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Desse caos, algum dia sairão - fórmulas capazes de atingir à queima-roupa os nosso inimigos. Até lá, que as frases - relidas aqui e ali tenham seus efeitos. A via para a simplicidade é a mais complexa de - todas e, especialmente nesse caso, era conveniente não arrancar ao lugar-comum as - múltiplas raízes que poderemos transplantar a outro terreno e cultivá-las em nosso - benefício. - - -- 8 - - A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia - de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio. - - -- 9 - - O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão - alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas - conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de - ser lamentável para uma boa organização social (mesmo se o suicida não tiver a - feliz idéia de se matar no estilo dos príncipes orientais, levando com ele - todos os seus servos: juízes, bispos, generais, policiais, psiquiatras, filósofos, - managers, especialistas e cibernéticos). - - -- 36 - - Assim que o líder do jogo se torna um chefe, o princípio hierárquico se salva, e a revolução - se detém para presidir o massacre dos revolucionários. É preciso lembrar sempre: o projeto - insurrecional só pertence às massas, o líder reforça-o, o chefe o trai. É entre o líder e o - chefe que inicialmente se desenrola a luta autêntica. - - -- 37 - - Resumindo, a descompressão nada mais é do que o controle dos antagonismos pelo poder. - A oposição de dois termos toma sentido pela introdução de um terceiro. Se só existem dois - pólos, eles se neutralizam, uma vez que cada um se define pelos valores do outro. É - impossível escolher entre eles, entra-se no domínio da tolerância e do relativismo, tão - querido à burguesia. Como é compreensível o interesse da hierarquia apostólica romana na - querela entre o maniqueísmo e o trinitarismo! - - -- 38 - - O poder aquisitivo é a licença de aquisição do poder. O velho proletariado - vendia a força de trabalho para subsistir; o seu escasso tempo livre era gasto - mais ou menos de maneira agradável em discussões, conversas, nos bares, fazendo - amor, caminhando em festas e motins. O novo proletariado vende a força de - trabalho para consumir. Quando não busca no trabalho forçado uma promoção - hierárquica, o trabalhador é convidado a comprar objetos (carro, gravata, - cultura...) que lhe atribuirão o seu lugar na escala social. - Esta é a era em que a ideologia do consumo se torna o consumo da ideologia. - A expansão cultural leste-oeste não é um acidente. De um lado, o homo - consumidor compra um litro de uísque e recebe como prêmio a mentira que o - acompanha. Do outro, o homem comunista compra ideologia e recebe como prêmio um - litro de vodca. Paradoxalmente, os regimes soviéticos e capitalistas seguem um - caminho comum, os primeiros graças à sua economia de produção, os segundos pela - sua economia de consumo. - - -- 46 - - Com as diferenças crescendo em número e se tornando menores, a distância - entre ricos e pobres diminui de fato, e a humanidade é nivelada, com as - variações de pobreza sendo as únicas variações. O ponto culminante seria a - sociedade cibernética composta de especialistas hierarquizados segundo a sua - aptidão de consumir e de fazer consumir as doses de poder necessárias ao - funcionamento de uma gigantesca máquina social da qual eles seriam ao mesmo - tempo a entrada e a saída de dados. Uma sociedade de exploradores-explorados - onde alguns escravos são mais iguais do que outros. - - -- 47 - - A história é a transformação contínua da alienação natural em alienação social, - e também, paradoxalmente, o contínuo reforço de um movimento de contestação que - irá dissolvê-la, “desalienando-a”. A luta histórica contra a alienação natural - transforma a alienação natural em alienaçao social, mas o movimento de - desalienação histórica atinge por sua vez a alienação social e denuncia a sua - magia fundamental. - - [...] - - O apodrecimento das relações humanas pela troca e pela contrapartida está - evidentemente ligado à existência da burguesia. Que a troca persista em uma - parte do mundo em que se diz que a sociedade sem classes se realizou atesta que - a sombra da burguesia continua reinar debaixo da bandeira vermelha. Enquanto - isso, entre as pessoas que vivem nos países industrializados, o prazer de dar - delimita muito claramente a fronteira entre o mundo do cálculo e o mundo da - exuberância, da festa. - - -- 49 - - Dom, troca, contrapartida e doação. - - -- 49 - - Técnica. - - -- 50 - - Desse ponto de vista, a história não passa da transformação da alienação - natural em alienação social: um processo de desalienação transformado em um - processo de alienação social, um movimento de libertação que produza novos - grilhões. Embora, no final, a vontade de emancipação humana ataque diretamente - o conjunto dos mecanismos paralisantes, ou seja, a organização social baseada - na apropriação privada. Esse é o movimento de desalienação que vai desfazer a - história e realizá-la em novos modos de vida. - - A ascensão da burguesia ao poder anuncia a vitória do homem sobre as forças - naturais. Mas, na mesma hora, a organização social hierárquica, nascida da - necessidade de luta contra a fome, a doença, o desconforto etc., perde sua - justificativa e é obrigada a endossar a responsabilidade pelo mal-estar nas - civilizações industriais. Hoje os homens já não atribuem a sua miséria à - hostilidade da natureza, mas sim, à tirania de uma forma social totalmente - inadequada, totalmente anacrônica. Destruindo o poder mágico dos senhores - feudais, a burguesia condenou a magia do poder hierárquico. O proletariado - executará a sentença. - - -- 50 - - O princípio hierárquico é o princípio mágico que resitiu à emancipação dos homens e as - suas lutas históricas pela liberdade. De agora em diante nenhuma revolução será