From b6c0ffcaf707ee1968a7f29021d20357692a84d0 Mon Sep 17 00:00:00 2001 From: Silvio Rhatto Date: Tue, 7 Aug 2018 10:05:58 -0300 Subject: Reorganization --- books/sociedade/mayombe.md | 530 --------------------------------------------- 1 file changed, 530 deletions(-) delete mode 100644 books/sociedade/mayombe.md (limited to 'books/sociedade/mayombe.md') diff --git a/books/sociedade/mayombe.md b/books/sociedade/mayombe.md deleted file mode 100644 index 6e11b51..0000000 --- a/books/sociedade/mayombe.md +++ /dev/null @@ -1,530 +0,0 @@ -[[!meta title="Mayombe"]] - -## Trechos - -### Prometeu africano - - A comida faltava e a mata criou as «comunas», frutos secos, grandes amêndoas, - cujo caroço era partido à faca e se comia natural ou assado. As «comunas» eram - alimentícias, tinham óleo e proteínas, davam energia, por isso se chamavam - «comunas». E o sítio onde os frutos eram armazenados e assados recebeu o nome - de «Casa do Partido». O «comunismo» fez engordar os homens, fê-los restabelecer - dos sete dias de marchas forçadas e de emoções. O Mayombe tinha criado o fruto, - mas não se dignou mostrá-lo aos homens: en carregou os gorilas de o fazer, que - deixaram os caroços partidos perto da Base, misturados com as suas pegadas. E - os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que - ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiavam: Zeus vergado a - Prometeu, Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu, arrependido de o ter - agrilhoado, enviando agora a águia, não para lhe furar o fígado, mas para o - socorrer. (Terá sido Zeus que agrilhoou Prometeu, ou o contrário?) - - A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente dos homens, a - mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos, lama, - escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés dos homens, - barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens. E os - homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas - brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a mata estendeu-lhes a - sombra protectora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu - dava impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam - que Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a - Prometeu que lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em - oposição aos deuses. Tal é o atributo do herói, o de levar os homens a - desafiarem os deuses. - - Assim é Ogun, o Prometeu africano. - -### Comandante Sem Medo - - – Há coisas que uma pessoa esconde, esconde, e que é difícil contar. Mas, - quando se conta, pronto, tudo nos aparece mais claro e sentimo-nos livres. É - bom conversar. Esse é dos tais problemas que pode destruir um indivíduo, se ele - o guarda para si. Mas podes ter a certeza de que todos têm medo, o problema é - que os intelectuais o exageram, dando-lhe demasiada importância. É realmente - aqui uma origem de classe social... Todos pensamos ter duas personalidades, a - que é covarde e a outra, que não chamamos corajosa, mas inconsciente. O medo... - o medo não é problema. A questão é conseguir dominar o medo e ultrapassá-lo. - Dizes que o ultrapassas quando os outros te observam, ou quando pensas que te - observam, que é o mais verídico... mas que, se estiveres sozinho, não és capaz. - Talvez. Dás demasiada importância ao que os outros pensam de ti. Hoje, tu já - não tens cor, pelo menos no nosso grupo de guerrilha estás aceite, - completamente aceite. Não é dum dia para o outro que te vais libertar desse - complexo de cor, não. Mas tens de começar a pensar que já não é um problema - para ti. Talvez sejas o único que tem as simpatias e o respeito de todos os - guerrilheiros, isso já o notei várias vezes. Não podes viver nessa angústia - constante, senão os nervos dão de si. E hoje já não há razão. - - – Os meus nervos já estoiraram tantas vezes... - - – Ainda não. Foram só ameaços! É bom falar, é