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+[[!meta title="O Processo civilizador - Volume 1"]]
+
+## Índice
+
+* Processo civiliza-DOR.
+* Memória, autocontrole, adestramento, custo da civilização para os indivíduos, vide introdução.
+* Controle social, "restrições ao jogo de emoções".
+* O Uso da Faca à Mesa, Do Uso do Garfo à Mesa: ótima dissertação.
+* Hilário: "Mudanças de Atitude em Relação a Funções Corporais", sobre urinar, cagar, peidar publicamente, etc.
+* [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg)
+ (Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))
+ e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/).
+* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta,
+ conceito explanado por Gilbert Ryle em seu livro The Concept of Mind (1949)).
+
+## Excertos
+
+### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro
+
+ Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi
+ muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a
+ “civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro),
+ prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que
+ tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana —
+ nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este
+ lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a
+ Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem
+ como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim
+ deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche.
+
+ Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste
+ em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou
+ mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é
+ um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um
+ processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal
+ interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele
+ constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o
+ passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna
+ como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que
+ prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto
+ pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor.
+ Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou
+ esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo
+ lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.*
+
+ É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se
+ civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em
+ mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai
+ pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à
+ luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas,
+ sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da
+ cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria
+ civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade.
+
+ Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que
+ a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão
+ do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse,
+ Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à
+ ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento
+ das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir,
+ e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora.
+
+ [...]
+
+ Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao
+ contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um
+ “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora
+ seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado
+ à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de
+ nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida
+ melhor, ou uma cura.
+
+ [...]
+
+ O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe
+ um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que
+ fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na
+ escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma
+ medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os
+ historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a
+ medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou
+ “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa
+ a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade
+ que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível,
+ menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu
+ ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um
+ caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por
+ mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos,
+ vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval.
+
+### Notas
+
+Do Capítulo I:
+
+ Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as
+ culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem,
+ decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas,
+ crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem,
+ como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta
+ de Newton.”
+
+### Kultur e Zivilization
+
+ O conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível
+ da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos
+ científicos, às ideias religiosas e aos costumes.
+
+ [...]
+
+ Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilisation, significa algo de fato
+ útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, compreendendo
+ apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana.
+ A palavra pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
+ expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser, é
+ Kultur.
+
+ [...]
+
+ O que se manifesta nesse conceito de Kultur, na antítese entre profundeza e
+ superficialidade, e em muitos conceitos correlatos é, acima de tudo, a
+ autoimagem do estrato intelectual de classe média.
+
+### Vanguarda
+
+ Conforme dito acima, o movimento literário da segunda metade do século XVIII
+ não tem caráter político, embora, no sentido o mais amplo possível, constitua
+ manifestação de um movimento social, uma transformação da sociedade. Para
+ sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão.
+ Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que
+ descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na
+ mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país,
+ pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente
+ membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período
+ maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite
+ em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia
+ cortesã.
+
+ Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os
+ ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação
+ solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No
+ Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada
+ geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca.
+
+ [...]
+
+ E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde,
+ andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social.
+ Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres
+ murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde,
+ um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao
+ ver um burguês entre seus membros.
+
+ “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo
+ aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim
+ de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto
+ que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes
+ guardadores de porcos.”
+
+ Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas
+ formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em
+ livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste
+ referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma
+ situação social muito específica.
+
+ No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre
+ as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de
+ dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão
+ bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe,
+ quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente
+ como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência
+ de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer
+ fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes
+ médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia
+ pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que
+ a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.
+
+ Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora
+ ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela
+ cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se
+ conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de
+ título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt.
+
+ O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu
+ avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais
+ semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração
+ de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich
+ August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento.
+
+ [...]
+
+ De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as
+ paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior
+ aristocrática na Alemanha.
+
+ [...]
+
+ A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores,
+ é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII.
+ A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período.
+ Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que
+ flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na
+ erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe
+ oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a
+ ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da
+ sociedade onde se integram, são interesses marginais.
+ O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos
+ e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma
+ política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima
+ a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que
+ fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da
+ política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein
+ Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião,
+ arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung)
+ do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade.
+
+ [...]
+
+ Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual
+ alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe
+ com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas
+ com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo,
+ descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20
+ anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio
+ de 1827):
+
+ Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da
+ Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto
+ porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos
+ chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo
+ país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em
+ Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que
+ é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que
+ isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e
+ fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse
+ viajado um ano inteiro em meu caminho solitário.
+
+ Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o
+ reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e
+ rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor
+ de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode
+ ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se
+ transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não
+ pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX,
+ onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot,
+ essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de
+ todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se
+ desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa
+ no seu 24o ano de vida.
+
+ [...]
+
+ Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além
+ disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais
+ importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que
+ essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
+ ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe
+ média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento.
+
+### Civilização como máquina automática em constante reforma
+
+ No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância
+ de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo.
+ Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a
+ indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no
+ despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a
+ decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um
+ ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela
+ parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico,
+ em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a
+ concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo
+ inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política
+ reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de
+ capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de
+ uma maneira mais esclarecida e racional do que até então.
+
+ [...]
+
+ A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a
+ todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A
+ verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa
+ civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do
+ governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa
+ florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa
+ de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação
+ do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”,
+ que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das
+ crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma
+ permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado
+ de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou
+ conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente,
+ desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo
+ governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica.
+
+ [...]
+
+ Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um
+ conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da
+ Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des
+ Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem
+ uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor
+ variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30
+
+ No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra
+ civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com
+ frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no
+ caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a
+ civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes
+ estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana
+ não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se
+ completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do
+ conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de
+ nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa
+ moral.”32
+
+ O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente
+ crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e
+ da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa
+ “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se
+ expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários,
+ intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do
+ medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte,
+ em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a
+ “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela
+ nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é,
+ reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser
+ designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão
+ individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela
+ sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era
+ encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente.
+ A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a
+ civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O
+ processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda
+ não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um
+ lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a
+ barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara
+ sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité.
+
+ Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do
+ movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um
+ estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto
+ no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar
+ ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada
+ ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
+ moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos
+ complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos
+ membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário
+ para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a
+ Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
+ população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas
+ condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à
+ burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este
+ processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação
+ interna do país pelos reis.
+
+### Ruderia
+
+ Erasmo fala, por exemplo, da maneira como as pessoas olham.
+
+ [...]
+
+ A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais — este comportamento
+ “externo” de que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro.
+ Erasmo sabe disso e, vez por outra, o declara explicitamente: “Embora este
+ decoro corporal externo proceda de uma mente bem-constituída não obstante
+ descobrimos às vezes que, por falta de instrução, essa graça falta em homens
+ excelentes e cultos.” Não deve haver meleca nas narinas, diz ele mais adiante.
+ O camponês enxuga o nariz no boné ou no casaco e o fabricante de salsichas no
+ braço ou no cotovelo. Ninguém demonstra decoro usando a mão e, em seguida,
+ enxugando-a na roupa. É mais decente pegar o catarro em um pano,
+ preferivelmente se afastando dos circunstantes. Se, quando o indivíduo se assoa
+ com dois dedos, alguma coisa cai no chão, ele deve pisá-la imediatamente com o
+ pé. O mesmo se aplica ao escarro.
+
+ Com o mesmo infinito cuidado e naturalidade com que essas coisas são ditas — a
+ mera menção das quais choca o homem “civilizado” de um estágio posterior, mas
+ de diferente formação afetiva — somos ensinados a como sentar ou cumprimentar
+ alguém. São descritos gestos que se tornaram estranhos para nós, como, por
+ exemplo, ficar de pé sobre uma perna só. E bem que caberia pensar que muitos
+ dos movimentos estranhos de caminhantes e dançarinos que vemos em pinturas ou
+ estátuas medievais não representam apenas o “jeito” do pintor ou escultor, mas
+ preservam também gestos e movimentos reais que se tornaram estranhos para nós,
+ materializações de uma estrutura mental e emocional diferente.
