From 7cda704c3345c7528d32fb2b21828dcedcb42ffb Mon Sep 17 00:00:00 2001 From: Silvio Rhatto Date: Sun, 7 Oct 2018 07:07:45 -0300 Subject: Updates books/philosophy/cidade-perversa --- books/philosophy/cidade-perversa.md | 370 ++++++++++++++++++++++++++++++++++++ 1 file changed, 370 insertions(+) diff --git a/books/philosophy/cidade-perversa.md b/books/philosophy/cidade-perversa.md index 6411cdd..c04e21f 100644 --- a/books/philosophy/cidade-perversa.md +++ b/books/philosophy/cidade-perversa.md @@ -1,10 +1,379 @@ [[!meta title="A Cidade Perversa"]] +## Sobre + +* Título: [A Cidade Perversa](https://outrapolitica.wordpress.com/2010/05/27/a-cidade-perversa-liberalismo-e-pornografia/). +* Autor: [Dany-Robert Dufour](https://fr.wikipedia.org/wiki/Dany-Robert_Dufour). + +## Impressões + * Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs. * Marquês de Sade versus Sady Baby? +## Análise + +### O loop estranho da subjetivação + +O livro segue a linha da lógica cartesiana para chegar à linha dos loops estranhos, passando, +usando, criticando e ultrapassando Lacan. Daí uma linha evolutiva do cartesianismo, para o lacanismo +e em seguida para o hofstadterismo! + +Num primeiro momento, a leitura "estourou" minha cabeça -- para usar uma expressão do próprio autor +quando explica uma transição de uma perversa-puritana do "modo neurótico" para o "modo perverso" de +operação -- me deixou [acéfalo](https://en.wikipedia.org/wiki/Ac%C3%A9phale) -- e a referência à +_Acéphale_ no livro talvez tenha passado desapercebida pelo autor e indique o próprio limite da +sua obra, afora a constante referência a dualismos como physis/nomos e natureza/cultura (leis da natureza +versus leis dos humanos) que poderiam ser dialogicamente articulados [morinianamente](/books/epistemology/metodo), +pois ele esbarrou sem querer com a própria complexidade! + +Hofstadter utiliza os loops estranhos para mostrar como símbolos, "estruturas" ou "formas" ditas "irracionais" +podem se enrolar, se emaranhar em configurações que apresentam padrões mais "inteligentes" -- ou seja, +o racional surgindo a partir do irracional --, Dufour permanece apenas no nível lógico e aí me parece +o limite de sua análise do liberalismo -- e por quê também não dizer do fascismo? -- como uma articulação +puritano-perversa, pornográfica por trazer em cena o que era até então -- na Cidade dos Homens aspirando +a ser Cidade de Deus -- obsceno. + +Utiliza o seguinte loop estranho de "enunciação e estrutura de subjetivação" a partir da sentença +"eu falo a ti a propósito dele": + + .--- Ele --. (grande Sujeito) + / \ + / \ + | .-> eu -. / + `-->| |->´ (sujeito s barrado) + \_ tu <-' + +Tal estrutura seria dada por conta da neotenia humana: uma resposta ao nosso desamparo neonatal e fundamental, +do nosso nascimento prematuro: + + 220 + + Não se é nada disso por natureza porque a natureza é aquilo que a nós, homens, + mais falta. Com efeito, nascemos prematuros. Para os que não acreditam, eis + aqui algumas provas da prematuração do homem ao nascer: paredes cardíacas não + fechadas, imaturidade pós-natal do sistema nervoso piramidal, insuficiência dos + alvéolos pulmonares, caixa craniana não fechada (o que explica a moleira), + circunvoluções cerebrais mal desenvolvidas, ausência de polegar posterior + opositor, ausência de sistema piloso, ausência de dentição de leite ao nascer — + para não falar, nos homens, da ausência extremamente lamentável de osso peniano + ao nascer, o que poderá… tornar-se mais tarde uma experiência dolorosa. O ser + humano é, portanto, um ser de nascimento prematuro, sujeito a uma longuíssima + maternagem, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, no + entanto, capaz de se reproduzir e de transmitir seus caracteres de + juvenilidade, normalmente transitórios nos outros animais. Resulta disso que + esse estranho animal, inacabado, ao contrário dos outros animais, deve + completar-se em outro lugar que não a primeira natureza, ou seja, numa segunda + natureza, geralmente chamada cultura. + + Não foi apenas a nossa época que se deu conta dessa fraqueza do homem. Tentei + demonstrar num trabalho anterior285 que existe uma grande narrativa, + percorrendo toda a civilização ocidental, baseada nesse inacabamento originário + do homem. Mais ainda, sabe-se hoje que toda a metafísica ocidental, seja