bom conversar com um amigo, a - quem se abre o coração. Sempre que estiveres atrapalhado, vem ter comigo. A - gente papeia. Guardar para si não dá, só quando se é escritor. Aí um tipo põe - tudo num papel, na boca dos outros. Mas, quando se não é escritor, é preciso - desabafar, falando. A acção é outra espécie de desabafo, muitos de nós utilizam - esse método, outros batem na mulher ou embebedam-se. Mas a acção como desabafo - perde para mim todo o seu valor, torna-se selvática, irracional. As outras - formas são uma covardia. Só há a conversa franca que me parece o melhor, a mim - que não sou escritor. Não foi por acaso que os padres inventaram a confissão, - ela corresponde a uma necessidade humana de desabafo. A religião soube desde o - princípio servir-se de certas necessidades subjectivas, nasceu mesmo dessas - necessidades. Por isso o cristianismo foi tão aceite. Há certas seitas - protestantes, não sei se todas, em que a confissão é pública. Isso corresponde - a um maior grau de sociabilidade, embora leve talvez as pessoas a serem menos - profundas, menos francas, na confissão. Corresponde melhor à hipocrisia - burguesa... E daí não sei, pois eu nunca fui muito franco nas minhas confissões - individuais de católico... - - [...] - - – Ora! Vamos tomar o poder e que vamos dizer ao povo? Vamos construir o - socialismo. E afinal essa construção levará 30 ou 50 anos. Ao fim de cinco - anos, o povo começará a dizer: mas esse tal socialismo não resolveu este - problema e aquele. E será verdade, pois é impossível resolver tais problemas, - num país atrasado, em cinco anos. E como reagirão vocês? O povo está a ser - agitado por elementos contra-revolucionários! O que também será verdade, pois - qualquer regime cria os seus elementos de oposição, há que prender os - cabecilhas, há que fazer atenção às manobras do imperialismo, há que reforçar a - polícia secreta, etc., etc. O dramático é que vocês terão razão. - Objectivamente, será necessário apertar-se a vigilância no interior do Partido, - aumentar a disciplina, fazer limpezas. Objectivamente é assim. Mas essas - limpezas servirão de pretexto para que homens ambiciosos misturem - contra-revolucionários com aqueles que criticam a sua ambição e os seus erros. - Da vigilância necessária no seio do Partido passar-se-á ao ambiente policial - dentro do Partido e toda a crítica será abafada no seu seio. O centralismo - reforça-se, a democracia desaparece. O dramático é que não se pode escapar a - isso... – Depende dos homens, depende dos homens... - - – Os homens? – Sem Medo sorriu tristemente. – Os homens serão prisioneiros das - estruturas que terão criado. Todo organismo vivo tende a cristalizar, se é - obrigado a fechar-se sobre si próprio, se o meio ambiente é hostil: a pele - endurece e dá origem a picos defensivos, a coesão interna torna-se maior e, - portanto, a comunicação interna diminui. Um organismo social, como é um - Partido, ou se encontra num estado excepcional que exige uma confrontação - constante dos homens na prática – tal uma guerra permanente – ou tende para a - cristalização. Homens que trabalham há muito tempo juntos cada vez têm menos - necessidade de falar, de comunicar, portanto de se defrontar. Cada um conhece o - outro e os argumentos do outro, criou-se um compromisso tácito entre eles. A - contestação desaparecerá, pois. Onde vai aparecer contestação? Os - contestatários serão confundidos com os contra-revolucionários, a burocracia - será dona e senhora, com ela o conformismo, o trabalho ordenado mas sem paixão, - a incapacidade de tudo se pôr em causa e reformular de novo. O organismo vivo, - verdadeiramente vivo, é aquele que é capaz de se negar para renascer de forma - diferente, ou melhor, para dar origem a outro. - - – Depende dos homens – disse o Comissário. – Se são indivíduos revolucionários - e, por isso, capazes de ver quais são as necessidades do