+
+ [...]
+
+ Conforme já mencionado, os pratos são também raros. Quadros mostrando cenas de
+ mesa dessa época ou anterior sempre retratam o mesmo espetáculo, estranho para
+ nós, que é indicado no tratado de Erasmo. A mesa é às vezes forrada com ricos
+ tecidos, às vezes não, mas sempre são poucas as coisas que nela há: recipientes
+ para beber, saleiro, facas, colheres, e só. Às vezes, vemos fatias de pão, as
+ quadrae, que em francês são chamadas de tranchoir ou tailloir. Todos, do rei e
+ rainha ao camponês e sua mulher, comem com as mãos. Na classe alta há maneiras
+ mais refinadas de fazer isso, Deve-se lavar as mãos antes de uma refeição, diz
+ Erasmo. Mas não há ainda sabonete para esse fim. Geralmente, o conviva estende
+ as mãos e o pajem derrama água sobre elas. A água é às vezes levemente
+ perfumada com camomila ou rosmaninho.5 Na boa sociedade, ninguém põe ambas as
+ mãos na travessa. É mais refinado usar apenas três dedos de uma mão. Este é um
+ dos sinais de distinção que separa a classe alta da baixa.
+
+ Os dedos ficam engordurados. “Digitos unctos vel ore praelingere vel ad tunicam
+ extergere… incivile est”, diz Erasmo. Não é polido lambê-los ou enxugá-los no
+ casaco. Frequentemente se oferece aos outros o copo ou todos bebem na caneca
+ comum. Mas Erasmo adverte: “Enxugue a boca antes.” Você talvez queira oferecer
+ a alguém de quem gosta a carne que está comendo. “Evite isso”, diz Erasmo. “Não
+ é muito decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada.” E acrescenta:
+ “Mergulhar no molho o pão que mordeu é comportar-se como um camponês e
+ demonstra pouca elegância retirar da boca a comida mastigada e recolocá-la na
+ quadra. Se não consegue engolir o alimento, vire-se discretamente e cuspa-o em
+ algum lugar.”
+
+ [...]
+
+ Diversoria trata das diferenças entre as maneiras observadas em estalagens
+ alemãs e francesas. Descreve, por exemplo, o interior de uma estalagem alemã:
+ cerca de 80 ou 90 pessoas estão sentadas, salientando o autor que não são
+ apenas pessoas comuns, mas também homens ricos, nobres, homens, mulheres, e
+ crianças, todos juntos. E cada um está fazendo o que julga necessário. Um lava
+ as roupas e pendura as peças molhadas em cima do forno. Outro lava as mãos. Mas
+ a tigela é tão limpa, diz o autor, que a pessoa precisa de outra para se limpar
+ da água… É forte o cheiro de alho e outros odores desagradáveis. Pessoas
+ escarram por toda parte. Alguém está limpando as botas em cima da mesa. Em
+ seguida, a refeição é trazida. Todos molham o pão na travessa, mordem, e
+ molham-no novamente. O lugar é sujo e ruim o vinho. Se alguém pede vinho
+ melhor, o estalajadeiro responde: já hospedei muitos nobres e condes. Se o
+ vinho não lhe serve, procure outras acomodações.
+
+ [...]
+
+ Com a mesma simplicidade e clareza com que ele e Della Casa discutem questões,
+ tais como maior tato e decoro, Erasmo diz também: não se mova para a frente e
+ para trás na cadeira. Quem faz isso “speciem habet subinde ventris flatum
+ emittentis ant emittere conantis” (dá a impressão de constantemente soltar ou
+ tentar soltar ventosidades intestinais).
+
+ [...]
+
+ É contra o bom-tom segurar a faca ou a colher com toda mão, como se fosse
+ um porrete: segure-as sempre com os dedos.
+
+### Conduta
+
+ A tendência cada vez maior das pessoas de se observarem e aos demais é um dos
+ sinais de que toda a questão do comportamento estava, nessa ocasião, assumindo
+ um novo caráter: as pessoas se moldavam às outras mais deliberadamente do que
+ na Idade Média.
+
+ Dizia-se a elas: façam isto, não façam aquilo. Mas de modo geral muita coisa
+ era tolerada. Durante séculos, aproximadamente as mesmas regras, elementares
+ segundo nossos padrões, foram repetidas, obviamente sem criar hábitos firmes.
+ Neste momento, a situação muda. Aumenta a coação exercida por uma pessoa sobre
+ a outra e a exigência de “bom comportamento” é colocada mais enfaticamente.
+ Todos os problemas ligados a comportamento assumem nova importância. O fato de
+ que Erasmo tenha reunido em um trabalho em prosa regras de conduta que haviam
+ sido transmitidas principalmente em versos mnemônicos ou espalhadas em tratados
+ sobre outros assuntos, e que tenha pela primeira vez dedicado um livro inteiro
+ à questão do comportamento em sociedade, e não apenas à mesa, é um claro sinal
+ da crescente importância do tema, como também o foi o sucesso do livro.35 E o
+ aparecimento de trabalhos semelhantes, como o Cortesão, de Castiglione, ou o
+ Galateo, de Della Casa, para citar apenas os mais conhecidos, aponta na mesma
+ direção. Os processos sociais subjacentes já foram indicados e serão discutidos
+ adiante em mais detalhes: os velhos laços sociais estão, se não quebrados, pelo
+ menos muito frouxos e em processo de transformação. Indivíduos de diferentes
+ origens sociais são reunidos de cambulhada. Acelera-se a circulação social de
+ grupos e indivíduos que sobem e descem na sociedade.
+
+ Em seguida, lentamente, durante o século XVI, mais cedo aqui, mais tarde ali e
+ em quase toda parte com numerosos reveses até bem dentro do século XVII, uma
+ hierarquia social mais rígida começa a se firmar mais uma vez e, de elementos
+ de origens sociais diversas, forma-se uma nova classe superior, uma nova
+ aristocracia. Exatamente por esta razão, a questão de bom comportamento
+ uniforme torna-se cada vez mais candente, especialmente porque a estrutura
+ alterada da nova classe alta expõe cada indivíduo de seus membros, em uma
+ extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do controle social. E é
+ neste contexto que surgem os trabalhos de Erasmo. Castiglione, Della Casa e
+ outros autores sobre as boas maneiras. Forçadas a viver de uma nova maneira em
+ sociedade, as pessoas tornam-se mais sensíveis às pressões das outras. Não
+ bruscamente, mas bem devagar, o código do comportamento torna-se mais rigoroso
+ e aumenta o grau de consideração esperado dos demais. O senso do que fazer e
+ não fazer para não ofender ou chocar os outros torna-se mais sutil e, em
+ conjunto com as novas relações de poder, o imperativo social de não ofender os
+ semelhantes torna-se mais estrito, em comparação com a fase precedente. As
+ regras de courtoisie prescreviam também “Nada diga que possa provocar conflito
+ ou irritar os outros”: Non dicas verbum cuiquam quot ei sit acerbum.36
+
+ [...]
+
+ A regra de não estalar os lábios quando se come é também encontrada com
+ frequência em instruções medievais. Sua ocorrência no início do livro, porém,
+ mostra claramente o que mudou. Demonstra não só quanta importância é nesse
+ momento atribuída ao “bom comportamento”, mas, acima de tudo, como aumentou a
+ pressão que as pessoas exercem reciprocamente umas sobre as outras. Torna-se
+ imediatamente claro que esta maneira polida, extremamente gentil e
+ relativamente atenciosa de corrigir alguém, sobretudo quando exercida por um
+ superior, é um meio muito mais forte de controle social, muito mais eficaz para
+ inculcar hábitos duradouros do que o insulto, a zombaria ou ameaça de violência
+ física.
