o + controle das emoções, aquilo que chamamos “polidez”, revestia uma forma + diferente da que adotou mais tarde, época em que diferenças externas em + categoria haviam sido parcialmente niveladas. O que se menciona aqui é um caso + especial de intercâmbio entre iguais (que uma pessoa não deve servir outra), e + que mais tarde se torna a prática geral. Em sociedade, todos se servem + pessoalmente e todos começam a comer no mesmo momento. + + A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se + uma infração repugnante mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de + categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo + a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se + tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em + qualquer caso. A referência social à vergonha e ao embaraço desaparece cada vez + mais da consciência. Exatamente porque a injunção social de não se mostrar ou + desincumbir-se de funções naturais opera nesse momento no tocante a todos e é + gravada nesta forma na criança, ela parece ao adulto uma injunção de seu + próprio ser interno e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total e + automático. + + 5. Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente + regulação ou moldagens das necessidades instintivas, porém, só se tornaram + possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um + aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema + de eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais + discretos. A situação não foi diferente no tocante às maneiras à mesa. O + processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar + de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e, + decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas + científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases + sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas + + Uma vez posta em movimento a reformulação das necessidades humanas, devido à + transformação generalizada das relações entre os homens, o desenvolvimento de + aparelhagem técnica correspondente ao padrão mudado consolidou os novos hábitos + em um grau extraordinário. Este aparelho contribuiu para a reprodução constante + do padrão e para sua disseminação. + + Não deixa de ser interessante observar que hoje [década de 1930], época em que + este padrão de conduta se consolidou tanto que é aceito como inteiramente + natural, certa relaxação está começando, sobretudo em comparação com o século + XIX, pelo menos no que diz respeito a referências verbais a funções corporais. + [...] Mas isto, tal como os costumes modernos de banho e dança, é possível + apenas porque o nível habitual de autocontrole, técnica e institucionalmente + consolidado, a capacidade do indivíduo de restringir suas necessidades e + comportamento de acordo com os sentimentos mais atuais sobre o que é + desgostoso, foram atingidos. O que se observa é uma relaxação dentro do + contexto de um padrão já firmemente radicado. + + 6. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por + uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das + crianças. Estas têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de + vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva + delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem + específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão + dos séculos. Nisto, os pais são apenas os instrumentos, amiúde inadequados, os + agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros + instrumentos, é sempre a sociedade como um todo, o conjunto de seres humanos, + que exerce pressão sobre a nova geração, levando-a mais perfeitamente, ou + menos, para seus fins. + + [...] + + O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior + do que o imposto às crianças. Era pequena, medida pelos padrões de hoje, a + distância que separava adultos de crianças. + + [...] + + De modo geral, sob as pressões do condicionamento, impulsos desse tipo + desapareceram da consciência do adulto no estado de vigília. Só a psicanálise é + que os descobre sob a forma de desejos insatisfeitos ou irrealizáveis, que são + descritos como o nível inconsciente ou onírico da mente. E estes desejos têm, + de fato, em nossa sociedade, o caráter de um resíduo “infantil” porque o padrão + social dos adultos torna necessária a completa supressão e transformação dessas + tendências, de modo que elas parecem, quando ocorrem em adultos, um “resto” da + infância. + + [...] + + A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer + positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais + exatamente, está tornando esse prazer “privado” e “secreto” (isto é, + reprimindo-o no indivíduo), enquanto fomenta emoções negativamente carregadas — + desagrado, repugnância, nojo — como os únicos sentimentos aceitáveis em + sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos + impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do + indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da + personalidade e o comportamento de adultos e crianças. + + [...] + + Está avançando a “conspiração do silêncio”. Ela se baseia na pressuposição — + que evidentemente não podia ser feita à época da edição anterior — de que todos + os detalhes são conhecidos dos adultos e podem ser controlados no seio da + família. + +### Interesse instintivo remanescente + + O uso do lenço tornou-se generalizado, pelo menos entre as pessoas que alegam + saber “como se comportar”. Mas o uso das mãos não desapareceu inteiramente. + [...] Quase parece que inclinações que ficaram sujeitas a certo controle e + comedimento com a adoção do lenço estariam, dessa maneira, procurando uma nova + maneira de se manifestar. De qualquer modo, uma tendência instintiva que + aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou + mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas + secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo + histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é “normalmente” + visível apenas em crianças. + +### Culpa e neuroses + + Como em outros hábitos infantis, o aviso médico aparece agora em conjunto ou em + lugar do social como instrumento de condicionamento, com referência ao mal que + pode decorrer de fazer “tal coisa” com frequência excessiva. Vemos aí um + exemplo de mudança na maneira de condicionar alguém, que já havia sido + considerada de outros pontos de vista. Até essa ocasião, os hábitos eram quase + sempre julgados claramente em sua relação com outras pessoas e se eram + proibidos, pelo menos na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos + ou embaraçosos para terceiros ou porque revelasse “falta de respeito”. Mas + agora, os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que + possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações + socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao + embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está + sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral” + preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”: + condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por + esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável, + uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do + indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria + saúde ou dignidade humana. Só com o aparecimento dessa maneira de consolidar + hábitos ou, em outras palavras, de condicionamento, que ganha predominância com + a ascensão da classe média, é que o conflito entre impulsos e tendências + socialmente inadmissíveis, por um lado, e o padrão de exigências sociais feitas + ao indivíduo, por outro, assume a forma rigorosamente definida e fundamental às + teorias psicológicas dos tempos modernos — acima de tudo, à psicanálise. É bem + possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje + por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de + uma elucidação psicogenética e sociogenética. + +### Estágios + + No estágio da aristocracia de corte, as restrições impostas às inclinações e + emoções baseavam-se principalmente em consideração e respeito devidos a outras + pessoas e, acima de tudo, aos superiores sociais. No estágio subsequente, a + renúncia e o controle de impulsos são muito menos determinados por pessoas + particulares. Expressadas provisória e aproximativamente, nesse instante, mais + diretamente do que antes, são as compulsões menos visíveis e mais impessoais da + interdependência social, a divisão do trabalho, o mercado, a competição, que + impõem restrições e controle aos impulsos e emoções. São essas pressões, e os + correspondentes tipos de explicação e condicionamento acima mencionados, que + fazem parecer que o comportamento socialmente desejável seja gerado + voluntariamente pelo próprio indivíduo, por sua própria iniciativa. Isto se + aplica à regulação e às restrições de impulsos necessárias ao “trabalho”, e + também a todo padrão de acordo com o qual eles são modelados nas