povo, poderão corrigir - todos os erros, poderão mudar as estruturas... - - – E a idade? E o assento que conquistaram? Quererão perdê-lo? Quem gosta de - perder um cargo? Sobretudo quando atingem a idade do comodismo, da poltrona - confortável com os chinelos e os charutos que nessa altura poderão comprar? É - preciso ser excepcional! - - – Há homens excepcionais... - - – Sim, há. Uma vez todas as décadas. Um só homem excepcional poderá mudar tudo? - Então tudo repousará nele e cair-se-á no culto da personalidade, no - endeusamento, que entra dentro da tradição dos povos subdesenvolvidos, - religiosos tradicionalmente. O problema é esse. É que, nos nossos países, tudo - repousa num núcleo restrito, porque há falta de quadros, por vezes num só - homem. Como contestar no interior dum grupo restrito? Porque é demagogia dizer - que o proletariado tomará o poder. Quem toma o poder é um pequeno grupo de - homens, na melhor das hipóteses, representando o proletariado ou querendo - representá-lo. A mentira começa quando se diz que o proletariado tomou o poder. - Para fazer parte da equipa dirigente, é preciso ter uma razoável formação - política e cultural. O operário que a isso acede passou muitos anos ou na - organização ou estudando. Deixa de ser proletário, é um intelectual. Mas nós - todos temos medo de chamar as coisas pelos seus nomes e, sobretudo, esse nome - de intelectual. Tu, Comissário, és um camponês? Porque o teu pai foi camponês, - tu és camponês? Estudaste um pouco, leste muito, há anos que fazes um trabalho - político, és um camponês? Não, és um intelectual. Negá-lo é demagogia, é - populismo. - - [...] - - – Compreendi, em primeiro lugar, que o verdadeiro homem, aquele que não pode - ser dominado, é o que pode calar a paixão para seguir friamente um plano. Todo - o sentimento irracionaliza e, por isso, incapacita para a acção. Que todo o - dominador é em parte dominado, é essa a relação dialéctica entre o escravo e o - senhor de escravos. Oue as relações humanas são sempre contraditórias e que as - não há perfeitas. Que a sorte sorri a quem a procura, arriscando. Que não há - actos gratuitos e que não existe coragem gratuita, ela deve estar sempre ligada - à procura dum objectivo. E que, quando alguém quer fazer uma asneira, deves - deixá-lo fazer a asneira. Cada um parte a cabeça como quiser! Depois de ter a - cabeça partida, aceitará melhor um conselho. Só se pode provar que um plano é - mau, quando ele não atingir o objectivo proposto. - - – Dir-se-ia que toda a tua vida te levou para a estratégia militar, Sem Medo. O - seminário, o amor... - - – Sim. A vida modelou-me para a guerra. A vida ou eu próprio? Difícil de saber. - - [...] - - – Não temos as mesmas ideias – disse Sem Medo. – Tu és o tipo do aparelho, um - dos que vai instalar o Partido único e omnipotente em Angola. Eu sou o tipo que - nunca poderia pertencer ao aparelho. Eu sou o tipo cujo papel histórico termina - quando ganharmos a guerra. Mas o meu objectivo é o mesmo que o teu. E sei que, - para atingir o meu objectivo, é necessária uma fase intermédia. Tipos como tu - são os que preencherão essa fase intermédia. Por isso, acho que fiz bem em - apoiar o teu nome. Um dia, em Angola, já não haverá necessidade de aparelhos - rígidos, é esse o meu objectivo. Mas não chegarei até lá. - - [...] - - – Eu? Eu sou, na tua terminologia, um aventureiro. Eu quereria que na guerra a - disciplina fosse estabelecida em função do homem e não do objectivo político. - Os meus guerrilheiros não são um grupo de homens manejados para destruir o - inimigo, mas um conjunto de seres diferentes, individuais, cada um com as suas - razões subjectivas de lutar e que, aliás, se comportam como tal. - - – Não te percebo. - - – Não me podes perceber. Nem te sei explicar, é tudo ainda tão confuso. Por - exemplo, eu fico contente quando um jovem decide construir-se uma - personalidade, mesmo que isso