+
+ Nos diversos países formam-se sociedades pacificadas. O velho código de
+ comportamento é transformado, mas apenas de maneira muito gradual. O controle
+ social, no entanto, torna-se mais imperativo. E, acima de tudo, lentamente muda
+ a natureza e o mecanismo do controle das emoções. Na Idade Média, o padrão de
+ boas e más maneiras, a despeito de todas as disparidades regionais e sociais,
+ evidentemente não mudou de qualquer forma decisiva. Repetidamente, ao longo dos
+ séculos, as mesmas boas e más maneiras são mencionadas. O código social só
+ conseguiu consolidar hábitos duradouros numa quantidade limitada de pessoas.
+ Nesse momento, com a transformação estrutural da sociedade, com o novo modelo
+ de relações humanas, ocorre, devagar, uma mudança: aumenta a compulsão de
+ policiar o próprio comportamento. Em conjunto com isto é posto em movimento o
+ modelo de comportamento.
+
+ [...]
+
+ 8. Não é tarefa das mais fáceis tornar esse movimento bem visível, sobretudo
+ porque ele ocorre com grande lentidão — em passos bem pequenos, por assim dizer
+ — e porque nele acontecem também múltiplas flutuações, seguindo curvas mais
+ curtas ou mais longas. É evidente que não basta estudar isoladamente cada única
+ fase a qual esta ou aquela declaração sobre costumes e maneiras se refere.
+ Temos que tentar enfocar o próprio movimento, ou pelo menos um grande segmento
+ dele, como um todo, como se acelerado. Imagens devem ser postas juntas em uma
+ série, a fim de nos proporcionar uma visão geral, de um aspecto particular, do
+ processo que se desenrola: a transformação gradual de comportamento e emoções,
+ o patamar, que se alarga, da aversão.
+
+ [...]
+
+ o movimento deve ser estudado em toda a sua polifonia de muitas camadas, não
+ como uma linha, mas como uma espécie de fuga, com uma sucessão de
+ movimentos-motifs semelhantes, em níveis diferentes.
+
+ [...]
+
+ Cabe à pessoa de mais alta posição no grupo desdobrar primeiro seu guardanapo e
+ os demais devem esperar até que ele o faça, antes de abrirem os seus. Quando as
+ pessoas são aproximadamente iguais, todas devem desdobrá-los juntas sem
+ cerimônia. [N.B. Com a “democratização” da sociedade e da família isto se
+ tornou a regra. A estrutura social, neste caso ainda do tipo
+ hierárquico-aristocrático, reflete-se na mais elementar das relações humanas.]É
+ errado usar o guardanapo para enxugar o rosto, e mais ainda limpar os dentes
+ com ele, e seria uma das mais graves infrações da civilidade usá-lo para se
+ assoar… O emprego que pode e deve dar ao guardanapo é o de enxugar a boca,
+ lábios, e dedos quando estiverem engordurados, limpar a faca antes de cortar o
+ pão e fazer o mesmo com a colher e o garfo depois de usá-los. [N.B. Este é um
+ dos muitos exemplos do extraordinário controle do comportamento concretizados
+ em nossos hábitos à mesa. O emprego de cada utensílio é limitado e definido por
+ grande número de regras bem precisas. Nenhuma delas é evidente por si mesma,
+ como pareceram a gerações posteriores. Seu uso foi desenvolvido aos poucos em
+ conjunto com a estrutura e mudanças nas relações humanas.]
+
+### Dinâmica
+
+ A proibição não é nem de longe tão autoevidente como hoje. Vemos como, aos
+ poucos, transforma-se em um hábito internalizado, em parte do “autocontrole”.
+
+ As mudanças no padrão são muito instrutivas (Exemplo K, abaixo). Em alguns
+ aspectos são muito extensas. A diferença já se constata no que não mais precisa
+ ser dito. Muitos capítulos tornam-se menores. Muitas “más maneiras” antes
+ discutidas em detalhe merecem apenas uma referência de passagem. O mesmo se
+ aplica a numerosas funções corporais anteriormente comentadas em grande
+ extensão e minúcia. O tom é em geral menos suave e, não raro, muito mais duro
+ do que na primeira versão.
+
+ [...]
+
+ Ouvimos pessoas de diferentes épocas falando mais ou menos sobre o mesmo
+ assunto. Desta maneira, as mudanças se tornaram mais claras do que se as
+ tivéssemos descrito em nossas próprias palavras. Pelo menos do século XVI em
+ diante, as injunções e proibições pelas quais é modelado o indivíduo (de
+ conformidade com o padrão observado na sociedade) estão em movimento
+ ininterrupto. Este movimento, por certo, não é perfeitamente retilíneo, mas,
+ através de todas as suas flutuações e curvas individuais, uma tendência global
+ clara é apesar de tudo perceptível, se estas vozes dos séculos passados são
+ ouvidas em conjunto.
+
+ Os tratados do século XVI sobre as boas maneiras são obra da nova aristocracia
+ de corte, que está se aglutinando aos poucos a partir de elementos de várias
+ origens sociais. Com ela surge um diferente código de comportamento.
+
+ De Courtin, na segunda metade do século XVII, fala a partir de uma sociedade de
+ corte que é a mais plenamente consolidada — a da corte de Luís XIV. E se dirige
+ principalmente a pessoas de categoria, pessoas que não vivem diretamente na
+ corte, mas que desejam conhecer bem as maneiras e costumes que nela têm curso.
+
+ Afirma ele no prefácio: “Este tratado não se destina à impressão, mas apenas a
+ atender ao cavalheiro de província que solicitou ao autor, como amigo
+ particular seu, que ministrasse alguns preceitos de civilidade ao seu filho,
+ que ele tencionava enviar à corte quando completasse seus estudos… Ele (o
+ autor) empreendeu este trabalho apenas para conhecimento de gentes
+ bem-nascidas; apenas a elas é dirigido; e particularmente à juventude, que
+ poderá encontrar alguma utilidade nestes pequenos conselhos, já que nem todos
+ têm a oportunidade nem dispõem de meios para virem à corte, em Paris, aprender
+ os refinamentos da polidez.”
+
+ Pessoas que vivem ou fazem parte do círculo que dá exemplo não precisam de
+ livros para saber como “alguém” deve se comportar. Isto é óbvio. Por isso é
+ importante descobrir com que intenções e para que público esses preceitos são
+ escritos e publicados — preceitos que originariamente são o segredo distintivo
+ dos fechados círculos da aristocracia de corte.
+
+Escalada das boas maneiras como forma de manutenção da distinção social:
+
+ O público visado é muito claro. Enfatiza-se que os conselhos são apenas para as
+ honnêtes gens, isto é, de modo geral, gente da classe alta. Em primeiro lugar,
+ o livro atende à necessidade da nobreza provinciana de se informar sobre o
+ comportamento na corte e, além disso, à de estrangeiros ilustres. Mas pode-se
+ supor que o sucesso apreciável deste livro resultou, entre outras coisas, do
+ interesse despertado nos principais estratos burgueses. Há muito material que
+ demonstra como, nesse período, os costumes, comportamento e modas da corte
+ espraiavam-se ininterruptamente pelas classes médias altas, onde eram imitados
+ e mais ou menos alterados de acordo com as diferentes situações sociais. Perdem
+ assim, dessa maneira e até certo ponto, seu caráter como meio de identificação
+ da classe alta. São, de certa forma, desvalorizados. Este fato obriga os que
+ estão acima a se esmerarem em mais refinamentos e aprimoramento da conduta. E é
+ desse mecanismo o desenvolvimento de costumes de corte, sua difusão para baixo,
+ sua leve deformação social, sua desvalorização como sinais de distinção — que o
+ movimento constante nos padrões de comportamento na classe alta recebe em parte
+ sua motivação. O importante é que nessa mudança, nas invenções e modas do
+ comportamento na corte, que à primeira vista talvez pareçam caóticas e
+ acidentais, com o passar do tempo emergem certas direções ou linhas de
+ desenvolvimento. Elas incluem, por exemplo, o que pode ser descrito como o
+ avanço do patamar do embaraço e da vergonha sob a forma de “refinamento” ou
+ como “civilização”. Um dinamismo social específico desencadeia outro de
+ natureza psicológica, que manifesta suas próprias lealdades.