digna - desse nome se não implicar pelo menos a eliminação radical de toda hierarquia. - - -- 51 - - Rigidamente quantificado (pelo dinheiro e depois pela quantidade de poder, por aquilo a - que poderíamos chamar “unidades sociométricas de poder”), a troca polui todas as relações - humanas, todos os sentimentos, todos os pensamentos. Onde quer que a troca domine, só - sobram coisas, um mundo de homens-objetos congelados nos organogramas do poder - cibernético: o mundo da reificação. Mas é também, paradoxalmente, a oportunidade de uma - reestruturação radical dos nossos modelos de vida e de pensamento. Um ponto zero em que - tudo pode verdadeiramente começar. - - [...] - - Ao sacrifício do senhor sucede o último estágio do sacrifício, o sacrifício do especialista. - Para consumir, o especialista faz outros consumirem de acordo com um programa - cibernético no qual a hiper-racionalidade das trocas suprimirá o sacrifício – e o homem ao - mesmo tempo! Se a troca pura regular um dia as modalidades de existência dos cidadãos- - robôs da democracia cibernética, o sacrifício deixará de existir. Para obedecer, os objetos - não têm necessidade de justificativa. O sacrifício não faz parte do programa das máquinas - assim como do seu oposto, o projeto do homem total. - - -- 52 - - Contrariamente aos interesses daqueles que controlam seu uso, a técnica tende a - desmistificar o mundo. - - [...] - - As mediações alienadas enfraquecem o homem ao tornarem-se indispensáveis. Uma - máscara social cobre os seres e objetos. No estado atual de apropriação primitiva, essa - máscara transforma aquilo que ela cobre em coisas mortas, em mercadorias. Não existe - mais natureza. Reencontrar a natureza é reinventá-la como adversário vantajoso - construindo novas relações sociais. A excrescência do equipamento material arrebenta o - casulo da velha sociedade hierárquica. - - -- 55 - - O quantitativo e o linear confundem-se. O qualitativo é plurivalente, o quantitativo, - unívoco. A vida quantificada se torna uma linha uniforme que é seguida em direção à - morte. - - -- 61 - - que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo? - Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob pretexto de me proteger? E como me - reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível - incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. Tudo se passa como se os meus - passos me precedessem, como se pensamentos e afetos seguissem os contornos de uma - paisagem mental que eles pensam criar, e que na realidade os modela. Uma força absurda – - tanto mais absurda quanto se inscreve na racionalidade do mundo e parece incontestável – - coage a saltar sem parar para atingir um solo que os meus pés nunca abandonaram. E com - esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de - mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto... - A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o - - -- 63 - - Ao saciar a sobrevivência por meio de uma alimentação artificial, a sociedade de consumo - suscita um novo apetite de viver. Onde quer que a sobrevivência esteja tão garantida quanto - o trabalho, as antigas salvaguardas transformam-se em obstáculos. Não só a luta para - sobreviver impede de viver: uma vez que se torna uma luta sem objetivos reais, ela corrói - iaté a própria sobrevivência, tornando precário o que era irrisório. A sobrevivência cresceu - tanto que, se não trocar de pele, ela nos sufocará na sua pele à medida que morre. - A proteção fornecida pelos senhores perdeu razão de ser desde que a solicitude mecânica - - [...] - - O poder já não protege, ele protege a si próprio contra todos. - - -- 65-66 - - Quais são os métodos de sedução do poder? A coação interiorizada - que assegura uma consciência tranquila baseada na mentira: o masoquismo do cidadão - honesto. Foi de fato necessário chamar de desprendimento ao que não passava de - castração, pintar com as cores da liberdade a escolha entre várias formas de servidão. - - -- 71 - - Sedução para domesticar, ordem, morte em pequenas ou grandes doses, - bloqueio da força criativa. - - -- 72 - - Quando o rebelde começa a acreditar que luta por um bem superior, o princípio - autoritário ganha impulso. Nunca faltaram razões à humanidade para renunciar ao - humano. De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um - medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida - cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte - essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma - coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra “coisa” arrastando por - toda parte o seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, abdica-se o - mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura, - pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da - doença. - - [...] - - A revolução se faz todos os dias, apesar dos especialistas da revolução e em - oposição a eles: uma revolução sem nome, como tudo aquilo que pertence à - experiência vivida. Ela prepara, na clandestinidade cotidiana dos gestos e dos - sonhos, a sua coerência explosiva. - - Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia - pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um - sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído na minha mente - enquanto durmo. - - [...] - - Escrevo por impaciência e com impaciência. Para viver sem tempo morto. O que as - outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas - precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me - salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem - total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou - menor. - - -- 74 - - Arte, vida, criatividade. - - -- 75-77 - - Do mesmo modo que a classe dominante tem os melhores motivos do mundo para - negar a existência da luta de classes, assim a história da separação não pode - deixar de se confundir com a história da