ela + proveniente de Atenas ou de Jerusalém, fez do desamparo do homem ao nascer e na + primeira infância o ponto de partida da aventura humana. Acontece que essa + narrativa das origens baseia-se numa razão no real: desde o início do século + XX, os antropólogos falam, para se referir a essa prematuração, da neotenia do + homem.286 + + 221 + + É, portanto, aí que tudo começa, com um ser incapaz e incompleto, incapaz de se + virar — vou chamá-lo aqui de o baixíssimo. Freud, por sua vez, propõe aqui o + termo da Hilflosigkeit humana, que remete ao desamparo originário do homem. É + digno de nota que esse conceito cintile ao longo de toda a extensa elaboração + freudiana. É bem verdade que não se trata de um conceito-estrela como o Édipo, + como o ego/id/superego ou como o recalque, mas é um conceito de fundo, sem o + qual os outros não teriam surgido. Ele teria sucessivas definições, cada vez + mais precisas, mas nunca seria abandonado. Indica que existe apenas uma solução + para a sobrevivência do homem: que ele supra essa falta de primeira natureza + com uma segunda natureza, a cultura. A cultura é, de certa maneira, o remédio + para a Hilflosigkeit humana. O único remédio possível. Aquele que permite ao + homem sair de seu estado marcado não só por esse inacabamento originário, mas + também por sua finitude no tempo (eu não sou para sempre; um dia, isto vai + acabar) e por seu fechamento no espaço (eu não estou em toda parte, mas aqui, + numa espécie de prisão domiciliar). + + Haverá remediação se eu, ser tão mal acabado no tempo e no espaço, conseguir + supor um ser infinito em relação ao qual eu me coloque em posição de tudo + dever. Ora, supor esse ser é algo que eu posso, já que falo, e falar é fabular. + Nada, portanto, impede-me de inventar o que não existe, mas de que eu preciso + para viver. Pois se o suponho, a Ele, o Altíssimo, ou seja, o grande Sujeito, + poderei então me “sub-por” como seu sujeito — e é exatamente o que significa a + palavra “sujeito”: o subjectum em latim significa o “submisso”, ou seja, aquele + que é “posto sob”, colocado debaixo. É, portanto, necessário e suficiente que + eu conjeture um grande sujeito que supostamente tudo sabe, tudo pode e tudo vê + para que finalmente encontre o meu lugar, como sujeito desse ser. O grande + Sujeito atende então a essa definição de Aristóteles: “Ele é aquele pelo qual + tudo mais se ordena”, dizia ele na Metafísica. + + Em outras palavras, a sobrevivência do homem, animal neotênico, por isso + carente de natureza, passa pela criação de seres de sobrenatureza, vale dizer, + seres de cultura que, apesar de não existirem, revelam-se dotados de uma + poderosa eficácia simbólica. + + [...] + + Muito bem. O único problema é que um círculo remetendo indefinidamente de s a S + e de S a s corre o risco de muito rapidamente tornar-se cansativo, pois + vicioso. Impossível, com efeito, sair dele, a menos que… A menos que a praxis + (que, vale lembrar, significa “ação” entre os gregos), resultando como tal de + uma decisão, venha a provocar o engatamento temporal, forçando as coisas. Não é + possível, com efeito, ficar dando voltas por toda uma eternidade como um + hamster na estrutura circular da subjetivação. Será necessário começar por uma + das pontas. O que implica romper a circularidade e reintroduzir uma + causalidade, que pode então ter início de duas maneiras diferentes: + + — partindo de S, o grande Sujeito — será essa a escolha do crente. É uma + escolha frequente, pois tranquiliza o ser desamparado que é o homem, assim + reconfortado por se imaginar procedendo de algum deus; + + — ou partindo de s — e será essa a escolha do ateu. É uma escolha mais rara, + pois recusa o consolo tão buscado e prolonga a inquietação. Por isso é que o + ateu com frequência range — ao mesmo tempo tentando dar uma forma aceitável a + esse rangido: o humor, por exemplo. Cioran — e eis aí alguém que rangia muito + —, que sabia conferir ao seu desespero essa forma polida que vem a ser o humor, + dizia: “Se existe alguém que tudo deve a Bach, é Deus.”288 Uma forma elegante + de afirmar que Deus, em Sua própria perfeição, foi criado pelos homens… + essencialmente para acalmá-los em suas angústias. Poderíamos aqui + perguntar-nos se, em última análise, existem verdadeiros ateus. O que, de fato, + não é certo. Muito