+
+Tecnologia:
+
+ Estes são apenas alguns exemplos de como se formou nosso ritual diário. Se esta
+ série fosse continuada até o presente, outras mudanças de detalhe seriam
+ notadas: novos imperativos são acrescentados, relaxam-se outros antigos, emerge
+ uma riqueza de variações nacionais e sociais, e se constata a infiltração na
+ classe média, na classe operária e no campesinato do ritual uniforme da
+ civilização. A regulação dos impulsos que sua aquisição requer varia muito em
+ força. Mas a base essencial do que é obrigatório e do que é proibido na
+ sociedade civilizada — o padrão da técnica de comer, a maneira de usar faca,
+ garfo, colher, prato individual, guardanapo e outros utensílios — estes
+ permanecem imutáveis em seus aspectos essenciais. Até mesmo o surgimento da
+ tecnologia em todas as áreas — inclusive na da cozinha —, com a introdução de
+ novas formas de energia, deixou virtualmente inalteradas as técnicas à mesa e
+ outras formas de comportamento. Só com uma verificação muito minuciosa é que
+ observamos os traços de uma tendência que continua a desenvolver-se.
+
+ O que muda ainda, acima de tudo, é a tecnologia da produção. Já a tecnologia do
+ consumo foi desenvolvida por formações sociais que eram, em um grau nunca
+ igualado antes, classes de consumo. Com seu declínio social, o rápido e intenso
+ refinamento das técnicas de consumo cessa, estas passam ao que se torna então a
+ esfera privada da vida (em contraste com a ocupacional). Consequentemente, o
+ ritmo de movimento e mudança nessas esferas, que havia sido relativamente
+ rápido durante o estágio das cortes absolutas, reduz-se mais uma vez.
+
+Forma da curva:
+
+ Não obstante, a forma geral da curva é por toda a parte mais ou menos a mesma:
+ em primeiro lugar, a fase medieval, com certo clímax no florescimento da
+ sociedade feudal e cortês, assinalada pelo hábito de comer com as mãos. Em
+ seguida, uma fase de movimento e mudança relativamente rápidos, abrangendo
+ aproximadamente os séculos XVI, XVII e XVIII, na qual a compulsão para uma
+ conduta refinada à mesa pressiona constantemente na mesma direção, na de um
+ novo padrão de maneiras à mesa.
+
+ Daí em diante, observamos uma fase que permanece dentro do padrão já atingido,
+ embora com um movimento muito lento sempre numa certa direção. O refinamento da
+ conduta diária nunca perde de todo, nem mesmo neste período, sua importância
+ como instrumento de diferenciação social. Mas, desde essa fase, não desempenha
+ o mesmo papel que na fase precedente. Mais do que antes, o dinheiro torna-se a
+ base das disparidades sociais. E o que as pessoas concretamente realizam e
+ produzem torna-se mais importante que suas maneiras.
+
+"Delicadeza" e padronização:
+
+ É semelhante a curva seguida por outros hábitos e costumes. Inicialmente, a
+ sopa costuma ser bebida, seja na sopeira comum seja com a concha usada por
+ várias pessoas. Nos escritos corteses, é prescrito o uso da colher. Ela,
+ também, será então usada por várias pessoas. Outro passo é mostrado na citação
+ extraída de Calviac, por volta de 1560. Diz ele que era costume alemão permitir
+ que cada conviva usasse sua própria colher. O passo seguinte é indicado pelo
+ texto de Courtin, relativo ao ano de 1672. Nessa ocasião, não se toma mais a
+ sopa na sopeira comum, mas derrama-se um pouco no próprio prato, usando-se a
+ própria colher. Mas havia pessoas, somos informados no texto, que eram tão
+ delicadas que não queriam tomar a sopa de uma sopeira em que outros haviam
+ mergulhado uma colher já usada. Era, por conseguinte, necessário limpar a
+ colher com o guardanapo antes de colocá-la na sopeira. E algumas pessoas
+ queriam ainda mais. Para elas, a pessoa não devia absolutamente pôr novamente
+ na sopeira uma colher usada. Devia, sim, pedir uma colher limpa para esse fim.
+
+ Descrições como essas demonstram não só que todo o ritual de viver juntos
+ estava em movimento, mas também que as pessoas se conscientizavam dessa
+ mudança.
+
+ Nesse tempo, gradualmente, o costume, ora aceito como natural, de tomar sopa
+ está sendo estabelecido: todos têm seu próprio prato e colher e a sopa é
+ servida com um implemento especializado. O ato de comer adquirira um novo
+ estilo, correspondendo às novas necessidades da vida social.
+
+ Coisa alguma nas maneiras à mesa é evidente por si mesma ou produto, por assim
+ dizer, de um sentimento “natural” de delicadeza. A colher, garfo e guardanapo
+ não foram inventados como utensílios técnicos com finalidades óbvias e
+ instruções claras de uso. No decorrer de séculos, na relação social e no
+ emprego direto, suas funções foram gradualmente sendo definidas, suas formas
+ investigadas e consolidadas. Todos os costumes no ritual em mutação, por mais
+ insignificantes, estabeleceram-se com infinita lentidão, até mesmo formas de
+ comportamento que nos parecem elementares ou simplesmente “razoáveis”, tal como
+ o costume de ingerir líquidos apenas com a colher. Todos os movimentos da mão —
+ como, por exemplo, a maneira como se segura e movimenta a faca, colher e garfo
+ — são padronizados apenas gradualmente, e só vemos o mecanismo de padronização
+ em sua sequência, se examinamos como um todo a série de imagens. Há um círculo
+ na corte mais ou menos limitado que inicialmente cria os modelos apenas para
+ atender às necessidades de sua própria situação social e em conformidade com a
+ condição psicológica correspondente à mesma. Mas é evidente que a estrutura e o
+ desenvolvimento da sociedade francesa como um todo fazem com que estratos cada
+ vez mais amplos se mostrem desejosos, e mesmo sequiosos, de adotar os modelos
+ desenvolvidos em uma classe mais alta: eles se difundem, também com grande
+ lentidão, por toda a sociedade, e certamente não sem passarem nesse processo
+ por algumas modificações.
+
+Transmissão e abrangência da análise:
+
+ A transmissão dos modelos de uma unidade social a outra, ora do centro de uma
+ sociedade para seus postos fronteiriços (como, por exemplo, da corte parisiense
+ para outras cortes), ora na mesma unidade político-social como, por exemplo, na
+ França ou Saxônia, de cima para baixo ou de baixo para cima, deve ser
+ considerada, em todo o processo civilizador, como um dos mais importantes dos
+ movimentos individuais.
+
+ [...]
+
+ a observação das maneiras e suas transformações expõe apenas um segmento muito
+ simples e de fácil acesso do que é um processo de mudança social muito mais
+ abrangente.
+
+Fala, jargão a partir de um duplo movimento:
+
+ Neste particular, também, como aconteceu com as maneiras, ocorre uma espécie de
+ movimento em duplo sentido: a burguesia é, por assim dizer, “acortesada” e, a
+ aristocracia, “aburguesada”. Ou, para ser mais preciso, a burguesia é
+ influenciada pelo comportamento da corte e vice-versa. A influência de baixo
+ para cima é certamente muito mais fraca no século XVII na França do que no
+ século XVIII. Mas não está de todo ausente. O castelo de Vaux-le Vicomte, de
+ propriedade do intendente burguês das finanças, Nicolas Fougeut, é anterior à
+ régia Versalhes e de muitas maneiras lhe serviu de modelo. Este é um claro
+ exemplo. A riqueza dos principais estratos burgueses compele os que estão acima
+ a competir com eles. E a chegada incessante de burgueses aos círculos da corte
+ gera também um movimento específico na fala: a nova substância humana traz
+ também consigo uma nova substância linguística, o “jargão” da burguesia, para
+ os círculos aristocráticos. Elementos seus estão sendo constantemente
+ assimilados pela linguagem da corte, refinados, polidos, transformados. São, em
+ uma palavra, “acortejados”, isto é, adaptados ao padrão de sensibilidade dos
+ círculos de corte. Transformam-se, assim, em meios para distinguir as gens de
+ la cour da burguesia e depois, talvez muito depois, penetram de novo na
+ burguesia, assim refinados e modificados, a fim de se tornarem “especificamente
+ burgueses”.