sociedades + industrializadas burguesas. + + [...] + + Em ambos os casos, na sociedade aristocrática da corte e nas sociedades + burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente + controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado + por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da + civilização, será demonstrado adiante. + + [...] + + Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro, como + de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto “primitivas” como + “civilizadas”. O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são + sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que imaginários — + isto é, por controles externos — ao passo que, nas últimas, são transformados + mais ou menos completamente em controles internos. As tendências proibidas (por + exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem em parte da consciência, sob + pressão desse controle interno, ou, como poderia ser também chamado, do + superego e do “hábito de previsão”. O que sobra na consciência como motivação + da ansiedade é alguma consideração de longo prazo. Assim, em nossa época o medo + de escarrar, e os sentimentos de vergonha e repugnância nos quais isto se + expressa, concentram-se na ideia mais precisamente definida e logicamente + compreensível de certas doenças e suas “causas”, e não em torno da imagem de + influências mágicas, deuses, espíritos, ou demônios. Mas a série de exemplos + mostra também com grande clareza que a compreensão racional das origens de + certas doenças, do perigo do esputo como transmissor, não é a causa primária do + medo e da repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás + das mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar. + + [...] + + Vale a pena deixar esclarecido, de uma vez por todas, que algo que sabemos ser + prejudicial à saúde de maneira alguma desperta necessariamente sentimentos de + desagrado ou vergonha. E, reciprocamente, algo que desperta esses sentimentos + não tem que ser prejudicial à saúde. Alguém que coma hoje barulhentamente ou + com as mãos provoca profundo desagrado, mas sem que haja o menor receio pela + saúde. E nem a ideia de ler com má iluminação nem a de gás venenoso, por + exemplo, despertam sentimentos de desagrado ou vergonha remotamente + semelhantes, embora sejam óbvias suas más consequências para a saúde. Desta + maneira, o nojo da expectoração, e os tabus que a cercam, aumentam muito antes + que as pessoas tenham uma ideia clara da transmissão de certas doenças pelo + escarro. O que inicialmente prova e agrava os sentimentos de nojo e as + restrições é a transformação das relações e dependência humanas. + + [...] + + A motivação fundada na consideração social surge muito antes da motivação por + conhecimento científico. O rei, como “sinal de respeito”, exige esse + comportamento de seus cortesãos. Nos círculos da corte, este sinal da + dependência em que ela vive, a crescente compulsão para controlar-se e + moderar-se torna-se uma “marca de distinção” a mais, que é imediatamente + imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. E aqui, + como nas precedentes curvas de civilização, a admoestação “Isso não se faz”, + com a qual a moderação, o medo e a repugnância são inculcados, só muito depois + é ligada, como resultado de certa “democratização”, a uma teoria científica, + com um argumento que se aplica por igual a todos os homens, qualquer que seja + sua posição ou status. O impulso primário a essa lenta repressão de uma + inclinação que antes era forte e geral não vem da compreensão racional das + causas das doenças, mas — conforme será discutido em detalhe mais adiante — de + mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade. + + 4. A modificação de hábito de escarrar e, finalmente, a eliminação mais ou + menos completa de sua necessidade constitui um bom exemplo da maleabilidade da + vida psíquica. Pode ser que essa necessidade tenha sido compensada por outras + (como, por exemplo, a necessidade de fumar) ou debilitada por certas mudanças + na dieta. Mas é certo que o grau de supressão que se tornou possível neste caso + não aconteceu no tocante a muitas outras inclinações. A tendência a escarrar, + como a de examinar o esputo, mencionada nesses exemplos, é substituível. Ela se + manifesta agora apenas em crianças e em análise de sonhos, e sua eliminação é + vista no riso específico que nos sacode quando “essas coisas” são mencionadas + abertamente. + + Outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis na mesma extensão. E + isto coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana. + Sem dúvida ela é submissa a certas fidelidades que podem ser chamadas + “naturais”. O processo histórico modifica-a dentro desses limites. O grau em + que a vida e o comportamento humanos podem ser moldados por processos + históricos não foi ainda analisado em suficiente detalhe. De qualquer modo, + tudo isso mostra, mais uma vez, como processos naturais e históricos se + influenciam mútua e inseparavelmente. A formação de sentimentos de vergonha e + asco e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos + naturais e históricos. Essas formas de emoções são manifestações da natureza + humana em condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo + sócio-histórico como um de seus elementos. + + É difícil concluir se a oposição radical entre “civilização” e “natureza” é + mais do que uma expressão das tensões da própria psique “civilizada”, de um + desequilíbrio específico na vida psíquica gerado no estágio recente da + civilização ocidental. De qualquer modo, a vida psíquica de povos “primitivos” + não é menos historicamente (isto é, socialmente) marcada do que a dos povos + “civilizados”, mesmo que os primeiros mal estejam conscientes de sua própria + história. Não há um ponto zero na historicidade do desenvolvimento humano, da + mesma forma que não o há na socialidade, na interdependência social dos homens. + Nos povos “primitivos” e “civilizados”, observam-se as mesmas proibições e + restrições socialmente induzidas juntamente com suas equivalentes psíquicas, + socialmente induzidas: ansiedades, prazer a aversão, desagrado e deleite. No + mínimo, por conseguinte, não é muito claro o que se tem em vista quando o + chamado padrão primitivo é oposto, como “natural”, ao “civilizado”, como social + e histórico. No que interessa às funções psíquicas do homem, processos naturais + e históricos trabalham indissoluvelmente juntos. + +### Fundo da vida social + + Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo + transferido para o fundo da vida social. [...] Suas paredes visíveis e + invisíveis vedam os aspectos mais “privados”, “íntimos”, irrepreensivelmente + “animais” da existência humana, à vista de outras pessoas. + + [...] + + Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na + ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. Tal como outros + “implementos de civilização”, espalhou-se de forma bem gradual pela Europa. E, + como eles, era símbolo de uma mudança decisiva que ocorria nessa época nos + seres humanos. Aumentava a sensibilidade com tudo aquilo que entrava em contato + com o corpo. A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes + haviam estado livres desse sentimento. + + [...] + + Neste particular, também, houve certa reação e relaxação desde a guerra. Isto + esteve claramente ligado à crescente mobilidade da sociedade, à difusão dos + esportes, a excursões e viagens, e também à separação relativamente cedo dos + jovens da comunidade familiar. A transição da camisola para o pijama — isto é, + para um trajo de dormir mais “socialmente apresentável” — constitui um sintoma + desta situação. A mudança não é, como se pensa algumas vezes, apenas um + movimento de retrogressão, uma diminuição dos sentimentos de vergonha ou + delicadeza ou, quem sabe, uma liberação e descontrole de ânsias instintivas, + mas o desenvolvimento de uma forma que se ajusta a nosso padrão avançado de + delicadeza e da situação específica em que a atual vida social coloca o + indivíduo. + + [...] + + As roupas de dormir da fase precedente despertavam sentimentos de vergonha e + embaraço exatamente porque eram relativamente informes. Não havia intenção de + que fossem vistas por pessoa fora do círculo familiar. + +### Ansiedades pelo condicionamento + + “Se for forçado por necessidade inevitável a dividir a cama com outra pessoa… + em uma viagem, não é correto ficar tão perto dele que o perturbe ou mesmo o + toque”, escreve La Salle (Exemplo D) e: “Você não deve nem se despir nem ir + para a cama na presença de qualquer outra pessoa.” + + Na edição de 1774, os detalhes são mais uma vez evitados em todos os casos + possíveis. E o tom é visivelmente mais severo: “Se for forçado a dividir a cama + com uma pessoa do mesmo sexo, o que raramente acontece, deve manter um rigoroso + e vigilante recato” (Exemplo E). Este é o tom da injunção moral. Até mesmo dar + uma razão tornou-se penoso para o adulto. Pela