dissimulação. - - -- 78 - - Excetuando as máquinas de guerra, as máquinas antigas têm origem no teatro: - gruas, roldanas, mecanismos hidráulicos eram usados como acessórios teatrais - bem antes de transformarem as relações de produção. Este fato merece ser - salientado: por mais longe que se recue, a dominação da terra e dos homens - depende sempre de técnicas invariavelmente consagradas ao serviço do trabalho e - da ilusão. - - -- 84 - - Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar - as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a - psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos - quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o - ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor - é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade - de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas - oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos - na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um - armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem- - consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os - quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a - passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de - estereótipos, é aquilo a que hoje se - - -- 85 - - Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e - assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da - pseudo-atividade. - - -- 86 - - A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na - hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os - estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e - roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2) - - A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se - identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a - escolha dos modelos de identifiicação. A identificação é um estado doentio, - mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença - mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel - representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também - oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer - substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no - domínio do lúdico(4) - - [...] - - O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver. - - -- 87 - - Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm - na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de - desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos - verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos - viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária. - E por isso cultivamos aparências. - - -- 88 - - Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os - encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se - conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova - em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de - jogo que transforma os papéis. - - -- 89 - - a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou - uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O - paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de - crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão. - Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o - paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que - ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do - qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório - climatizado dos hispitais psiquiátricos. - - Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na - qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias, - sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os - estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de - nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um - compromisso, por uma atividade prática. - - -- 90 - - Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as - sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte - desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas - contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos - tratarão disso, se lhes dermos a chance. - - [...] - - A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os - casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o - poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os - extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos - papéis ou os recusam. - - -- 91 - - Papel, Reich, couraça. - - -- 92 - - Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto - mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos. - Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que - não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos - não são um crime. - - -- 94 - - Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais - o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de - perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar - a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da - suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se - uma fase clandestina de tática, a era do jogo. - - O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as - manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de - táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os - papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos - momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria - ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa - apoderar. - - -- 99 - - Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui - três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento. - No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da - vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação - espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E, - hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver - do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um - cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se - reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo - segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de - um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de - organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o - homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do - homem pelo homem e do poder hierárquico. - - -- 102 - - Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um - paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem - justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se - expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem - mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos - prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia - individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da - mesquinhez e do pensamento pequeno. - - -- 105 - - Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a - sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver. - - -- 107 - - O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de - quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que - se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo - poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no - fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os - lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo, - zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um - cemitério. - - [...] - - Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram - uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos - específicos! - - Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a - si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua - liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que - resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à - não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem - como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que - seu preço seja tão alto quanto a liberdade. - - -- 114-115 - - Não existe ninguém, por mais alienado que seja, que não possua e não reconheça - a si próprio uma parte irredutível de criatividade, um quarto escuro protegido - contra qualquer intrusão de mentira e de coações. No dia em que a organização - social estender o seu controle sobre essa parte do homem, ela reinará apenas - sobre robôs e cadáveres. - - [...] - - Agora que a alienação do consumidor é esclarecida pela própria dialética do - consumo, que prisão eles preparam para a subversivíssima criatividade - individual? Eu já disse que a última saída dos dirigentes era transformar as - pessoas em organizadoras da própria passividade. - - -- 125 - - A espontaneidade - a espontaneidade é o modo de ser da criatividade individual. - Ela é o seu primeiro jorro, ainda imaculado, não poluído na fonte e ainda não - ameaçado de recuperação. Se nada é mais bem repartido no mundo do que a - criatividade, a espontaneidade, pelo contrário, parece ser um privilégio. Só a - possuem aqueles que por meio de uma longa resitência ao poder ganharam a - consciência de seu próprio valor como indivíduos. Nos momentos revolucionários - isso significa a maioria das pessoas. Em outros períodos, quando a revolução é - construída dia a dia sem ser vista, são mais pessoas do que pensamos. Onde quer - que subsista um raio de criatividade, a espontaneidade conserva as sua - possibilidades. - - -- 126 - - Só é espontâneo aquilo que não emana de uma coação interiorizada, mesmo - subconscientemente, e que além disso escapa ao domínio da abstração alienante, - à recuperação espetacular. Ela é mais uma conquista do que algo dado. A - reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente - (compare com a construção dos sonhos). - - [...] - - Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência - da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados, - ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao - inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de - si mesmo. - - [...] - - A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de - improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado - para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer - do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos - cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do - ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os - africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste - essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático - imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade - resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da - própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática - e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas” - - -- 127 - - A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida - mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de - novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos - poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização - da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de - arte é a construção de uma vida apaixonante. - - -- 131 - - Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor: - - 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal; - 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa; - 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética - - Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar - nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas. - À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da - responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para - zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito. - - Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência - que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos - trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de - organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de - capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria - por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade, - representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo, - como diria Fourier). - - [...] - - Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos - geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos - cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima. - - [...] - - A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção - desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos - proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego. - Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e - programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da - existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A - organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo - controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana. - - Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que - proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas, - podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional, - Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos - diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos - e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos - em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a - proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida - pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração - magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo - a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar. - - -- 136-137 - - O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor - perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa - de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em - oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em - deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu - requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas - de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a - presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até - no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à - maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os - homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a - entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de - forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens. - Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do - julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando - quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma - taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido. - - [...] - - Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o - impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o - seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse - abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se - multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo - imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os - senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com - a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os - senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das - coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada - ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário - destruí-las? - - Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são - aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que - nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará - diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém - objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de - uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas - isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do - poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu - adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da - hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra - magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo - que lhe é oposto.” - - Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto - contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação - possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela - organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da - vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável - da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do - seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso - a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão. - Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo - que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a - outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria - abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça - demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado - sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham - os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência - insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a - sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a - sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma. - - -- 138-139 - - A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o - adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser - destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação - deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da - organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da - arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário. - - [...] - - A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de - qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva - dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de - um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou - seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o - acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa - poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E - quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já - perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava - superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo - estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu - alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a - viver segundo as leis da adaptação ao mundo. - - -- 140 - - O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de - ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente - favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores - antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que - é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma - para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz - estranhamente familiar. - - Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos - do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou - reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta - para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não - consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder, - uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes - fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do - significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que - uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da - fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e - as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da - alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável - domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor - oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior? - - [...] - - É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação - deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos, - os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos - com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para - derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão - para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim - definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm - ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento - histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão - para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate - com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas. - - -- 142 - - Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar - em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos - pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão - um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem? - - -- 143 - - O espaço é um ponto na linha do tempo, na máquina que transforma o futuro em - passado. O tempo controla o espaço vivido, mas controla-o do exterior, - fazendo-o passar, tornando-o transitório. Contudo, o espaço da vida individual - não é um espaço puro, e o tempo que o arrasta não é também uma pura - temporalidade. Vale a pena examinar a questão com mais cuidado. - - Cada ponto terminal na linha do tempo é único e particular, e entretanto logo - que se acrescenta o ponto seguinte, o seu predecessor desaparece na - uniformidade da linha, digerido por um passado que já conhece outros pontos. - Impossível distingui-lo. Cada ponto portanto faz progredir a linha que o faz - desaparecer. - - [...] - - Por mais que o espaço vivido seja um universo de sonhos, desejos, de - criatividade prodigiosa, ele não passa em termos de duração de um ponto que - sucede a outro ponto correndo segundo um único princípio, o da destruição. Ele - aparece, se desenvolve e desaparece na linha anônima do passado na qual o seu - cadáver se torna matéria-prima aos lampejos da memória e aos historiadores. - - [...] - - O espaço cristalino da vida cotidiana rouba uma parcela de tempo exterior - graças à qual se cria uma pequena área de espaço-tempo unitário: é o - espaço-tempo dos momentos da criatividade, do prazer, do orgasmo. O lugar dessa - alquimia é minúsculo, mas a intensidade vivida é tal que exerce na maioria das - pessoas um fascínio sem igual. Visto pelos olhos do poder, observando do - exterior, esses momentos de paixão não passam de um ponto irrisório, um - instante drenado do futuro pelo passado. A linha do tempo objetivo nada sabe – - e nada quer saber – do presente como presença subjetiva imediata. E por sua - vez, a vida subjetiva apertada no espaço de um ponto – a minha alegria, o meu - prazer, as minhas fantasias – não gostaria de saber nada sobre o - tempo-que-escoa, o tempo linear, o tempo das coisas. Ela deseja, pelo - contrário, aprender tudo do seu presente já que afinal ela nada mais é que um - presente. - - -- 148 - - O projeto de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida passa pela - análise daquilo que o empobrece. O tempo linear só domina os homens na medida - em que lhes impede de transformar o mundo, na medida em que os coage portanto a - se adptarem. Para o poder, o inimigo número um é a criatividade individual - irradiando livremente. E a força da criatividade está no unitário. Como se - esforça o poder para quebrar a unidade do espaço-tempo vivido? Transformando a - experiência vivida em mercadoria, lançando-a no mercado do espetáculo, ao sabor - da oferta e da procura por papéis e estereótipos (foi isso que discuti nas - páginas dedicadas aos papéis, no capítulo XV). - - -- 150 - - Como distrair os homens de seu presente a não ser atraindo-os à esfera na qual o tempo - escoa? Essa tarefa cabe ao historiador. O historiador organiza o passado, fragmentado-o - conforme a linha oficial do tempo, depois arruma os acontecimentos em categorias ad hoc. - Essas categorias, de fácil uso, põem os acontecimentos passados em quarentena. Sólidos - parênteses os isolam, os contêm, os impedem de tomar vida, de ressuscitar, de rebentar de - novo nas ruas da nossa vida cotidiana. O acontecimento está, por assim dizer, congelado. É - proibido juntar-se a ele, refazê-lo completá-lo, tentar a sua superação. Aí está ele, - conservado para sempre e suspenso para a contemplação dos estetas. Uma leve mudança de - ênfase e hei-lo transposto do passado ao futuro. O futuro não é mais que historiadores se - repetindo. O futuro que eles anunciam é uma colagem de recordações, das suas - recordações. Vulgarizada pelos pensadores stalinistas, a famosa noção do sentido da - história acabou esvaziando de toda humanidade tanto o futuro quanto o passado. - - -- 151 - - Construir uma arte de viver é hoje uma reivindicação popular. É necessário - concretizar em um espaço-tempo apaixonadamente vivido as pesquisas de todo um - passado artístico que na verdade foram postas de lado de modo descuidado. - - Neste caso as recordações as quais me refiro, são recordações de feridas - mortais. Aquilo que não é terminado apodrece. O passado é erroneamente tratado - como irremediável. Ironicamente, aqueles que falam dele com um dado definitivo - não param de triturá-lo, de falsificá-lo, de arranjá-lo ao gosto do dia. Eles - agem como o pobre Winston, em 1984 de George Orwell, reescrevendo artigos de - jornais antigos que foram contraditos pela evolução dos acontecimentos. - - [...] - - Existe apenas uma forma valorosa de esquecer : aquela que apaga o passado - realizando-o. Aquela que salva da decomposição pela superação. Os fatos, por - mais longe que se situem, nunca disseram sua última palavra. Basta uma mudança - radical no presente para que desçam das estantes do museu e ganhem vida aos - nossos pés. - - -- 152 - - Construir o presente é corrigir o passado, mudar a psicogeografia do nosso - ambiente, libertar de sua ganga os sonhos e os desejos insatisfeitos, deixar as - paixões individuais harmonizarem-se no coletivo. O intervalo de tempo que - separa os revoltados de 1525 dos rebeldes muletistas, Spartakus de Pancho Villa - só pode ser transposto pela minha vontade de viver. - - Esperar por amanhãs festivos é o que impossibilita as nossas festas de hoje. O - futuro é pior que o oceano: ele nada contém. Planejamento, prospecção, plano a - longo prazo: é o mesmo que especular sobre o teto da casa quando o primeiro - andar não existe mais. E contudo se construíres bem o presente o resto virá por - consequência. - - [...] - - Na zona da criação verdadeira o tempo se dilata. No inautêntico, o tempo se - acelera. - - -- 153 - - A tarefa é sempre resolver as contradições do presente, não parar no meio do - caminho, não se deixar distrair, tomar o caminho da superação. Essa tarefa é - coletiva, de paixão, de jogo (a eternidade é o mundo do jogo, diz Boehme). Por - mais pobre que seja o presente sempre contém a verdadeira riqueza, a da - construção possível. Esse é o poema interrompido que me enche de alegria. - - -- 153-154 - - A paixão de criar é a base do projeto de realização (2), a paixão do amor é a - base do projeto de comunicação (4), a paixão do jogo é a base do projeto de - participação (6). Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade - repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença atualmente observável - na maioria das pessoas de uma mesma vontade de construir uma vida apaixonante - (3). O erotismo é a coerência espontânea que dá unidade prática à tentativa de - enriquecer a experiência vivida. ( 5) - - [...] - - A construção da vida cotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional - e do passional. O mistério deliberadamente tecido desde sempre a respeito da - vida tem como principal objetivo dissimular a trivialidade da sobrevivência. De - fato, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. O - fascínio que a promessa de uma vida rica e multidimensional exerce sobre cada - indíviduo adquire, necessariamente, o aspecto de um projeto submetido no todo - ou em parte ao poder social encarregado de impedi-lo. Assim como o governo dos - homens recorre essencialmente a um tríplice modo de opressão – a coação, a - mediação alienante e a sedução mágica – também a vontade de viver encontra - força e coerência na unidade de três projetos indissociáveis : a realização, a - comunicação, a participação. - - Em uma história dos homens que não se reduzisse à história da sobrevivência, - sem por outro lado se dissociar dela, a dialética desse triplo projeto, aliada - à dialética das forças produtivas explica a maioria dos comportamentos. Não há - motim ou revolução que não revele uma busca apaixonada por uma vida exuberante, - por uma transparência das relações humanas e por um modo coletivo de - transformação do mundo. De fato, três paixões fundamentais parecem animar a - evolução histórica, paixões que são para a vida aquilo que a necessidade de - alimento e proteção são para a sobrevivência. A paixão da criação, a paixão do - amor e a paixão do jogo interagem com a necessidade de alimento e de proteção, - tal como a vontade de viver interfere continuamente na necessidade de - sobreviver. - - -- 155 - - A mania cartesiana de fragmentar, e de progredir de forma gradual, produz - necessariamente uma realidade coxa e incompleta. Os exércitos da Ordem só - recrutam mutilados. - - -- 156 - - Mostrei de que maneira a organização social hierárquica constrói o mundo - destruindo os homens; de que modo o aperfeiçoamento do seu mecanismo e das suas - redes a fez funcionar como um computador gigante cujos programadores são também - programados; de que modo, enfim, o mais frio dos monstros frios encontra a sua - realização no projeto do estado cibernético. - - Nessas condições a luta pelo pão de cada dia, o combate contra o desconforto, a - busca de uma estabilidade de emprego e de uma segurança material são, na frente - social, igualmente expedições ofensivas que tomam lenta mas seguramente o - aspecto de ações de retaguarda (mas não se deve subestimar a importância - delas). - - Apesar de falsos compromissos e de atividades ilusórias, uma energia criadora - continuamente estimulada não é absorvida mais depressa suficientemente sob a - ditadura do consumo. [...] O que acontecerá a essa exuberância repentinamente - disponível, a esse excesso de robustez e de virilidade que nem as coações nem a - mentira conseguiram verdadeiramente desgastar? - - Não recuperada pelo consumo artístico e cultural – pelo espetáculo ideológico – - a criatividade volta-se espontaneamente contra as condições e as garantias de - sobrevivência. Os rebeldes não têm nada a perder a não ser sua sobrevivência. - Contudo, podem perdê-la de dois modos : perdendo a vida ou construindo-a. Já - que a sobrevivência é uma espécie de morte lenta, existe uma tentação, não - desprovida de sentimentos genuínos, de acelerar o movimento e morrer mais - depressa como pisar fundo no acelerador de um carro de corrida. “Vive-se” - então negativamente a negação da sobrevivência. Ou pelo contrário, as pessoas - podem se esforçar por sobreviver como anti-sobreviventes concentrando sua - energia no enriquecimento da vida cotidiana. Negam a sobrevivência - incorporando-a em uma atividade lúdica construtiva. Essas duas soluções - promovem a tendência unitária e contraditória da dialética da decomposição e da - superação. - - -- 157 - - Nietzsche. - - -- 158 - - O fervor dos soldados rasos faz a disciplina dos exércitos: a única coisa que a - cachorrada policial aprende é a hora de morder e a hora de rastejar. - - [...] - - Se a violência inerente aos grupos de jovens delinquentes deixasse de se - dissipar em ações espetaculares e tornar-se insurrecional, provocaria sem - dúvida uma reação em cadeia, uma onda de choque qualitativa. [...] Se os - blouson noirs atingiram uma consciência revolucionária pela simples compreensão - daquilo que já são e pela simples exigência de querer ser mais, é provável que - determinem o epicentro da inversão de perspectiva. Federar os seus grupos seria - o ato que simultaneamente manifestaria e permitiria essa consciência. - - -- 159 - - Ninguém se desenvolve livremente sem espalhar a liberdade no mundo. - - -- 163 - - Os especialistas da comunicação organizam a mentira em proveito dos senhores de - cadáveres. - - [...] - - - quanto mais me desligo do objeto do meu desejo, e quanto mais força objetiva - dou ao objeto do meu desejo, mais o meu desejo se torna despreocupado em - relação ao seu objeto; - - - quanto mais me desligo do meu desejo como objeto e mais força objetiva dou ao - objeto do meu desejo, mais o meu desejo encontra sua razão de ser no ser - amado. - - -- 165 - - A verdadeira escolha é entre a sedução espetacular – a conversa fiada – e a - sedução pelo qualitativo – a pessoa que é sedutora porque não se preocupa em - seduzir. - - -- 166 - - O prazer é o princípio de unificação. O amor é a paixão pela unidade em um - momento comum. A amizade é a paixão pela unidade em um projeto comum. - - -- 167 - - Sem predizer os detalhes de uma sociedade em que a organização das relações - humanas esteja aberta sem reservas à paixão do jogo, podemos no entanto prever - que ela apresentará as seguintes características: - - - recusa de chefes e de qualquer hierarquia - - recusa de sacrifício - - recusa de papéis - - liberdade de realização autêntica - - transparência das relações sociais - - -- 170 - - São, evidentemente, grupos numericamente pequenos, as micrissociedades, que - apresentam as melhores condições de experimentação. Nelas, o jogo regulará - soberanamente os mecanismos da vida em comum, a harmonização dos caprichos, dos - desejos das paixões. - - [...] - - O que aconteceria então se as pessoas começassem a brincar com os papéis da - vida real? - - -- 171 - - Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou essa pessoa se - arruína ou arruína o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um - especialista em jogo coletivo. - - [...] - - Qual é o melhor provocador? O líder do jogo que se torna dirigente. - - [...] - - Diferentemente do provocador, o traidor aparece espontaneamente em um grupo - revolucionário. Ele surge sempre que a paixão do jogo desaparece e junto com - ela o projeto de participação real. O traidor é um homem que não encontrando - como se realizar autenticamente por meio do modo de participação que lhe é - proposto, decide jogar contra essa participação não para corrigi-la mas para - destrui-la. traidor é a doença senil dos grupos revolucinarios. - - [...] - - Um exército eficientemente hierarquizado pode ganhar uma guerra, mas não uma - revolução. Uma horda indisciplinada não consegue a vitória nem na guerra, nem - na revolução. O problema é organizar sem hierarquizar, ou em outras palavras, - procurar que o líder do jogo não se torne um chefe. O espírito lúdico é a - melhor garantia contra a esclerose autoritária. Nada resiste a criatividade - armada. Sabemos que as tropas de Villa e de Makhno derrotaram os mais - aguerridos batalhões de exército. - - -- 172 - - A organização hierárquica e a completa falta de disciplina são ambas ineficientes. - - [...] - - Como manter a disciplina necessária ao combate numa tropa que se recusa - obedecer servilmente a um chefe? Como evitar a falta de coesão? Na maioria das - vezes, os exércitos revolucionários sucumbem ao mal da submissão a uma causa ou - a busca inconsequente do prazer. - - [...] - - A melhor tática forma uma só unidade com o cálculo hedonista. A vontade de - viver, brutal, desenfreada é para o combatente a mais mortífera arma secreta. - Essa arma volta-se contra aqueles que a ameaçam: para defender a pele, o - soldado tem todo o interesse em atirar nos superiores. - - -- 173 - - Quando uma canalização de água arrebentou no laboratório de Pavlov, nenhum dos - cães que sobreviveram à inundação conservou o menor traço do seu longo - condicionamento. O maremoto das grandes transformações sociais teria menos - efeito sobre os homens do que uma inundação sobre cães? - - -- 178 - - Aqueles que se aproximam da revolução afastando-se de si mesmos – como todos os - militantes fazem – se aproximam de costas para trás às avessas. - - -- 180 |