+
+ [...]
+
+ Em quase todos esses casos, a forma linguística que aqui aparece como de corte
+ tornou-se de fato o costume nacional. Mas há também exemplos de formas
+ linguísticas de corte que são gradualmente abandonadas como “refinadas demais”,
+ “afetadas demais”.
+
+ [...]
+
+ 10. Se na França as gens de la cour dizem “Esta frase está correta e esta
+ incorreta”, uma pergunta importante surge que merece pelo menos ser abordada de
+ passagem: “Por que padrões ela está realmente julgando o que é correto e
+ incorreto na linguagem? Que critérios usa para selecionar, polir e modificar
+ expressões?”
+
+ Às vezes, essa própria gente reflete sobre o assunto. O que diz sobre ele é, à
+ primeira vista, surpreendente e, de qualquer modo, sua importância ultrapassa a
+ esfera da linguagem. Frases, palavras e nuances são corretas porque eles, os
+ membros da elite social, as usam. E são incorretas porque inferiores sociais as
+ usam.
+
+ [...]
+
+ “É bem possível,” responde a senhora, “que haja muitas pessoas bem-educadas que
+ não conheçam suficientemente bem a delicadeza de nossa língua… uma delicadeza
+ que é sentida por apenas um pequeno número de pessoas bem-falantes e que as
+ leva a não dizer que um homem virou defunto a fim de dizer que ele faleceu.”
+
+ Um pequeno círculo de pessoas é bem versado nessa delicadeza de linguagem.
+ Falar como elas é igual a falar corretamente. O que os outros dizem não conta.
+ Os juízos de valor são apodícticos.
+
+ [...]
+
+ Palavras antiquadas são impróprias para a fala comum, séria. Palavras muito
+ novas despertam suspeita de afetação — poderíamos talvez dizer, de esnobismo.
+ Palavras eruditas que recendem a latim ou grego são suspeitas a todas as gens
+ du monde. Cercam os que as usam de uma atmosfera de pedantismo, se são
+ conhecidas outras palavras que dizem a mesma coisa com simplicidade.
+
+Motivos ou razões "higiênicas":
+
+ A linguagem é uma das formas assumidas pela vida social ou mental. Grande parte
+ do que se pode observar na maneira como a linguagem é plasmada torna-se também
+ evidente em outras formas que a sociedade assume. O modo como pessoas
+ argumentam que este ou aquele comportamento ou costume à mesa é melhor que
+ outro, por exemplo, mal se pode distinguir da maneira como alegam que uma
+ expressão linguística é preferível a outra.
+
+ Isto não corresponde à expectativa que talvez tenha um observador do século XX.
+ Ele, por exemplo, acha, talvez, que a eliminação do hábito de “comer com as
+ mãos”, a adoção do garfo, as louças e talheres individuais, e todos os demais
+ rituais de seu próprio padrão podem ser explicados por “razões higiênicas”.
+ Isto porque é esta a maneira como ele mesmo explica, de modo geral, esses
+ costumes. Mas o fato é que, em data tão recente como a segunda metade do século
+ XVIII, praticamente nada desse tipo condicionava o maior controle que as
+ pessoas impunham a si mesmas. De qualquer modo, as chamadas “explicações
+ racionais” têm bem pouca importância em comparação com outras.
+
+ [...]
+
+ Assim como aconteceu com a maneira por que foi moldada a fala, também na
+ formação de outros aspectos do comportamento em sociedade as motivações sociais
+ e a adaptação do comportamento aos modelos vigentes em círculos influentes
+ foram, de longe, os motivos mais importantes. Até mesmo as expressões usadas na
+ motivação do “bom comportamento” à mesa eram, com frequência, as mesmas usadas
+ para motivar a “fala correta”.
+
+Tendência ao aumento do embaraço:
+
+ Esta délicatesse, esta sensibilidade, e um sentimento altamente desenvolvido de
+ embaraço, são no início aspectos característicos de pequenos círculos da corte
+ e, depois, da sociedade da corte como um todo. Isto se aplica à linguagem
+ exatamente da mesma maneira que aos hábitos à mesa. Não se diz nem se pergunta
+ em que se baseia essa delicadeza e por que ela exige que se faça isto e não
+ aquilo. O que se observa é apenas que a “delicadeza” — ou melhor, o patamar do
+ embaraço — está avançando. Juntamente com uma situação social muito específica,
+ os sentimentos e emoções começam a ser transformados na classe alta, e a
+ estrutura da sociedade como um todo permite que as emoções assim modificadas se
+ difundam lentamente pela sociedade. Nada indica que a condição afetiva, o grau
+ de sensibilidade, sejam mudados pelo que descrevemos como “evidentemente
+ racional”, isto é, pela compreensão demonstrável de dadas conexões causais.
+ Courtin não diz, como se diria mais tarde, que algumas pessoas acham
+ “anti-higiênico” ou “prejudicial à saúde” tomar sopa na mesma sopeira com
+ outras pessoas. Não há dúvida de que a delicadeza de sentimentos é aguçada sob
+ pressão da situação da corte, isto de uma maneira que mais tarde será
+ parcialmente justificada por estudos científicos, mesmo que grande parte dos
+ tabus que as pessoas gradualmente se impõem em seus contatos recíprocos, parte
+ esta muito maior do que em geral se pensa, não tenha a menor ligação com a
+ “higiene”, sendo motivada — ainda hoje — apenas por uma “delicadeza de
+ sentimentos”. De qualquer modo, o processo se desenvolve em alguns aspectos de
+ uma maneira que é o exato oposto do que em geral hoje se supõe. Em primeiro
+ lugar, ao longo de um período extenso e em conjunto com uma mudança específica
+ nas relações humanas, isto é, na sociedade, é elevado o patamar de embaraço. A
+ estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a
+ despeito de variações, em uma direção bem clara. Então, num dado momento, esta
+ conduta é reconhecida como “higienicamente correta”, isto é, é justificada por
+ uma clara percepção de conexões causais, o que lhe dá mais consistência e
+ eficácia. A expansão do patamar do embaraço talvez se ligue ocasionalmente a
+ experiências mais ou menos indefinidas e, de início, racionalmente
+ inexplicáveis, de como certas doenças são transmitidas ou, mais exatamente,
+ talvez se ligue a medos e preocupações vagos e, por conseguinte, não
+ esclarecidos, que apontam ambiguamente na direção que mais tarde será
+ confirmada pela racionalização. A “compreensão racional”, porém, não é o que
+ condiciona a “civilização” dos hábitos à mesa ou outras formas de
+ comportamento.
+
+Difusão e cristalização:
+
+ Neste contexto, é altamente instrutivo o estreito paralelo entre a
+ “civilização” dos hábitos à mesa e da fala. Fica claro que a mudança do
+ comportamento à mesa é parte de uma transformação muito extensa por que passam
+ sentimentos e atitudes humanas. Também se vê em que grau as forças motivadoras
+ desse fenômeno se originam na estrutura social, na maneira como as pessoas
+ estão ligadas entre si. Vemos com mais clareza como círculos relativamente
+ pequenos iniciam o movimento e como o processo, aos poucos, se transmite a
+ segmentos maiores. Esta difusão, porém, pressupõe contatos muito específicos e,
+ por conseguinte, uma estrutura bem-definida da sociedade. Além do mais, ela
+ certamente não poderia ter ocorrido se não houvessem sido estabelecidas para
+ classes mais amplas, e não apenas para os círculos que criaram o modelo,
+ condições de vida — ou, em outras palavras, uma situação social — que tornassem
+ possível e necessária uma transformação gradual das emoções e do comportamento,
+ um avanço no patamar do embaraço.