ameaça do tom, a criança é + levada a associar essa situação a perigo. Quanto mais o padrão “natural” de + delicadeza e vergonha parece aos adultos e quanto mais o controle civilizado de + ânsias instintivas é aceito como natural, mais incompreensível se torna para os + adultos que as crianças não sintam “por natureza” esta delicadeza e vergonha. + Necessariamente as crianças tocam repetidamente o patamar adulto de embaraço e + — uma vez que não estão ainda adaptadas — transgridem os tabus da sociedade, + cruzam o patamar adulto de vergonha, e penetram em zonas de perigo emocionais + que o próprio adulto só com dificuldade consegue controlar. Nesta situação, o + adulto não explica as exigências que faz em matéria de comportamento. Não tem + como fazê-lo adequadamente. Está tão condicionado que se conforma de maneira + mais ou menos automática a um padrão social. Qualquer outro comportamento, + qualquer desobediência às proibições ou restrições que prevalecem em sua + sociedade, implica perigo e uma desvalorização das restrições que ele mesmo se + impõe. A conotação peculiarmente emocional tão amiúde ligada a exigências + morais, à severidade agressiva e ameaçadora com que são frequentemente + defendidas, refletem a ameaça que qualquer desafio às proibições representa + para o equilíbrio instável de todos aqueles a cujos olhos o padrão de + comportamento da sociedade se tornou mais ou menos uma “segunda natureza”. + Essas atitudes são sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os + casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva, e com ela sua própria + existência social e ordem social onde se radica, é, mesmo remotamente, + ameaçada. + + [...] + + a parede entre pessoas, a reserva, a barreira emocional erigida pelo + condicionamento entre um corpo e outro cresceram sem cessar. Desde cedo as + crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e + experiências que isto traz. + + [...] + + Com uma certa impotência, o observador do século XIX e, até certo ponto, do + século XX, vê-se diante de modelos e regras de condicionamento do passado. E + até que compreendamos que nosso próprio patamar de repugnância, nossa própria + estrutura de sentimentos, evoluíram — em um processo estruturado — e seguem + evoluindo, continua realmente quase incompreensível, do atual ponto de vista, + como diálogos como esses pudessem ser incluídos em um livro escolar ou + deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é + exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em + relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu. + +### Constituição psíquisa: "a conspiração do silêncio" + + Vemos, mais uma vez, como é importante para a compreensão de uma constituição + psíquica mais antiga, e de nossa própria, observar o aumento dessa distância, a + formação gradual de uma área segregada especial na qual as pessoas vêm, aos + poucos, a passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de sua + vida. O desenvolvimento biológico humano em tempos mais antigos não tomou um + curso diferente do de hoje. Só com relação a essa mudança social podemos + compreender melhor todos os problemas de “crescer” como se apresentam hoje e, + com eles, os “resíduos infantis” na estrutura de personalidade de pessoas + crescidas (adultos). A diferença mais pronunciada entre as roupas de crianças e + adultos em nosso tempo é apenas uma expressão particularmente visível desse + fato. E, também essa diferença era mínima no tempo de Erasmo e durante um longo + período depois. + + [...] + + Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a + representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante + à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo + civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás da + cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De + maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de + paredes da consciência. + + [...] + + Uma vez que no curso do processo civilizador o impulso sexual, como tantos + outros, está sujeito a controle e transformação cada vez mais rigorosos, muda o + problema que ele coloca. A pressão aplicada sobre adultos para privatizar todos + os seus impulsos (em especial, os sexuais), a “conspiração de silêncio”, as + restrições socialmente geradas à fala, o caráter emocionalmente carregado da + maioria das palavras relativas a ardores sexuais, tudo isto constrói uma grossa + parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual + tão difícil — a derrubada desse muro, que um dia será necessário — não é só a + necessidade de fazer o adolescente conformar-se ao mesmo padrão de controle de + instintos e de domínio como o adulto. É, acima de tudo, a estrutura de + personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas + secretas. + + [...] + + À vista de tudo isso, torna-se claro como deve ser colocada a questão da + infância. Os problemas psicológicos de indivíduos que crescem não podem ser + compreendidos se forem considerados como se desenvolvendo uniformemente em + todas as épocas históricas. Os problemas relativos à consciência e impulsos + instintivos da criança variam com a natureza das relações entre ela e os + adultos. Essas relações têm em todas as sociedades uma forma específica + correspondente às peculiaridades de sua estrutura. [...] Por isso + mesmo, os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao + padrão dos adultos — por exemplo, os problemas específicos da puberdade em + nossa sociedade civilizada — só podem ser compreendidos em relação à fase + histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse + padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre + adultos e crianças. + +### Relação civilizacional tendencial entre ganhos de liberdade exterior e aumento de coerção interior + + Há evidência de sobra de que, nessa aristocracia de corte, a restrição a + relações sexuais ao casamento era frequentemente considerada como burguesa e + socialmente descabida. Não obstante, tudo isto dá uma ideia de como um tipo + específico de liberdade corresponde diretamente a formas e estágios + particulares de interdependência social entre seres humanos. + + As formas linguísticas não dinâmicas, às quais continuamos presos, opõem + liberdade a coerção como se fossem céu e inferno. A curto prazo, esse + raciocínio em opostos absolutos muitas vezes se mostra razoavelmente adequado. + Para quem está na prisão, o mundo do outro lado das grades é um mundo de + liberdade. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, não há, ao contrário do + que sugerem antíteses como essas, uma suposta liberdade “absoluta”, se por ela + entendemos total independência e ausência de qualquer coação social. O que há é + libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra, + menos pesada. Dessa maneira, o processo civilizador, a despeito da + transformação e aumento das limitações que impõe às emoções, é acompanhado + permanentemente por tipos de libertação dos mais diversos. A forma de casamento + nas cortes absolutistas, simbolizada pela igual disposição de salas de estar e + quartos de dormir para homens e mulheres nas mansões da aristocracia de corte, + constitui um dos muitos exemplos desta situação. A mulher era mais livre de + restrições externas do que na sociedade feudal. Mas a coação interior que ela + era obrigada a impor a si mesma de acordo com a forma de integração e com o + código de comportamento em vigor na sociedade de corte, que se originavam ambos + dos mesmos aspectos estruturais dessa sociedade que engendraram sua + “liberação”, havia aumentado para ela e para os homens em confronto com a + sociedade cavaleirosa. + + [...] + + Burgueses e burguesas libertaram-se das limitações externas a que estiveram + sujeitos como pessoas de segunda classe, na hierarquia dos estamentos. Aumentou + o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes deu o poder + social necessário para se libertarem. Mas, neste aspecto, as limitações sociais + do indivíduo também são mais fortes do que antes. [...] O motivo por que o + trabalho como ocupação, que com a ascensão da burguesia se tornou estilo geral + de vida, deveria exigir uma disciplina particularmente rigorosa da sexualidade + é uma questão independente; as ligações entre a estrutura da personalidade e a + social no século XIX não cabem aqui. Não obstante, para os padrões da sociedade + burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na + sociedade de corte eram extremamente débeis. [...] Mas ambas as quebras de + padrão têm, nessa época, de ser inteiramente excluídas da vida social oficial. + Ao contrário do que acontece na corte, devem ser rigorosamente confinadas atrás + da cena, banidas para o reino do segredo. Este é apenas um dos muitos exemplos + do aumento da reserva e do autocontrole que o indivíduo então se impõe. + + 10. O processo civilizador não segue uma linha reta. A tendência geral da + mudança pode ser identificada, como aqui fizemos. Em escala menor, observamos + os mais diversos movimentos que se entrecruzam, mudanças e surtos nesta ou + naquela direção. Mas se estudamos o movimento da perspectiva de grandes + períodos de tempo, vemos claramente que diminuem as compulsões originadas + diretamente na ameaça do uso das armas e da força física, e que as formas de + dependência que levam à regulação dos efeitos, sob a forma de autocontrole, + gradualmente aumentam. Esta mudança desponta em seu aspecto mais retilíneo se + observamos os homens da classe alta do tempo — isto é, a classe composta + inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente + de profissionais burgueses. Se analisamos o tecido de muitas camadas do + desenvolvimento histórico, contudo, verificamos que o movimento é infinitamente + mais complexo. Em todas as fases ocorrem numerosas flutuações, frequentes + avanços ou recuos dos controles internos e externos. O estudo dessas + flutuações, particularmente das mais próximas de nós no tempo, pode facilmente + obscurecer a tendência geral. Uma delas está presente ainda hoje na memória de + todos: no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, em comparação com o + período anterior à guerra, parece ter ocorrido uma “relaxação da moral”. Certo + número de limitações impostas ao comportamento antes da guerra debilitou-se ou + desapareceu inteiramente. Muitas coisas antes proibidas passaram a ser + permitidas. Visto bem de perto, o movimento parece estar ocorrendo na direção + oposta à demonstrada aqui, a levar a uma relação dos controles impostos ao + indivíduo pela vida social. Apurando-se o exame, porém, não é difícil notar que + isto é apenas uma recessão muito ligeira, uma das flutuações que constantemente + ocorrem na complexidade do movimento histórico, em cada fase do processo total. + + Um dos exemplos no particular é o das roupas de banho. No século XIX, cairia no + ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora + comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão do esporte entre ambos os + sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa + sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as + mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada + indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta, + podiam surgir trajos de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É + uma relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão “civilizado” + particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação automática e + de transformação de emoções, condicionados para se tornarem hábitos. + + [...] + + O mecanismo de condicionamento, contudo, pouco difere do usado em épocas + anteriores. Isto porque não implica uma supervisão mais rigorosa da tarefa, ou + planejamento mais exato que leve em conta as circunstâncias especiais da + criança, mas é efetuado, principalmente e por meios automáticos e, até certo + ponto, por reflexos. + + [...] + + 12. A tendência do processo civilizador a tornar mais íntimas todas as funções + corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las “atrás de + portas fechadas”, produz diversas consequências. Uma das mais importantes, já + observada em conexão com várias outras formas de impulsos, notamos com especial + clareza no desenvolvimento de limitações civilizadoras à sexualidade. É a + peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os + aspectos da vida humana que podem ser exibidos na vida social são separados dos + que não podem, e que devem permanecer “privados” ou “secretos”. [...] + Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica + cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre + comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural, + torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência. + + [...] + + Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos + socialmente gerados de vergonha e repugnância, entram em luta no interior do + indivíduo. Este, conforme já apontamos, é o estado de coisas que Freud tenta + descrever através de conceitos como “superego” e “inconsciente” ou, como se diz + não sem razões na fala diária, como “subconsciente”. Mas, como quer que seja + expresso, o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta + ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo. E este + elemento, o superego, tal como a estrutura da personalidade do indivíduo como + um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento + e a estrutura da sociedade. A acentuada divisão do “ego”, ou consciência, + característica do homem em nossa fase de civilização, que encontra expressão em + termos como “superego” e “inconsciente”, corresponde à cisão específica no + comportamento que a sociedade civilizada exige de seus membros. É igual ao grau + de regulamentação e restrição imposto à expressão de necessidades profundas e + impulsos. Tendências nessa direção podem se desenvolver sob qualquer forma na + sociedade humana, mesmo naquelas que chamamos de “primitivas”. Mas a força + adquirida em sociedades como a nossa por essa diferenciação, e a forma como ela + aparece, são reflexo de um desenvolvimento histórico particular, são resultado + de um processo civilizador. + + É isso o que temos em mente quando nos referimos aqui à constante + correspondência entre a estrutura social e a estrutura da personalidade, do ser + individual. + +### A "forma socialmente impressa" da agressividade + + Como todos os demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente + militares, pelo estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente + aumento na dependência dos indivíduos entre si e face ao aparato técnico. É + confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em + autolimitações. Foi tão transformada, “refinada”, “civilizada” como todas as + outras forma de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparece apenas + em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas. + + [...] + + Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram + práticas comuns da sociedade guerreira dessa época, conforme anotou Luchaire, o + historiador da sociedade francesa do século XIII. Há pouca evidência de que as + coisas fossem diferentes em outros países ou nos séculos que se seguiram. + Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não + eram banidos. O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. Até certo + ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo + com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa + maneira. + + O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro + nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da + mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros? + Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a + riqueza e o poder de luta do inimigo. Isto porque os súditos (isto é, os que + trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante + daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão + mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se + aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de + árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas + representavam a maior parte da propriedade, isto também servia para enfraquecer + o inimigo. A emotividade mais forte do comportamento era até certo ponto + socialmente necessária. As pessoas se comportavam de maneira socialmente útil e + tinham prazer nisso. + + [...] + + Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura + marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa. Muito pelo + contrário, em um momento estão pilheriando, no outro trocam zombarias, uma + palavra leva a outra e, de repente, emergindo do riso se veem no meio de uma + rixa feroz. Grande parte do que nos parece contraditório — a intensidade da + religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências, + as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força + incontrolável do ódio e da beligerância — tudo isso, tal como a rápida mudança + de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de + personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre, + mais direta, mais aberta, do que mais tarde. Só para nós, para quem tudo é mais + controlado, moderado, calculado, em quem tabus sociais mergulham muito mais + fundamente no tecido da vida instintiva como forma de autocontrole, é que esta + visível intensidade de religiosidade, beligerância ou crueldade parece + contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de + Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções. Muito + ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” como a sociedade + ou classe que a sustenta. E porque as emoções são expressas nessa época de uma + maneira que, em nosso mundo, é geralmente observada em crianças, chamamos de + “infantis” essas manifestações e formas de comportamento. + + [...] + + Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que + não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um + mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como, + inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o + homem que não pudesse controlá-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas + emoções. + + [...] + + Nessa sociedade não havia poder central suficientemente forte para obrigar as + pessoas a se controlarem. [...] Conforme veremos no detalhe mais adiante, a + reserva e a “consideração mútua” entre as pessoas aumentavam, inicialmente na + vida social diária comum. E a descarga de emoções em ataque físico se limitava + a certos enclaves temporais e espaciais. Uma vez tivesse o monopólio da força + física passado a autoridades centrais, nem todos os homens fortes podiam se dar + ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado àqueles + poucos legitimados pela autoridade central (como, por exemplo, a polícia contra + criminosos) e a números maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou + revolução, na luta socialmente legitimada contra inimigos internos ou externos. + + Mas até mesmo esses enclaves temporais ou espaciais na sociedade civilizada, + nos quais se deu maior liberdade à beligerância — acima de tudo, nas guerras + entre nações — tornaram-se mais impessoais e levavam cada vez menos a uma + descarga emocional marcada pelo imediatismo e intensidade da fase medieval. + [...] Ainda assim, isso poderia acontecer com maior rapidez do que poderíamos supor, + não tivesse o combate físico direto entre um homem e seu odiado adversário + cedido lugar a uma luta mecanizada que exige rigoroso controle dos afetos. + Mesmo nas guerras do mundo civilizado, o indivíduo não pode mais dar rédea + livre ao prazer provocado pela vista do inimigo, mas lutar, pouco importando + como se sinta, obedecendo ao comando de chefes invisíveis, ou apenas + indiretamente visíveis, e contra inimigos frequentemente invisíveis ou só + indiretamente visíveis. E foi preciso uma imensa perturbação social, aguçada + por propaganda habilmente concertada, para reacender e legitimar em grandes + massas de pessoas os instintos socialmente proibidos, o prazer de matar e a + destruição, que foram eliminados do cotidiano da vida civilizada. + + [...] + + Para dar um exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão + socialmente permitida nos jogos esportivos. [...] Esse aspecto determina em + parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia + decisivamente o papel do cinema em nosso mundo. + Essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa + e frequentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir + (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de + condicionamento dos jovens. + + Na edição de 1774 da Civilité, de La Salle, lemos (p.23): “Crianças gostam de + tocar em roupas e em outras coisas que lhes agradam as mãos. Esta ânsia deve + ser corrigida e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos.” + + Hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do + homem civilizado que seja proibido por autocontrole socialmente inculcado de, + espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a modelação de + seus gestos — pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações + ocidentais no tocante a detalhes — é decisivamente influenciada por essa + necessidade. Já mostramos páginas atrás como o emprego do sentido do olfato, a + tendência de cheirar o alimento ou outras coisas, veio a ser restringido como + algo animal. Aqui temos uma das interconexões através da qual um diferente + órgão dos sentidos, o olho, assume importância muito específica na sociedade + civilizada. De maneira semelhante à da orelha, e talvez ainda mais, o olho se + torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo + pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições. + + [...] + + Todos os que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados + “anormais”. Por conseguinte, alguém que desejasse gratificar seu prazer à + maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado “anormal” + simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização + restringe a manifestação de prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada + sob a forma de autocontrole. + Neste caso, obviamente, opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no + qual ocorreu a mudança a longo prazo da personalidade: manifestações + socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com + medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do + desagrado despertado pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado + dominante é compulsoriamente associado até mesmo a comportamentos que, na sua + origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a ansiedade + socialmente despertados — hoje representados, embora nem sempre nem + exclusivamente, pelos pais — lutam com desejos ocultos. O que foi mostrado + aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do + patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em + movimento por mecanismos como esses. + +### Em tempos medievais + + A forca, o símbolo do poder judiciário de cavaleiro, é parte do ambiente de sua + vida. Talvez não seja muito importante, mas, de qualquer maneira, não é um + espetáculo particularmente doloroso. Sentença, execução, morte tudo isto é uma + presença constante nessa vida. Elas, também, não foram ainda removidas para + trás da cena. + + [...] + + por exemplo, na obra de Breughel, um padrão de repugnância que lhe permite + trazer para as telas aleijados, camponeses, cadafalsos, ou pessoas que se + aliviam de necessidades corporais. Mas o padrão visto neles está vinculado a + sentimentos sociais muito diferentes dos que vemos nesses quadros em que + aparece a classe alta de fins do período medieval. + + [...] + + Essas cenas de amor são tudo, menos “obscenas”. O amor é apresentado nelas como + tudo o mais na vida do cavaleiro fidalgo, torneios, caçadas, campanhas, + pilhagens. As cenas não são especialmente ressaltadas. Não sentimos em sua + representação coisa alguma da violência, da tendência para excitar ou + gratificar a satisfação de desejos negados na vida, característica de tudo o + que é “obsceno”. Esse desenho não nasce de uma alma oprimida, nem revela nada + de “secreto” mediante a violação de tabus. + + [...] + + Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão + a impulsos e sentimentos de forma incomparavelmente mais fácil, rápida, + espontânea e aberta do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e, + em consequência, menos reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente + entre extremos. + + Mas tais restrições e controles se faziam em uma direção diferente e em grau + menor que em períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole + constante, quase automático. O tipo de integração e interdependência em que + viviam essas pessoas não as compelia a abster-se de funções corporais uma na + frente da outra ou a controlar seus impulsos agressivos na mesma extensão que + na fase seguinte. Isto se aplica a todos. Mas, claro, para os camponeses, a + margem para agressão era mais restrita do que para o cavaleiro — isto é, + restrita a seus pares. [...] Uma restrição de ordem social às vezes se + impunha ao camponês pelo simples fato de que não tinha o suficiente para comer. + Isto certamente representa um controle de impulsos do mais alto grau e que + afeta todo o comportamento do ser humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e + esta situação social dificilmente lhe tornava necessário impor controles a si + mesmo quando assoava o nariz, escarrava, ou pegava vorazmente comida na mesa. + + [...] + + A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais + espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem + social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma. + Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles + e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o + equilíbrio das emoções e, de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que + o indivíduo procura e consegue. + +### Autocontrole como resposta ao avanço da interdependência + + Quanto mais avançam a interdependência e a divisão de trabalho na sociedade, + mais dependente a classe alta se torna das outras e maior, por conseguinte, a + força social destas, pelo menos potencialmente. Mesmo quando ela ainda é + principalmente uma classe guerreira, quando mantém as outras classes + dependentes sobretudo pela espada e o monopólio das armas, algum grau de + dependência dessas outras classes não está de todo ausente. Mas é + incomparavelmente menor, e menor também é, conforme veremos em mais detalhes + adiante, a pressão vinda de baixo. Em consequência, o senso de domínio da + classe alta, seu desprezo pelas demais, é muito mais franco, e muito menos + forte a pressão sobre ela para praticar moderação e controlar seus impulsos. + + [...] + + Um novo comedimento, um controle e regulação novo e mais extenso do + comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessário ou possível, são + agora exigidos do nobre. São resultado da nova e maior dependência em que foi + colocado o nobre. Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu + castelo, do castelo que é sua pátria. + +### Para uma teoria sobre civilizações + + como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em + longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado + o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência + humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas, + e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em + uma direção particular? Essas mudanças são indicadas na fala diária quando + dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que + antes, ou que as de outras sociedades são mais “incivis” ou menos “civilizadas” + (ou mesmo mais “bárbaras”) que as da nossa. São óbvios os juízos de valor + contidos nessas palavras, embora sejam menos óbvios os fatos a que se referem. + Isto acontece em parte porque os estudos empíricos de transformações a longo + prazo de estruturas de personalidade, e em especial de controle de emoções, dão + origem a grandes dificuldades no estágio atual das pesquisas sociológicas. À + frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo + relativamente curto e, em geral, apenas problemas relativos a um dado estado da + sociedade. As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por + conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na + maioria dos casos. + + O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo. A sua + compreensão pode ser facilitada por uma curta indicação dos vários tipos que + esses processos assumem. Para começar, podemos distinguir duas direções + principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior + diferenciação e integração, e as que tendem para menos. Além disso, há um + terceiro tipo de processo social, no curso do qual é mudada a estrutura de uma + sociedade, ou de alguns de seus aspectos particulares, mas sem haver tendência + de aumento ou diminuição no nível de diferenciação e integração. Por último, + são incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua + estrutura. Este trabalho não faz justiça a toda a complexidade dessas mudanças, + porquanto numerosas formas híbridas, e não raro vários tipos de mudança, mesmo + em direções opostas, podem ser observadas simultaneamente na mesma sociedade. + Mas, por ora, este curto esboço dos diferentes tipos de mudança deve bastar + para indicar os problemas de que trata este estudo. + + O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a + suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo + nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares — + mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante + grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e + encontrar comprovação factual. + + [...] + + A demonstração de uma mudança em emoções e estruturas de controle humanas que + ocorre ao longo de muitas gerações, e na mesma direção ou, em curtas palavras, + o aumento do reforço e diferenciação dos controles — gera outra questão: é + possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade + com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira + tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e + integração social? O segundo volume trata desses problemas. + + No tocante a essas mudanças estruturais a longo prazo da sociedade, falta + também prova empírica. Tornou-se, por conseguinte, necessário no segundo volume + dedicar parte do mesmo à descoberta e elucidação das ligações factuais nesta + segunda área. A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo, + tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser + demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou + possível. O processo de formação dos Estados nacionais, discutido no segundo + volume, constitui um exemplo desse tipo de mudança estrutural. Finalmente, em + um esboço provisório de uma teoria de civilização, elabora-se um modelo, a fim + de demonstrar possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas + da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles + emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível + mais alto de diferenciação e integração como, por exemplo, visando a uma + diferenciação e prolongamento das cadeias de interdependência e à consolidação + dos “controles estatais”. + + [...] + + Facilmente se pode compreender que ao adotar uma metodologia voltada para + ligações factuais e suas explicações (isto é, um enfoque empírico e teórico + preocupado com mudanças estruturais de longo prazo de um tipo específico, ou + “desenvolvimento”), abandonamos as ideias metafísicas que vinculam o conceito + de desenvolvimento à noção ou de uma necessidade mecânica ou de uma finalidade + teleológica. + + [...] + + este estudo nem era de uma “evolução”, no sentido do século XIX, de um + progresso automático, nem de uma “mudança social” inespecífica no sentido do + século XX. Naquele tempo isto me pareceu tão óbvio que deixei de mencionar + explicitamente essas implicações teóricas. A introdução à segunda edição me dá + a oportunidade de corrigir essa omissão. + + [...] + + A situação é semelhante no tocante a grande número de outros problemas aqui + estudados. Quando, após vários estudos preparatórios que me permitiram + investigar a evidência documentária e explorar os problemas teóricos + gradualmente emergentes, o caminho para uma possível solução pareceu mais + claro, tornei-me consciente de que este estudo ajuda a solucionar o renitente + problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim + chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números + de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda + ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como + mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo + prazo. + +### Os limites de conceber as coisas como um mero jogo de cartas + + A fim de exemplificar este fato, bastará discutir a maneira como o homem que é + atualmente considerado o principal teórico da sociologia, Talcott Parsons, + tenta colocar e solucionar alguns dos problemas aqui estudados. É + característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em + seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de + sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente + elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão + incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção + pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas: + cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente. + As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais + diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a + polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva. Parsons concebeu + originariamente essa ideia, segundo nos diz, analisando os tipos de sociedade + de Tönnies, a Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A + “comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a + “sociedade”, pela neutralidade afetiva. Mas, ao determinar as diferenças entre + diferentes tipos de sociedade, e diferentes tipos de relacionamentos dentro da + mesma, ele atribui a essa “variável de padrão” no jogo de cartas, como a + outras, um significado inteiramente geral. No mesmo contexto, Parsons trata do + problema da relação entre estrutura social e personalidade.2 Indica que + conquanto antes os tivesse interpretado simplesmente como “sistemas de ação + humana” estreitamente vinculados e interatuantes, agora pode declarar com + certeza que, em um sentido teórico, eles são fases, ou aspectos, diferentes de + um único e mesmo sistema de ação fundamental. Ilustra isto com um exemplo, + explicando que o que no plano sociológico pode ser considerado como uma + institucionalização da neutralidade afetiva é, essencialmente, o mesmo que no + nível da personalidade pode ser considerado como “na imposição da renúncia à + gratificação imediata, no interesse da organização disciplinada e dos objetivos + a longo prazo da personalidade”. + + [...] + + [1] in Talcott Parsons, Essays in Sociological Theory (Glencoe, 1963), p.359 e segs. + + [...] + + O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é + um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz + retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em + vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das + pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções — + mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere + uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva, + que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de + sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas. + + [...] + + Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e + tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a + análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento + da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico. + + [...] + + As categorias básicas selecionadas por