politicamente signifique um individualismo. Mas é - um homem novo que está a nascer, contra tudo e contra todos, um homem livre de - baixezas e preconceitos, e eu fico satisfeito. Mesmo que para isso ele infrinja - a disciplina e a moral geralmente aceite. É um exemplo, enfim... Sei apenas, - que a tua posição é a mais justa, pois a mais conforme ao momento actual. Tu - serves-te dos homens, neste momento é necessário. Eu não posso manipular os - homens, respeito-os demasiado como indivíduos. Por isso, não posso pertencer a - um aparelho. A culpa é minha. Culpa! A culpa não é de ninguém. - - – Estás desmoralizado, Sem Medo. - - – Não – disse ele, olhando Ondina. – Estou angustiado, porque luto entre a - razão e o sentimento. - - [...] - - – O que conta é a acção. Os problemas do Movimento resolvem-se, fazendo a acção - armada. A mobilização do povo de Cabinda faz-se desenvolvendo a acção. Os - problemas pessoais resolvem-se na acção. Não uma acção à toa, uma acção por si. - Mas a acção revolucionária. O que interessa é fazer a Revolução, mesmo que ela - venha a ser traída. - -### Estudo - - – Tu, Lutamos, és um burro! – disse Sem Medo. – Quem não quer estudar é um - burro e, por isso, o Comissário tem razão. Queres continuar a ser um tapado, - enganado por todos... As pessoas devem estudar, pois é a única maneira de - poderem pensar sobre tudo com a sua cabeça e não com a cabeça dos outros. O - homem tem de saber muito, sempre mais e mais, para poder conquistar a sua - liberdade, para saber julgar. Se não percebes as palavras que eu pronuncio, - como podes saber se estou a falar bem ou não? Terás de perguntar a outro. - Dependes sempre de outro, não és livre. Por isso toda a gente deve estudar, o - objectivo principal duma verdadeira Revolução é fazer toda a gente estudar. Mas - aqui o camarada Mundo Novo é um ingénuo, pois que acredita que há quem estuda - só para o bem do povo. É essa cegueira, esse idealismo, que faz cometer os - maiores erros. Nada é desinteressado. - - [...] - - – Mas não acreditas, Comandante, que haverá homens totalmente desinteressados? - - – Jesus Cristo?... Acho que sim, existem alguns raros. Mas não o são sempre. O - Comissário, por exemplo, é em certa medida um desinteressado. Penso que pode - corresponder, nalguns eleitos, a um período determinado. Mas é temporário. - Ninguém é perpetuamente desinteressado. - -### Caminho - - – Penso que é como a religião – disse Sem Medo. – Há uns que necessitam dela. - Há uns que precisam crer na generosidade abstracta da humanidade abstracta, - para poderem prosseguir um caminho duro como é o caminho revolucionário. - Considero que ou são fracos ou são espíritos jovens, que ainda não viram - verdadeiramente a vida. Os fracos abandonam só porque o seu ideal cai por - terra, ao verem um dirigente enganar um militante. Os outros temperam-se, - tornando-se mais relativos, menos exigentes. Ou então mantêm a fé acesa. Estes - morrem felizes embora talvez inúteis. Mas há homens que não precisam de ter uma - fé para suportarem os sacrifícios; são aqueles que, racionalmente, em perfeita - independência, escolheram esse caminho, sabendo bem que o objectivo só será - atingido em metade, mas que isso já significa um progresso imenso. É evidente - que estes têm também um ideal, todos o têm, mas nestes o ideal não é abstracto - nem irreal. Eu sei, por exemplo, que todos temos bem no fundo de nós um lado - egoísta que pretendemos esconder. Assim é o homem, pelo menos o homem actual. - Para que serviram séculos ou milénios de economia individual, senão para - construir homens egoístas? Negá-lo é fugir à verdade dura, mas real. Enfim, sei - que o homem actual é egoísta. Por isso, é necessário mostrar-lhe sempre que o - pouco conquistado não chega e que se deve prosseguir. Isso impedir-me-á de - continuar? Porquê? Se eu sei isso, a frio, e mesmo assim me decido a lutar, se - pretendo ajudar