+
+ O processo que assim emerge lembra, na sua forma — embora não em substância —,
+ processos químicos nos quais um líquido, cujo todo é sujeito a condições de
+ mudança química (como, por exemplo, a cristalização), começa adquirindo forma
+ cristalina em um pequeno núcleo enquanto o resto só gradualmente se cristaliza
+ em torno dele. Nada seria mais errôneo do que considerar o núcleo da
+ cristalização como causa da transformação.
+
+### Família como unidade de consumo
+
+ O fato de desaparecer gradualmente, o costume de colocar na mesa grandes
+ pedaços de animal para serem trinchados liga-se a muitos fatores. Um dos mais
+ importantes talvez seja a redução gradual do tamanho da unidade familiar,59
+ como parte do movimento de famílias mais numerosas para famílias menores; em
+ seguida, ocorre a transferência de atividades de produção e processamento, como
+ fiação, tecelagem e abate de animais, da casa para especialistas, artesãos,
+ mercadores e fabricantes, que as desempenham profissionalmente enquanto a
+ família torna-se basicamente uma unidade de consumo.
+
+### Supressão de traços animais e ocultamento do desagradável
+
+ Será mostrado que as pessoas, no curso do processo civilizatório, procuram
+ suprimir em si mesmas todas as características que julgam “animais”. De igual
+ maneira, suprimem essas características em seus alimentos.
+
+ [...]
+
+ A tendência cada vez mais forte de remover o desagradável da vista aplica-se,
+ com raras exceções, ao trincho do animal inteiro.
+
+ O ato de trinchar, conforme demonstram os exemplos, outrora constituiu parte
+ importante da vida social da classe alta. Depois, o espetáculo passou a ser
+ julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que
+ o animal, claro, tem que ser cortado antes de ser comido. O repugnante, porém,
+ é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue
+ ou na cozinha. Repetidamente iremos ver como é característico de todo o
+ processo que chamamos de civilização esse movimento de segregação, este
+ ocultamento “para longe da vista” daquilo que se tornou repugnante. A curva que
+ ocorre do trincho de grande parte do animal ou do animal inteiro, passando pelo
+ avanço do patamar da repugnância à vista dos animais mortos, para a
+ transferência do trincho a enclaves especializados por trás das cenas,
+ constitui uma típica curva civilizadora.
+
+ Resta a ser investigado até que ponto processos parecidos são subjacentes a
+ fenômenos semelhantes em outras sociedades. Na antiga civilização chinesa, mais
+ que em qualquer outra, o ocultamento do ato de trinchar por trás das cenas foi
+ efetuado mais cedo e mais radicalmente do que no Ocidente. Na China, o processo
+ é levado tão longe que se trincha e corta toda carne em um lugar inteiramente
+ reservado e a faca é inteiramente banida do uso à mesa.
+
+ [...]
+
+ Fortes movimentos retroativos não são certamente impensáveis. É bem sabido que
+ as condições de vida na Primeira Guerra Mundial automaticamente provocaram a
+ suspensão de alguns dos tabus da civilização de tempos de paz. Nas trincheiras,
+ oficiais e soldados, quando necessário, comiam usando facas e mãos. O patamar
+ de delicadeza encolheu-se com grande rapidez sob a pressão de uma situação
+ inescapável.
+
+ À parte essas interrupções, sempre possíveis e que podem também levar a novas
+ configurações de costumes, é bastante clara a linha do desenvolvimento no
+ emprego da faca.60 A regulação e o controle das emoções intensificam-se. As
+ instruções e proibições a respeito de um instrumento ameaçador tornam-se cada
+ vez mais numerosas e diferenciadas. Finalmente, o emprego do símbolo ameaçador
+ é tão limitado quanto possível.
+
+ Não podemos evitar comparar a direção dessa curva de civilização com o costume
+ há muito praticado na China. Neste país, como se sabe, a faca desapareceu há
+ muitos séculos como utensílio de mesa. Para muitos chineses, é inteiramente
+ incivil a maneira como os europeus comem. “Os europeus são bárbaros”, dizem
+ eles, “eles comem com espadas.” Podemos supor que este costume está ligado ao
+ fato de que desde há muito tempo a classe alta, que criava os modelos na China,
+ não foi guerreira, mas uma classe pacífica em altíssimo grau, uma sociedade de
+ funcionários públicos eruditos.
+
+### Pedagogia da proibição
+
+ Algumas formas de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas,
+ mas por que são feias à vista e geram associações desagradáveis. A vergonha de
+ dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
+ difundem-se gradualmente dos círculos que estabelecem o padrão para outros mais
+ amplos, através de numerosas autoridades e instituições. Não obstante, uma vez
+ sejam despertados e firmemente estabelecidos na sociedade, esses sentimentos
+ através de certos rituais, como o que envolve o garfo, são constantemente
+ reproduzidos enquanto a estrutura das relações humanas não for fundamentalmente
+ alterada. A geração mais antiga, para quem esse padrão de conduta é aceito como
+ natural, insiste com as crianças, que não vêm ao mundo já munidas desses
+ sentimentos e deste padrão, para que se controlem mais ou menos rigorosamente
+ de acordo com os mesmos e contenham seus impulsos e inclinações. Se tenta tocar
+ alguma coisa pegajosa, úmida ou gordurosa com os dedos, a criança é
+ repreendida: “Você não deve fazer isso. Gente fina não faz isso.” E o desagrado
+ com tal conduta, que é assim despertado pelo adulto, finalmente cresce com o
+ hábito, sem ser induzido por outra pessoa.
+
+ Em grande parte, contudo, a conduta e vida instintiva da criança são postas à
+ força, mesmo sem palavras, no mesmo molde e na mesma direção pelo fato de que
+ um dado uso da faca e do garfo, por exemplo, está inteiramente firmado no mundo
+ adulto — isto é, pelo exemplo do meio. Uma vez que a pressão e coação exercidas
+ por adultos individuais é aliada da pressão e exemplo de todo o mundo em volta,
+ a maioria das crianças, quando crescem, esquece ou reprime relativamente cedo o
+ fato de que seus sentimentos de vergonha e embaraço, de prazer e desagrado, são
+ moldados e obrigados a se conformar a certo padrão de pressão e compulsão
+ externas. Tudo isso lhes parece altamente pessoal, algo “interno”, implantado
+ neles pela natureza. Embora seja ainda bem visível nos escritos de Courtin e La
+ Salle que os adultos, também, foram inicialmente dissuadidos de comer com os
+ dedos por consideração para com o próximo, por “polidez”, para poupar a outros
+ um espetáculo desagradável, e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as
+ mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a
+ marca da sociedade no ser interno, o superego, que proíbe ao indivíduo comer de
+ qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora
+ inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente
+ reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole
+ que opera mesmo contra seus desejos conscientes.
+
+ Desta forma, o processo sócio-histórico de séculos, no curso do qual o padrão
+ do que é julgado vergonhoso e ofensivo é lentamente elevado, reencena-se em
+ forma abreviada na vida do ser humano individual. Se quiséssemos expressar
+ processos repetitivos desse tipo sob a forma de leis, poderíamos falar, como um
+ paralelo às leis da biogênese, de uma lei fundamental de sociogênese e
+ psicogênese.
+
+ [...]