Parsons, no entanto, parecem-me + arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não + comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria + científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e + simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes + individuais. + +Construções auxiliares desnecessariamente complicadas: + + O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da + sociologia é mais complicada, do que simplificada, por uma sistemática redução + dos processos sociais a estados sociais, e de fenômenos complexos, + heterogêneos, a componentes mais simples e só aparentemente homogêneos. Este + tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização + apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda + pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso, + descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do + epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente + complicadas, a fim de fazer com que concordem com os fatos observáveis. Não + raro elas parecem nuvens escuras das quais, daqui e dali, caem uns poucos raios + de luz que tocam a terra. + +Processos: + + Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias + sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos. Conforme + demonstrado neste estudo, a relação entre o indivíduo e as estruturas sociais + só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e + evolução. Só então será possível construir modelos de seus relacionamentos, + como é feito aqui, que concordam com fatos demonstráveis. + + [...] + + Sem jamais dizer isto clara e abertamente, Parsons e todos os sociólogos da + mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se + referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”. Assim — para dar apenas um + exemplo —, Parsons adota a noção, já desenvolvida por Durkheim, de que a + relação entre “indivíduo” e “sociedade” é uma “interpenetração” do indivíduo e + do sistema social. Como quer que essa “interpenetração” seja concebida, o que + mais pode essa metáfora significar, senão que estamos tratando de duas + entidades diferentes que, primeiro, existem separadamente e que depois se + “interpenetram”?3 + +Segue uma ótima crítica à sociologia estrutural/estática que enxerga sociedades +como sistemas em repouso e que apenas buscam o repouso quando ocorre algum acidente +perturbando seu equilíbrio homeostático. + +### Humildar: sacar mais qual é a real e não se iludir + + Muitos dos artigos de fé sociológicos pioneiros não foram mais aceitos pelos + sociólogos do século XX. Eles incluíam, acima de tudo, a crença em que o + desenvolvimento da sociedade é necessariamente uma evolução para o melhor, um + movimento na direção do progresso. Esta crença foi categoricamente rejeitada + por muitos sociólogos posteriores, de acordo com sua própria experiência + social. + + [...] + + Se, no século XIX, concepções específicas do que devia ser ou do que se + desejava que fosse — concepções ideológicas específicas — levaram a um + interesse fundamental pelo desenvolvimento da sociedade, no século XX outras + concepções do que devia ser ou era desejável — outras concepções ideológicas — + geraram pronunciado interesse entre os principais teóricos pelo estado da + sociedade como ela se encontra, negligenciando os problemas da dinâmica das + formações sociais, e sua falta de interesse por problemas de processo de longa + duração e por todas as oportunidades de explicação que o estudo desses + problemas proporciona. + + [...] + + Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os + primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam + as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes + industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a + ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas + de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com + sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um + futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no + futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento + da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais + emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o + desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças. + Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento + social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre + doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela + época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de + importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a + fatos verificáveis. + + Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra + razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização, + cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que + ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um + passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados + dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os + que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida + tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os + adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes + classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação + ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor, + no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes + dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro + mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o + progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes + das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se + identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses + como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim. + + [...] + + O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas + procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o + arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas + sociais. Isto porque só poderemos reunir conhecimentos sociológicos adequados o + suficiente para serem usados na solução dos agudos problemas da sociedade se, + quando equacionamos e resolvemos problemas sociológicos, deixamos de subordinar + a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções + devem ser. + +A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial: + + Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua + oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com + ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a + ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que + exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de + influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O + que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da + prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que + deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi. + + [...] + + Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as + pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como + ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira” + realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras + começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas + concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um + indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social” + igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza + do problema. + +### Indivíduo como sujeito aberto + + No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em + uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual + usado aqui, realmente significa. + + [...] + + Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico. + Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo + “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber + seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o + processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são + ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da + humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a + compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a + chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de + conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a + “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia + causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem + precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo + inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade. + [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber + processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações + formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender + os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de + imagem do homem e da sua percepção de si mesmo. + [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o + que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de + todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir + importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua + vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as + pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes, + formando