esses pequenos egoístas contra os grandes egoístas que tudo - açambarcaram, então não vejo porquê haveria de desistir quando outros - continuam. Só pararei, e aí racionalmente, quando vir que a minha acção é - inútil, que é gratuita, isto é, se a Revolução for desviada dos seus objectivos - fundamentais. - -### Criatividade - - – Já te disse que uma mulher deve ser conquistada permanentemente – disse Sem - Medo. – Não te podes convencer que ela ficou conquistada no momento em que te - aceitou, isso era só o prelúdio. O concerto vem depois e é aí que se vê a raça, - o talento, do maestro. O amor é uma dialéctica cerrada de aproximação-repúdio, - de ternura e imposição. Senão cai-se na rotina, na mornez das relações e, - portanto, na mediocridade. Detesto a mediocridade! Não há nada pior no homem - que a falta de imaginação. É o mesmo no casal, é o mesmo na política. A vida é - criação constante, morte e recriação, a rotina é exactamente o contrário da - vida, é a hibernação. Por vezes, o homem é como o réptil, precisa de hibernar - para mudar de pele. Mas nesse caso a hibernação é uma fase intensa de - auto-escalpelização, é pois dinâmica, é criadora. Não a rotina. Evita a rotina - no amor, as discussões mesquinhas sobre os problemas do dia-a-dia, procura o - fundamental da coisa. Para ti, o fundamental é a diferença cultural entre os - dois. Ainda não te livraste desse complexo. Ao falar dela, há uma admiração - latente pela sua maneira de se exprimir, uma procura das suas frases, da sua - pronúncia mesmo. No entanto, tu és mais culto que ela. Os teus estudos foram - menos avançados, mas tens uma compreensão da vida muito superior. Ela conhece - mais Física ou Química, mas é incapaz de compreender a natureza profunda da - oposição entre os dois pólos do eléctrodo e da sua ligação essencial. Tu pouco - conheces de Física, mas és capaz de a compreender melhor, porque conheceste a - dialéctica na vida. A tua acção na luta, em que estás a contribuir para - transformar a sociedade, é um facto cultural muito mais profundo que todos os - conhecimentos literários que ela tem. Vocês os dois podem completar-se, pois - têm muito para ensinar um ao outro. Mas tu fechas-te no teu complexo, na - consciência da tua incultura que, afinal, é só aparente; ela sente isso e - considera-se intelectualmente superior, daí até ao desprezo só vai um passo. És - tu que a levas a dar esse passo. - - [...] - - – Sempre achei ridículo o indivíduo que pega no Mao e passa uma noite a lê-lo, - para estabelecer o plano duma emboscada. O Mao dá lições de estratégia, não a - táctica precisa para cada momento. O indivíduo tem de ter imaginação, estudar o - terreno, e recriar a sua táctica. Posso dar-te uma orientação, mas não os - detalhes do procedimento. Há mulheres que amam a violência, que amam ser - violadas, outras preferem a violação psíquica, outras a ternura, outras a - técnica. Tens de estudar a Ondina, saber qual é o seu género e então traçar o - teu plano. Ao meter em execução o plano, tens de ser lúcido, mas, ao mesmo - tempo, apaixonado, intuitivo, para o poderes mudar se for necessário. A lucidez - não significa frieza no amor. Podes ser espontâneo e lúcido. - -### Prisioneiros - - – Parece-me que há três tipos de indivíduos perante a prisão – disse Sem Medo. - - – Há em primeiro lugar os que se conformam; são os desesperados, que se deixam - destruir, que se queixam constantemente mas que aceitam, no fundo, a desgraça. - Por isso se queixam. Formalmente, aparentemente, são os mais inconformistas, - porque gritam, protestam, choram. Mas isso afinal é uma forma de aceitação. O - inconformismo é uma atitude racional e coerente. Esses são apenas tipos sem - personalidade, para quem as lágrimas ou os gritos não passam de um meio - exterior de se crerem ainda revoltados. - - – Porreiro! – disse Teoria. – Continua. - - O Comandante olhou o Comissário, que