simplesmente porque a estrutura funcionará tanto melhor na + medida em que o sujeito ignorar que foi ele que inventou o grande Sujeito (ou + seu substituto). Em qualquer dos casos, ele deverá dar mostra de ignorância, e + é precisamente esse não saber que necessariamente fará dele um ser sujeito ao + inconsciente.289 + + 224 + + É evidente, contudo, que essas duas maneiras de começar são igualmente ruins, + na medida em que pretendem impor uma decisão no lugar do que é rigorosamente + impossível de decidir. Em suma, o homem é um ser beckettiano: finito, mal + acabado e, sobretudo, sempre necessariamente começando mal. Em tais condições, + cabe supor que o remédio para o desamparo humano venha a ser bem pior que o + mal. + + Esse remédio simbólico para o desamparo real do homem tem a ver com o que + Platão chamava de pharmakon: um remédio e um veneno.290 Em suma, o Outro, esse + grande Sujeito que não existe, é de grande ajuda… até que se torne extremamente + embaraçoso. + + Por isso é que estamos constantemente matando nosso salvador. Entretanto, como + o sujeito é esperto, um belo dia tomou a frente, dizendo que havia morrido por + nós — e isso se chama cristianismo. Com isso, ficou difícil matá-lo… pois ele + já está morto — e, no entanto, Nietzsche bem que tentou, e sabemos o que lhe + custou. + + 225 + + Outro traço característico dessa estrutura estranha: ela permite afirmar que, + falando estritamente, não existe sujeito. Na verdade, existe apenas um + infrassujeito (que falta a ele próprio) e um sobressujeito. Os dois, o + baixíssimo e o Altíssimo, mantêm uma relação de implicação recíproca. Se + realmente se quisesse que houvesse um sujeito, seria necessário imaginá-lo como + o que resulta da interação dessas duas instâncias. + + 226 + + Essa estrutura s/S permite, ao que me parece, dar uma nova forma, indo além da + clínica individual, ao que Freud havia denominado, num texto tão breve quanto + decisivo, um de seus últimos, divisão subjetiva (a Spaltung).291 A divisão + subjetiva é o que faz de nós seres cindidos, incapazes de jamais nos + encontrarmos, pois no exato momento em que poderíamos nos encontrar, + perdemo-nos no Outro. O psicanalista Alain Didier-Weill encontrou as palavras + mais simples e precisas para dizer essa cisão originária: “Assim que o sujeito + fala, significando-se numa fala que decide e distingue, uma parte dele, + insignificável pela fala, retira-se daquilo que foi significado e cai como que + velada.”292 + + [...] + + 229 + +Três respostas básicas seriam possíveis: do neurótico, do perverso e do psicótico: + + Dessa estrutura circular em que o um (s) supõe o Outro (S) que “sub-põe” o um, + é possível sair de três maneiras: pela neurose, pela perversão ou pela psicose. + O que retoma em novas condições a intuição de Freud, que havia distinguido três + patologias fundamentais. + +1. Neurose: "dívida simbólica contraída em relação ao Outro", lembando que "sujeito" + vem de "sujeição", de se sujeitar: + + Se a histeria constitui o protótipo da neurose, é porque o(a) histérico(a) é + aquele(a) que venera o Outro por lhe ter tudo dado e ao mesmo tempo o detesta + por tê-lo(a) posto na situação de tanto e tudo lhe dever. Ele/ela amará o Outro + detestando-o ou o detestará amando-o. É o lugar de um nó psíquico importante, + no qual constantemente se remotiva o conflito neurótico em todas as suas formas + possíveis. Por exemplo, esta, que faz as delícias do histérico: seduzir o Outro + — sob a figura de Deus, de um mestre, de um grande homem, etc. — ao mesmo tempo + escapando-lhe. + +2. Psicose: o caso-limite, "mais onerosa. Ela diz que se Deus é, então eu não sou": + + Um combate que pode assumir duas formas opostas e complementares. Uma forma + paranoica, como tal perseguida: existe um Deus que está constantemente querendo + roubar meu ser, que me espiona e me persegue. E uma forma esquizofrênica e + triunfante: Deus, na verdade, sou eu. Nos dois casos, essa potência + manifesta-se como sobrenatural, o mais das vezes através de uma voz imperiosa + que ocupa o sujeito, no sentido de tomar posse dele, de se apoderar dele. + +3. Perversão: + + Quanto à enunciação perversa, ela se esclarece nesse esquema. Ela permite + entender que o que está em jogo no grande circuito enunciativo (com o “Ele”) + vem a atuar no pequeno, de tal maneira