From 3ffd324a9f6670faddc914592e04d6acfd6e6fee Mon Sep 17 00:00:00 2001 From: Silvio Rhatto Date: Wed, 6 Jun 2018 10:55:28 -0300 Subject: Updates books/sociedade/processo-civilizador --- books/sociedade/processo-civilizador.md | 269 ++++++++++++++++++++++++++++++++ 1 file changed, 269 insertions(+) (limited to 'books/sociedade') diff --git a/books/sociedade/processo-civilizador.md b/books/sociedade/processo-civilizador.md index b6e91f5..f2ecfbc 100644 --- a/books/sociedade/processo-civilizador.md +++ b/books/sociedade/processo-civilizador.md @@ -257,3 +257,272 @@ burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação interna do país pelos reis. + +### Ruderia + + Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham. + + [...] + + A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento + “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro. + Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este + decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante + descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens + excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante. + O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no + braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida, + enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano, + preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa + com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o + pé. O mesmo se aplica ao escarro. + + Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a + mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas + de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar + alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por + exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos + dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou + estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas + preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós, + materializações de uma estrutura mental e emocional diferente. + + [...] + + Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de + mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para + nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos + tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes + para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as + quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e + rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras + mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz + Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende + as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente + perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as + mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um + dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa. + + Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam + extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no + casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca + comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer + a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não + é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta: + “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e + demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na + quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em + algum lugar.” + + [...] + + Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens + alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã: + cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são + apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e + crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava + as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas + a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar + da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas + escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em + seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e + molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho + melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o + vinho não lhe serve, procure outras acomodações. + + [...] + + Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões, + tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e + para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum + emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou + tentar soltar ventosidades intestinais). + + [...] + + É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse + um porrete: segure-as sempre com os dedos. + +### Conduta + + A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos + sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo + um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que + na Idade Média. + + Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa + era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares + segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes. + Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre + a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente. + Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de + que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam + sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados + sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro + à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal + da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o + aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o + Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma + direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos + adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo + menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes + origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de + grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade. + + Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e + em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma + hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos + de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova + aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento + uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura + alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma + extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é + neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e + outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em + sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não + bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso + e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e + não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em + conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os + semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As + regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito + ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36 + + [...] + + A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com + frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém, + mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse + momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a + pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se + imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e + relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um + superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para + inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência + física. + + Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de + comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle + social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda + a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de + boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais, + evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos + séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só + conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas. + Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo + de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de + policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o + modelo de comportamento. + + [...] + + 8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo + porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer + — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais + curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única + fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere. + Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento + dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma + série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do + processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções, + o patamar, que se alarga, da aversão. + + [...] + + o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não + como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de + movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes. + + [...] + + Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e + os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as + pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem + cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se + tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo + hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É + errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes + com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se + assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca, + lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o + pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um + dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados + em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por + grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma, + como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em + conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.] + +### Dinâmica + + A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos + poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”. + + As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns + aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa + ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes + discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se + aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande + extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro + do que na primeira versão. + + [...] + + Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo + assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as + tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em + diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de + conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento + ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas, + através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global + clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são + ouvidas em conjunto. + + Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia + de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias + origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento. + + De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de + corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige + principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na + corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso. + + Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a + atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo + particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho, + que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o + autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes + bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que + poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos + têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender + os refinamentos da polidez.” + + Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de + livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é + importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são + escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo + dos fechados círculos da aristocracia de corte. + +Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social: + + O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as + honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar, + o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o + comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se + supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do + interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que + demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte + espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados + e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem + assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação + da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que + estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é + desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo, + sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o + movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte + sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do + comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e + acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de + desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o + avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou + como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de + natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades. -- cgit v1.2.3