procurava manter os olhos fechados. Uma - ruga cavou-se na testa de Sem Medo. - - – Há depois os inconformistas, que lutam para fugir, que preparam planos e - criam novos logo que aqueles falharam, que vivem em oposição directa com os - guardas, que levam pancada todo o tempo mas que se levantam em seguida. - - – E depois? - - – O terceiro tipo é o dos inconformistas serenos. Vendo que a fuga é - impossível, organizam-se, fazem agitação junto dos outros presos, arranjam - maneira de estudar, escrever, etc. Nunca se lamentam, porque sabem ser inútil. - Não tentam uma fuga individual, porque é inútil. E eles detestam os gestos - inúteis, que só desgastam a capacidade de revolta. - -### Amor - - – O amor é assim. Se se torna igual, a paixão desaparece. É preciso reavivar a - paixão constantemente. Eu não o sabia ainda, deixei-me convencer pela vida sem - histórias que levávamos. Vês a vida dum empregado de escritório em Luanda? Está - bem que tinha o trabalho clandestino, a Leli começava a interessar-se, - estudávamos juntos o marxismo. Mas sentimentalmente tínhamos parado. Chegámos à - estabilidade. A culpa foi minha que me acomodei à situação, que não me apercebi - que a rotina é o pior inimigo do amor. Mesmo na cama nos tornámos rotineiros. - - [...] - - – Os primeiros tempos da vossa separação devem ter sido duros. - - – Sim. As coisas não se passaram linearmente. Tinha crises de angústia, - misturadas a momentos de apatia. Todo o trabalho se ressentiu. À noite pensava - que ela estava nos braços do outro. Esforçava-me então por adormecer, para me - convencer de que era o mais forte, capaz de dominar todo o sentimento. - Adormecia esgotado. Por vezes tinha vontade de lhe rogar que voltasse. Mas à - sua frente mantinha um desinteresse de pedra, uma esfinge. Foi o nome que me - dei, a Esfinge. Tornou-se o meu nome de guerra, até que me deram a alcunha de - Sem Medo, nem sei porquê. A Esfinge ficava-me melhor. O Comissário viu Sem - Medo dominando o deserto, recebendo as chicotadas da areia sem mexer as - pálpebras. Tudo se passava no interior, nas convulsões da pedra, nas correntes - de ar percorrendo os túneis cavados pelo tempo, no lento borbulhar da matéria - aparentemente parada. - - – O contrário da vida é o imobilismo – disse Sem Medo. – No amor é a mesma - coisa. Se uma pessoa se mostra toda ao outro, o interesse da descoberta - desaparece. O que conta no amor é a descoberta do outro, dos seus pecadilhos, - das suas taras, dos seus vícios, das suas grandezas, os seus pontos sensíveis, - tudo o que constitui o outro. O amante que se quer fazer amar deve dosear essa - descoberta. Nem só querer tudo saber num momento, nem tudo querer revelar. Tem - de ser ao conta-gotas. E a alma humana é tão rica, tão complexa, que essa - descoberta pode levar uma vida. Conheci um tipo, um militante, que ao se juntar - a uma mulher fez uma autocrítica sincera do que era. Passou uma noite a falar. - Contou tudo tal qual se via. «Agora já me conheces, já estás prevenida.» Ao fim - de um mês, a mulher abandonou-o. E ele era o melhor tipo do mundo. O seu mal - foi aplicar à letra no amor o que aprendera no Partido sobre os benefícios da - autocrítica. - -### Moral e justiça - - – Não creio. A Direcção verá. Mas estes casos, no Movimento, implicam sempre um - castigo. Nem que seja uma suspensão. - - – Sim, a eterna moral cristã! – disse Sem Medo. - - – Moral revolucionária, camarada. - - – Deixa-te disso! Moral revolucionária, nada. Seria moral revolucionária, se - todos os casos fossem sancionados ou nenhum o fosse. Há uma série de casos - similares que se passam, toda a gente sabe, e não se faz nada. Só quando - provoca escândalo é que o Movimento se mete. Isso é moral cristã, que se - interessa pelas aparências. Aliás, penso que um caso destes não é um crime - contra o Movimento, é humano. No caso da Ondina. No do André já não, porque é - responsável. - -### Tabus - - – Ora. Que todos os homens deixam de ser estúpidos e começam a aceitar as - ideias dos outros. Que se poderá andar nu nas ruas. Que se poderá rir à - vontade, sem que ninguém se volte para ti e ponha um dedo na cabeça. Que se - faça amor quando se quiser, sem pensar nas consequências. Etc., etc. Coisas - impossíveis, como vês. - - – Pensas realmente isso? - - – Se te digo! - - Ondina sorriu. Apontou um bêbado que passava, cambaleando. - - – Também eu gostaria. No entanto, estou a apontar aquele bêbado. E na rua, - seria capaz de me virar para trás e rir dele. - - – Também eu, Ondina. Isso é que me enraivece. Queremos transformar o mundo e - somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a - nossa vontade, e a todo o momento arranjamos desculpas para reprimir os nossos - desejos. E o pior é que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, - deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um medo que - nos ficou dos tempos em que temíamos Deus, ou o pai ou o professor, é sempre o - mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente - alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes - que já se quebraram mas continuamos a transportá-las connosco, por medo de as - deitarmos fora e depois nos sentirmos nus. - - [...] - - – Estamos a falar de coisas diferentes. No aspecto sexual, por exemplo, a tua - moral por vezes impede-te de satisfazer os teus desejos? - - – Mas era isso o que eu dizia! Uma pessoa é levada a pensar nas consequências e - trava os desejos. - - – Tu? - - – Pensas então que sou um tarado sexual... - - – Não. Um libertino. - - – Nem isso. Conheci um libertino. Conheci um monte de pessoas, devia ser - escritor para as descrever. Foi em Praga, nas férias. Um verdadeiro libertino. - Mulher que lhe agradasse não lhe escapava, mesmo se fosse a sua irmã. - - – Que lhe aconteceu? - - – Nada. Não sei, deve ter continuado assim. Eu não sou um libertino. Fui - demasiado marcado pelos tabus para o poder ser. A um momento dado, pensei ser - essa a solução, fiz tudo para me criar uma filosofia libertina. Mas não - consegui, desconsegui mesmo, apareceram sempre problemas morais a estragar - tudo. - -### Guerra e jogo - - «Na Europa tive ocasião de jogar em máquinas, onde uma bolinha de metal vai - contando pontos. O jogador só tem de fazer funcionar os flippers, quando a bola - vai sair, ou encaminhar, com gestos doces, a bola para o sítio mais - conveniente. O prazer do jogo não é o de vencer. É o de se atingir o êxtase, o - esquecimento do corpo e do espírito pela concentração total na bolinha que - salta dum lado para o outro e vai somando pontos. Havia momentos em que sabia - que ia ganhar, atingia o estado de graça. Dominava de tal modo a máquina, pela - força da minha tranquilidade, que, de facto, os reflexos eram perfeitos: uma - confiança absoluta nos meus dedos que levemente tocavam os flippers, nas mãos - que orientavam, por movimentos suaves, a bolinha para o sítio desejado. Atingia - o estado de possessão da máquina, era sem dúvida um prazer sensual. - - «No jogo, o homem que se domina e ao mesmo tempo se entrega não pode ser - escravo. Escravos são os que se entregam ao jogo sem se dominarem ou o inverso: - é a dialéctica da dominação-submissão que distingue o homem feito para senhor, - o dominador, e o escravo. Também no amor. - - «Há homens que vencem no póquer, embora percam dinheiro. Têm tal domínio dos - nervos, sendo simultaneamente ousados, que os adversários são subjugados, não - têm a iniciativa, ficam à espera das suas reacções, dos seus desejos. São os - senhores que podem, numa cartada, arriscar tudo o que ganharam, só pelo prazer - de arriscar. Os adversários podem ganhar, no sentido em que saem com mais - dinheiro que o capital inicial; mas o verdadeiro vencedor foi aquele que os fez - empalidecer, apertar os lábios, roer as unhas, tremer, ter vontade de urinar, e - se arrepender num instante de jogar. O verdadeiro senhor, o conquistador, não - se aborrece por ter perdido: essa é a sua ocasião de dominar e, se de facto - impôs a sua lei, con tenta-se com a derrota. São os homens de temperamento - mesquinho que sofrem por perder. - - «Na guerra, também há os senhores, os que decidem. Não são fatalmente os - chefes, embora essas características só se possam manifestar totalmente em - situação de chefia. São os dominadores, finalmente, os mais magnânimos para os - adversários. Fazem a guerra, em parte, como quem joga à roleta: é um meio de se - confrontarem com o outro eu. São uns torturados. Lúcidos, compreendem que o - inimigo em face, tomado individualmente, é um homem como eles; mas está a - defender o lado injusto e deve ser aniquilado. A guerra revolucionária é nisso - mais dura que as clássicas. Outrora, o combatente estava convicto que o - estrangeiro que defrontava era o somatório de todos os vícios, de todas as - baixezas. Era fácil odiar pessoalmente o soldado que avançava contra ele, não o - inimigo em abstracto, mas aquele mesmo Frank, Schulz, Ahmed ou Ngonga que se - metia à sua frente. Hoje, quem é o combatente consciente que nisso acredita? Só - existe o ódio ao inimigo em abstracto, o ódio ao sistema que os indivíduos - defendem. O soldado inimigo pode mesmo estar em contradição com a causa que é - forçado a defender. O combatente revolucionário sabe disso; pode mesmo pensar - que aquele inimigo é um bom camponês ou um são operário, útil e combativo - noutras circunstâncias, mas que está aqui envenenado por preconceitos, - supercondicionado pela classe dirigente para matar. O revolucionário tem de - fazer um compromisso entre o ódio abstracto ao inimigo e a simpatia que o - inimigo-indivíduo lhe possa inspirar. - - «Por isso esta guerra é mais dura, pois mais humana (e, portanto, mais - desumana). - - «O dominador, o senhor, nunca procurará matar por matar, antes pelo contrário, - evitará matar. Ele vê a guerra como o jogo ou o amor. E seu momento de perda de - lucidez é quando o ódio abstracto se concretiza no indivíduo e avança, - raivosamente lúcido, contra os soldados que procuram impedi-lo de avançar, não - porque são inimigos, mas porque o impedem de avançar, são obstáculos que têm de - ser afastados do caminho. Nesse momento, o equilíbrio está vencido e a - necessidade psíquica – sentida físiologicamente – de fazer a acção leva ao ódio - frio e calculado, implacável. Um dominador com ódio não gesticula, não ofende; - ele poupa o esforço, os gestos, o ódio; é a sua acção, mais que os símbolos, - que exprime a sua determinação. - - «Tal gostaria de ser hoje, mas este é um herói de romance. Há os camaradas - mortos ou em perigo de morte e não consigo dominar as emoções, não consigo - atingir o êxtase sensual de dominar, arriscando friamente, lucidamente. Há o - João no meio, deixo de ser lúcido. E, mais do que nunca, Leli.» - -### Rádio - - – Já sei – gritou Sem Medo. – És o mecânico. Que fazes aqui? - - – Vim ter com vocês. Quero trabalhar no Movimento. Saí do kimbo ontem de manhã, - cheguei ao Congo sem problemas. Venho apresentar-me. - - O Comandante ficou um segundo hesitante, depois, num ímpeto, abraçou-o. - - – És bem-vindo, camarada. Como te decidiste? - - – Bem, aquela conversa que os camaradas tiveram connosco começou a - convencer-me. Realmente nós somos explorados e devemos lutar. Mas o que me - convenceu mesmo foi quando os camaradas se arriscaram tanto para me devolver o - dinheiro. Aí, sim, eu compreendi tudo. Os camaradas eram mesmo para defender o - povo. Comecei a ouvir a rádio, Angola Combatente. Aí aprendi umas coisas. - Depois falei com os meus amigos, começámos a discutir da situação e do MPLA. - Achámos que podíamos trabalhar para o Movimento mesmo lá, sem ninguém saber. - Mas os camaradas não apareciam mais lá. Então eu vim fazer contacto. -- cgit v1.2.3