configurações mutáveis entre si. + + [...] + + A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias + estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito + aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos, + isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a + processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária + convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da + Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio + isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é + “exterior”. + + [...] + + Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na + literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a + incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...] + Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência + eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra + explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio + no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as + formam? + + [...] + + Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos + conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários + para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para + heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na + capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos + científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente + aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária, + irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de + seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um + conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por + conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido + de maior autocontrole pelo homem. + + [...] + + Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o + desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de + objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para + consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças + rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez + contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo + espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento + nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções, + desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau + mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do + mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por + outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos + observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto + tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos + muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da + natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa + científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem + acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora + republico examino a partir de outros aspectos. + + [...] + + O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira + puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de + forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por + conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o + homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios + seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da + sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse + respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se + relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os + homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os + processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade + ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação + ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do + conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e + finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o + suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria + contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o + sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da + indagação científica. + + [...] + + Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social, + tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se + interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e + emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais + eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) + sem a permissão desses mecanismos de controle. + + [...] + + Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de + autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais + forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação + afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas + ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si + mesmas um objeto de investigação. + + [...] + + Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade + individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se + perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de + indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe + fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos + humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O + controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa + mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais + implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se + manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de + controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que + separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes + versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” + da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e + emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na + autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o + verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é + uma metáfora conveniente, mas que induz em erro. + +### O conceito de configuração + + A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de + “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto + ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante + toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente + delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas + formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de + pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou + menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde + através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades + recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, + apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que, + conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à + imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de + numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou + sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico, + desaparece a cisão na visão tradicional do homem. + +### Dança, mu-dança + + O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente + explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo + mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na + polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de + pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar + Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e + feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as + antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje + no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na + dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do + indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente + ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos + reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais + configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos + específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria + absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações + de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais + configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam — + tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou + com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de + sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças. + +### Dinâmica criadora de monopólios + + Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do + Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais + relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação + mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há + explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma + mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma, + a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades + livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso + dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas + grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição + social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na + rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica + como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto + com essas mudanças de configuração. -- cgit v1.2.3