+
+ Mas, ao mesmo tempo, é muito claro que esse tratado tem precisamente a função
+ de cultivar sentimentos de vergonha. A referência à onipresença de anjos, usada
+ para justificar o controle de impulsos aos quais a criança está acostumada, é
+ bem característica. A maneira como a ansiedade é despertada nos jovens, a fim
+ de forçá-los a reprimir o prazer, de acordo com o padrão de conduta social,
+ muda com a passagem dos séculos. Aqui a ansiedade despertada em conexão com a
+ renúncia à satisfação instintiva é explicada a si mesmo e aos demais em termos
+ de espíritos externos. Algum tempo depois, a restrição autoimposta, juntamente
+ com o medo, a vergonha e a recusa a cometer qualquer infração, frequentemente
+ aparece, pelo menos na classe alta, na sociedade aristocrática de corte, como
+ vergonha e medo a outras pessoas. Em círculos mais amplos, reconhecidamente, a
+ referência a anjos da guarda é usada durante muito tempo como instrumento para
+ condicionar crianças. Diminui um pouco quando “razões higiênicas” e de saúde
+ recebem mais ênfase e se pretende obter um certo grau de controle dos impulsos
+ e das emoções. Essas razões higiênicas passam, então, a desempenhar um papel
+ importante nas ideias dos adultos sobre o que é civilizado, em geral sem que se
+ perceba que relação elas têm com o condicionamento das crianças que está sendo
+ praticado. Apenas a partir dessa percepção, contudo, é que o que há nelas de
+ racional pode ser distinguido do que é apenas aparentemente racional, isto é,
+ fundamentado principalmente na repugnância e nos sentimentos de vergonha dos
+ adultos.
+
+ [...]
+
+ Note-se que em seu tratado [de Erasmo] não são frequentes os argumentos de
+ natureza médica. Quando aparecem, é quase sempre, como no caso acima, para se
+ opor à exigência de que se restrinjam funções naturais, ao passo que mais
+ tarde, sobretudo no século XIX, eles servem quase sempre como instrumentos para
+ compelir ao controle e à renúncia de uma satisfação instintiva. Só no século XX
+ é que aparece uma ligeira relaxação.
+
+Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
+boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
+os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
+numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas e naturalizadas
+geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
+sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
+desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
+épocas, como por exemplo o ato de cagar na rua:
+
+ Os exemplos extraídos da obra de La Salle devem ser suficientes para indicar
+ como estava se desenvolvendo o sentimento de delicadeza. Mais uma vez, é muito
+ instrutiva a diferença entre as edições de 1729 e 1774. Indubitavelmente, mesmo
+ a edição anterior já menciona um padrão de delicadeza muito diferente do que é
+ encontrado no tratado de Erasmo. A exigência de que todas as funções naturais
+ sejam vedadas à vista de outras pessoas é feita de maneira inequívoca, mesmo
+ que o modo pelo qual é formulada indique que o comportamento das pessoas —
+ adultas e crianças — não se conforma ainda à mesma. Embora diga que não é muito
+ delicado até mesmo falar de tais funções ou das partes do corpo nelas
+ envolvidas, La Salle, ainda assim as descreve com uma minúcia de detalhes que
+ nos espanta. Dá às coisas seus verdadeiros nomes, já que não constam da
+ Civilité, de Courtin, datada de 1672, que se destinava ao uso das classes
+ altas.
+
+ Na segunda edição do livro de La Salle, igualmente, são omitidas todas as
+ referências detalhadas. Cada vez mais, essas necessidades são “ignoradas”.
+ Simplesmente lembrá-las torna-se embaraçoso para a pessoa na presença de outras
+ que não sejam muito íntimas e, em sociedade, tudo o que mesmo remota ao
+ associativamente as lembre é evitado.
+
+ Ao mesmo tempo, os exemplos deixam claro a lentidão com que se desenvolvia o
+ processo de suprimir essas funções da vida social. Material suficiente66
+ sobreviveu exatamente porque o silêncio sobre esses assuntos não era observado
+ antes ou o era menos. O que em geral falta é a ideia de que informação desse
+ tipo tenha mais do que valor de curiosidade e, por isso mesmo, ela raramente é
+ sintetizada em uma ideia da linha geral do desenvolvimento. Não obstante, se
+ adotamos um ponto de vista abrangente, emerge um padrão que é típico do
+ processo civilizatório. 4. No início, essas funções e sua exposição são
+ acompanhadas apenas de leves sentimentos de vergonha e repugnância e, por isso
+ mesmo, sujeitas apenas a modesto isolamento e controle. São aceitas como tão
+ naturais como pentear os cabelos ou calçar os sapatos. As crianças eram
+ portanto condicionadas de maneira análoga para uma coisa, ou outra.
+
+ [...]
+
+ Durante muito tempo, a rua, e quase todos os locais onde a pessoa por acaso se
+ encontrasse, serviam para a mesma finalidade que o muro do pátio mencionado
+ acima. Não é nem mesmo raro recorrer à escada, aos cantos da sala, ou aos
+ beirais das muralhas de um castelo, se a pessoa sente tais necessidades. Os
+ Exemplos E e F deixam isto claro. Mas mostram também que, dada a
+ interdependência específica e permanente das muitas pessoas que viviam na
+ corte, uma pressão era exercida de cima no sentido de um controle mais rigoroso
+ dos impulsos e, por conseguinte, para maior autodomínio.
+
+ O controle mais rigoroso de impulsos e emoções é inicialmente imposto por
+ elementos de alta categoria social aos seus inferiores ou, no máximo, aos seus
+ socialmente iguais. Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa,
+ compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior,
+ governante, é que a família vem a ser a única — ou, para ser mais exata, a
+ principal e dominante — instituição com a função de instilar controle de
+ impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se
+ particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem
+ socialmente requeridas dos impulsos e das emoções.
+
+### Segunda natureza
+
+ No estágio das cortes feudais, e ainda mais nas dos monarcas absolutos, elas
+ próprias desempenhavam em grande parte essa função para a classe alta. No
+ estágio posterior, boa parte do que se tornou “segunda natureza” para nós não
+ havia sido ainda inculcado dessa forma, como um autocontrole automático, um
+ hábito que, dentro de certos limites, funciona também quando a pessoa está
+ sozinha. Ao contrário, o controle dos instintos era inicialmente imposto apenas
+ quando na companhia de outras pessoas, isto é, mais conscientemente por razões
+ sociais. Tanto o tipo como o grau de controle correspondem à posição social da
+ pessoa que os impõe, em relação à posição daqueles em cuja companhia está. Isto
+ muda lentamente, à medida que as pessoas se aproximam mais socialmente e se
+ torna menos rígido o caráter hierárquico da sociedade. Aumentando a
+ interdependência com a elevação da divisão do trabalho, todos se tornam cada
+ vez mais dependentes dos demais, os de alta categoria social dos socialmente
+ inferiores e mais fracos. Estes últimos tornam-se a tal ponto iguais aos
+ primeiros que eles, os socialmente superiores, sentem vergonha até mesmo de
+ seus inferiores. Só nesse momento é que a armadura dos controles é vestida em
+ um grau aceito como natural nas sociedades democráticas industrializadas.
+
+ [...]
+
+ Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
+ não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
+ modelada segundo a estrutura social.
+
+### Polidez: condicionamento, isolamento e segredo; distância entre adultos e crianças
+
+ Nessa sociedade hierarquicamente estruturada, todos os atos praticados na
+ presença de numerosas pessoas adquiriam valor de prestígio. Por este motivo, o
+ controle das emoções, aquilo que chamamos “polidez”, revestia uma forma
+ diferente da que adotou mais tarde, época em que diferenças externas em
+ categoria haviam sido parcialmente niveladas. O que se menciona aqui é um caso
+ especial de intercâmbio entre iguais (que uma pessoa não deve servir outra), e
+ que mais tarde se torna a prática geral. Em sociedade, todos se servem
+ pessoalmente e todos começam a comer no mesmo momento.
+
+ A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se
+ uma infração repugnante mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de
+ categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo
+ a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se
+ tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em
+ qualquer caso. A referência social à vergonha e ao embaraço desaparece cada vez
+ mais da consciência. Exatamente porque a injunção social de não se mostrar ou
+ desincumbir-se de funções naturais opera nesse momento no tocante a todos e é
+ gravada nesta forma na criança, ela parece ao adulto uma injunção de seu
+ próprio ser interno e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total e
+ automático.