que o “eu” ocupe, diante do “tu”, a + posição eminente que o “Ele” ocupa em relação a todo sujeito falante (“eu” e + “tu”). Em suma, o perverso coloca-se, diante de todo outro, na posição do + Outro. A definição poderá ser estranhada. Mas seria um equívoco, pois ela + encontra e confere sentido à maneira como Lacan definia o perverso: “O perverso + imagina ser o Outro para garantir seu gozo.”302 De fato, essa proposição só + pode ser realmente entendida mobilizando-se as teorias da enunciação baseadas + na análise da relação de lugar entre as três pessoas verbais: “eu” (o um), “tu” + (o outro) e “Ele” (o Outro). A perversão surge então como uma negação da grande + estrutura, compensada por um inchaço da pequena, como se essa estrutura + secundária pudesse e devesse suportar sozinha o que está em jogo na grande. + Poderíamos falar aqui de uma translação do que está em jogo na estrutura + principal para a estrutura secundária. O que, provavelmente, explica a + seriedade com que o perverso maquina suas encenações, às vezes deploráveis, + como se ele ocupasse diante de seu alter ego o lugar do Outro. + +Os modos de operação individuais variariam de acordo com a ênfase dos caminhos +do circuito de enunciação subjetiva. + +O atual turbo-neoliberalismo é sustentado por um par operativo oscilatório +neurótico-perverso. + +O caso limite da psicose não é tão útil pois raramente articula com sucesso a +produção e o consumo capitalistas. + +Resumiria o livro com o trocadilho: "Sade, Smith e Lacan: um laço realmente estranho, mas não eterno". + +### O dilema do prisioneiro + +Aqui novamente esbarramos com um limite: altruísmo está situado no lugar da dívida com +o outro (neurose, culpa) e não no abandono-de-si. Será mesmo que a única orientação +("drive") dos seres é a autopreservação? [Marcuse parece mais apropriado neste ponto +ao dar mais ênfase ao loop estranho das pulsões básicas Eros/Thanatos](/books/psychology/eros-civilization), +que podem tanto ser entendidas como criação/destruição quanto tendências oscilantes de autopreservação +ou reintegraçao/dissolução no ambiente. + +Se a opção for pela cisão physis/nomos, é preciso ter muito cuidado ao tomar +por naturais as "leis" inventadas pelos humanos, especialmente no campo dos +jogos. Pode-se entender a teoria dos jogos enquanto melhor estratégia possível +sem questionar a valoração que está por trás dela, e portanto sua +arbitráriedade. Mas entendo que um liberalismo oriundo de uma cultura +ocidental da cisão natureza/cultura, esta é a teoria que vem da cultura e quer +se fazer natural, e este querer-fazer que a naturaliza no sentido de que a +torna normal, a difunde e a impõe a tal ponto que parece imediata, se é que me entendem +dada a dificuldade de formular a ideia. + +Seria então dupla mesquinharia acreditar tanto na naturalidade (no sentido de +não ser arbitrário, não haver outra possibilidade) da teoria quando na sua +aplicação (esta não é uma crítica ao autor, mas ao liberalismo)? + +Eis o trecho: + + 212 + + A intervenção de Lacan é muito importante, pois tira a filosofia moral da + esfera da psicologia — extremamente duvidosa, do ponto de vista científico, já + que pressupõe indivíduos a priori bons (como Rousseau) ou maus (como Hobbes) na + sua essência — para transformá-la num autêntico problema lógico. E, por sinal, + se Lacan tivesse ido um pouco mais longe nesse terreno, teria podido valer-se + de suas ruminações sobre a lógica, aquelas mesmas que despertavam o seu + interesse nessa época, para colocá-la a serviço de sua reflexão sobre os + eternos impasses da ética e as possíveis superações que a reflexão + psicanalítica acaso permitiria. A coisa vai do “dilema dos prisioneiros”, que + ele havia comentado, já em 1945,270 a seu interesse pela cibernética, a partir + da década de 1950.271 + + Um caminho extremamente inovador é aberto aqui, já que enriquece a discussão + sobre a ética e a escolha das máximas (egoísta ou altruísta) com as + contribuições da teoria dos jogos.272 + + Kant abriu o caminho nesse terreno, ao considerar que a escolha das máximas + depende de um “você deve” que só pode ser incondicional, porque é lógico. Lacan + propôs a primeira articulação possível entre as duas máximas, desenvolvendo + seus aspectos lógicos. Vieram em seguida as discussões sobre a escolha das + máximas