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diff --git a/books/vida/arte-de-viver.mdwn b/books/vida/arte-de-viver.mdwn index de2311e..4f6be78 100644 --- a/books/vida/arte-de-viver.mdwn +++ b/books/vida/arte-de-viver.mdwn @@ -489,4 +489,226 @@ Trechos reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente (compare com a construção dos sonhos). + [...] + + Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência + da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados, + ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao + inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de + si mesmo. + + [...] + + A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de + improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado + para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer + do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos + cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do + ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os + africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste + essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático + imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade + resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da + própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática + e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas” + -- 127 + + A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida + mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de + novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos + poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização + da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de + arte é a construção de uma vida apaixonante. + + -- 131 + + Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor: + + 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal; + 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa; + 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética + + Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar + nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas. + À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da + responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para + zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito. + + Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência + que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos + trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de + organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de + capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria + por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade, + representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo, + como diria Fourier). + + [...] + + Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos + geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos + cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima. + + [...] + + A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção + desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos + proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego. + Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e + programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da + existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A + organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo + controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana. + + Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que + proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas, + podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional, + Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos + diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos + e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos + em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a + proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida + pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração + magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo + a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar. + + -- 136-137 + + O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor + perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa + de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em + oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em + deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu + requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas + de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a + presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até + no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à + maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os + homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a + entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de + forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens. + Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do + julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando + quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma + taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido. + + [...] + + Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o + impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o + seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse + abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se + multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo + imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os + senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com + a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os + senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das + coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada + ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário + destruí-las? + + Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são + aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que + nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará + diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém + objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de + uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas + isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do + poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu + adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da + hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra + magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo + que lhe é oposto.” + + Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto + contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação + possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela + organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da + vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável + da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do + seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso + a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão. + Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo + que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a + outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria + abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça + demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado + sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham + os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência + insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a + sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a + sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma. + + -- 138-139 + + A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o + adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser + destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação + deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da + organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da + arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário. + + [...] + + A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de + qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva + dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de + um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou + seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o + acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa + poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E + quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já + perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava + superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo + estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu + alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a + viver segundo as leis da adaptação ao mundo. + + -- 140 + + O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de + ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente + favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores + antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que + é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma + para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz + estranhamente familiar. + + Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos + do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou + reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta + para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não + consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder, + uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes + fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do + significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que + uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da + fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e + as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da + alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável + domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor + oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior? + + [...] + + É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação + deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos, + os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos + com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para + derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão + para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim + definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm + ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento + histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão + para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate + com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas. + + -- 142 + + Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar + em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos + pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão + um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem? + + -- 143 |