a partir de uma reflexão sobre o famoso dilema dos prisioneiros, tal + como expresso não na versão complexa de Lacan, mas numa versão simplificada, + que costuma ser enunciada da seguinte maneira: + + Suponhamos dois prisioneiros, A e B, cúmplices de um crime, detidos em celas + separadas, sem possível comunicação. O juiz propõe a cada um deles a seguinte + barganha: denunciar o outro em troca da suspensão da pena. Haveria, assim, três + possibilidades: + + 1º Ambos se denunciam. Neste caso, cada um deles será condenado a cinco anos de + prisão. + + 2º Nenhum dos dois denuncia o outro. Neste caso, cada um será condenado a dois + anos. + + 3º Apenas um dos dois denuncia o outro. Neste caso, aquele que denuncia será + libertado e outro será condenado a dez anos.273 + + Cabe lembrar que esse problema foi enunciado pela primeira vez dessa forma, na + década de 1950, por pesquisadores da RAND Corporation.274 Este problema logo + provocou inúmeras discussões científicas, tendo sido estudado de forma + sistemática na década de 1980 por Robert Axelrod, especialista americano em + ciências políticas, que introduziu uma variante suplementar, o tempo: o jogo é + repetido, de tal maneira que os participantes guardam na memória os encontros + anteriores.275 + + É esse problema, precisamente, que vamos encontrar no cerne dos estudos que + permitem avaliar a pertinência da escolha da máxima egoísta nas e pelas + sociedades liberais. Ou seja, esta máxima derivada da reviravolta da metafísica + ocidental, que aos poucos se impôs, como tentamos demonstrar, de Pascal a Sade. + Se fosse necessária uma confirmação da pertinência da orientação de nossa + investigação, poderíamos encontrá-la no fato de que precisamente essa máxima + está em discussão há trinta anos num dos mais importantes think tanks + americanos.276 + + Farei aqui como o professor Mascomo, indo diretamente aos resultados. A solução + ideal (assim considerada quando beneficia o maior número possível de + indivíduos), alcançada depois de uma série de cálculos teóricos, experiências + práticas e simulações em computador, é obtida quando o jogador adota + inicialmente a estratégia altruísta (chamada tit for tat, ou seja, + “toma-lá-dá-cá”), o que significa propô-la ao outro, para ver, sabendo que, em + seguida, deverá estar preparado para um recuo imediato a uma máxima egoísta, + que, portanto, deve estar pronta, ainda que ele não a use, necessariamente, em + função do que o outro fará. + + Aqui poderíamos nos perguntar se uma dedução transcendental extremamente + complexa seria necessária para chegar a essa posição e nela se manter na ação + prática. Creio que não. É possível chegar a essa posição instantaneamente. Em + outras palavras, essa dedução transcendental pode ser feita inconscientemente: + ela surge então como a posição espontânea que permite a regulação ideal da + relação com o outro, advertindo o sujeito, antes mesmo que ele pense a + respeito, de que não deve infligir nem se sujeitar.277 + + Assim é que a dedução transcendental, consciente ou não, revela que a máxima + altruísta deve ser completada por uma máxima egoísta — o que poderia ser dito + de outra forma: a minha máxima kantiana deve, portanto, ser completada por uma + máxima sadeana, suscetível de ser usada não como estratégia primeira, mas como + recurso. + + Lacan, portanto, tem razão. O único problema é que ele nem desconfia em que + medida pode ter razão. Não vê em que medida sua solução permite entender os + problemas contemporâneos nas sociedades liberais, cada vez mais presas da + máxima sadeana. + +### Eros versus Perversão + +No que tange a Marcuse, concordo com o autor de que "Eros e Civilização" não +assume que pode haver uma solução capitalista para o problema da mais-repressão +e que os desejo pode ser infinitamente explorado via consumo. + +Mas no meu entender isso não invalida a possibilidade de um arranjo social nos +moldes defendidos pro Marcuse. + +São duas formas possíveis de canalizar o desejo: uma aprisionadora, outra que +liberta. + ## Trechos +Compilação parcial da seleção de trechos feita do livro todo... a ser completada um dia... + ### Zanga 58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor @@ -46,6 +415,7 @@ entrada no capitalismo. 104 + Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas -- cgit v1.2.3