+
+ 5. Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente
+ regulação ou moldagens das necessidades instintivas, porém, só se tornaram
+ possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um
+ aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema
+ de eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais
+ discretos. A situação não foi diferente no tocante às maneiras à mesa. O
+ processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar
+ de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e,
+ decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas
+ científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases
+ sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas
+
+ Uma vez posta em movimento a reformulação das necessidades humanas, devido à
+ transformação generalizada das relações entre os homens, o desenvolvimento de
+ aparelhagem técnica correspondente ao padrão mudado consolidou os novos hábitos
+ em um grau extraordinário. Este aparelho contribuiu para a reprodução constante
+ do padrão e para sua disseminação.
+
+ Não deixa de ser interessante observar que hoje [década de 1930], época em que
+ este padrão de conduta se consolidou tanto que é aceito como inteiramente
+ natural, certa relaxação está começando, sobretudo em comparação com o século
+ XIX, pelo menos no que diz respeito a referências verbais a funções corporais.
+ [...] Mas isto, tal como os costumes modernos de banho e dança, é possível
+ apenas porque o nível habitual de autocontrole, técnica e institucionalmente
+ consolidado, a capacidade do indivíduo de restringir suas necessidades e
+ comportamento de acordo com os sentimentos mais atuais sobre o que é
+ desgostoso, foram atingidos. O que se observa é uma relaxação dentro do
+ contexto de um padrão já firmemente radicado.
+
+ 6. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por
+ uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das
+ crianças. Estas têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de
+ vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva
+ delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem
+ específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão
+ dos séculos. Nisto, os pais são apenas os instrumentos, amiúde inadequados, os
+ agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros
+ instrumentos, é sempre a sociedade como um todo, o conjunto de seres humanos,
+ que exerce pressão sobre a nova geração, levando-a mais perfeitamente, ou
+ menos, para seus fins.
+
+ [...]
+
+ O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior
+ do que o imposto às crianças. Era pequena, medida pelos padrões de hoje, a
+ distância que separava adultos de crianças.
+
+ [...]
+
+ De modo geral, sob as pressões do condicionamento, impulsos desse tipo
+ desapareceram da consciência do adulto no estado de vigília. Só a psicanálise é
+ que os descobre sob a forma de desejos insatisfeitos ou irrealizáveis, que são
+ descritos como o nível inconsciente ou onírico da mente. E estes desejos têm,
+ de fato, em nossa sociedade, o caráter de um resíduo “infantil” porque o padrão
+ social dos adultos torna necessária a completa supressão e transformação dessas
+ tendências, de modo que elas parecem, quando ocorrem em adultos, um “resto” da
+ infância.
+
+ [...]
+
+ A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer
+ positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais
+ exatamente, está tornando esse prazer “privado” e “secreto” (isto é,
+ reprimindo-o no indivíduo), enquanto fomenta emoções negativamente carregadas —
+ desagrado, repugnância, nojo — como os únicos sentimentos aceitáveis em
+ sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos
+ impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do
+ indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da
+ personalidade e o comportamento de adultos e crianças.
+
+ [...]
+
+ Está avançando a “conspiração do silêncio”. Ela se baseia na pressuposição —
+ que evidentemente não podia ser feita à época da edição anterior — de que todos
+ os detalhes são conhecidos dos adultos e podem ser controlados no seio da
+ família.
+
+### Interesse instintivo remanescente
+
+ O uso do lenço tornou-se generalizado, pelo menos entre as pessoas que alegam
+ saber “como se comportar”. Mas o uso das mãos não desapareceu inteiramente.
+ [...] Quase parece que inclinações que ficaram sujeitas a certo controle e
+ comedimento com a adoção do lenço estariam, dessa maneira, procurando uma nova
+ maneira de se manifestar. De qualquer modo, uma tendência instintiva que
+ aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou
+ mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas
+ secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo
+ histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é “normalmente”
+ visível apenas em crianças.
+
+### Culpa e neuroses
+
+ Como em outros hábitos infantis, o aviso médico aparece agora em conjunto ou em
+ lugar do social como instrumento de condicionamento, com referência ao mal que
+ pode decorrer de fazer “tal coisa” com frequência excessiva. Vemos aí um
+ exemplo de mudança na maneira de condicionar alguém, que já havia sido
+ considerada de outros pontos de vista. Até essa ocasião, os hábitos eram quase
+ sempre julgados claramente em sua relação com outras pessoas e se eram
+ proibidos, pelo menos na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos
+ ou embaraçosos para terceiros ou porque revelasse “falta de respeito”. Mas
+ agora, os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que
+ possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações
+ socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao
+ embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está
+ sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral”
+ preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”:
+ condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por
+ esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável,
+ uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do
+ indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria
+ saúde ou dignidade humana. Só com o aparecimento dessa maneira de consolidar
+ hábitos ou, em outras palavras, de condicionamento, que ganha predominância com
+ a ascensão da classe média, é que o conflito entre impulsos e tendências
+ socialmente inadmissíveis, por um lado, e o padrão de exigências sociais feitas
+ ao indivíduo, por outro, assume a forma rigorosamente definida e fundamental às
+ teorias psicológicas dos tempos modernos — acima de tudo, à psicanálise. É bem
+ possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje
+ por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de
+ uma elucidação psicogenética e sociogenética.
+
+### Estágios
+
+ No estágio da aristocracia de corte, as restrições impostas às inclinações e
+ emoções baseavam-se principalmente em consideração e respeito devidos a outras
+ pessoas e, acima de tudo, aos superiores sociais. No estágio subsequente, a
+ renúncia e o controle de impulsos são muito menos determinados por pessoas
+ particulares. Expressadas provisória e aproximativamente, nesse instante, mais
+ diretamente do que antes, são as compulsões menos visíveis e mais impessoais da
+ interdependência social, a divisão do trabalho, o mercado, a competição, que
+ impõem restrições e controle aos impulsos e emoções. São essas pressões, e os
+ correspondentes tipos de explicação e condicionamento acima mencionados, que
+ fazem parecer que o comportamento socialmente desejável seja gerado
+ voluntariamente pelo próprio indivíduo, por sua própria iniciativa. Isto se
+ aplica à regulação e às restrições de impulsos necessárias ao “trabalho”, e
+ também a todo padrão de acordo com o qual eles são modelados nas sociedades
+ industrializadas burguesas.
+
+ [...]
+
+ Em ambos os casos, na sociedade aristocrática da corte e nas sociedades
+ burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente
+ controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado
+ por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da
+ civilização, será demonstrado adiante.
+
+ [...]
+
+ Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro, como
+ de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto “primitivas” como
+ “civilizadas”. O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são
+ sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que imaginários —
+ isto é, por controles externos — ao passo que, nas últimas, são transformados
+ mais ou menos completamente em controles internos. As tendências proibidas (por
+ exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem em parte da consciência, sob
+ pressão desse controle interno, ou, como poderia ser também chamado, do
+ superego e do “hábito de previsão”. O que sobra na consciência como motivação
+ da ansiedade é alguma consideração de longo prazo. Assim, em nossa época o medo
+ de escarrar, e os sentimentos de vergonha e repugnância nos quais isto se
+ expressa, concentram-se na ideia mais precisamente definida e logicamente
+ compreensível de certas doenças e suas “causas”, e não em torno da imagem de
+ influências mágicas, deuses, espíritos, ou demônios. Mas a série de exemplos
+ mostra também com grande clareza que a compreensão racional das origens de
+ certas doenças, do perigo do esputo como transmissor, não é a causa primária do
+ medo e da repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás
+ das mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar.
+
+ [...]
+
+ Vale a pena deixar esclarecido, de uma vez por todas, que algo que sabemos ser
+ prejudicial à saúde de maneira alguma desperta necessariamente sentimentos de
+ desagrado ou vergonha. E, reciprocamente, algo que desperta esses sentimentos
+ não tem que ser prejudicial à saúde. Alguém que coma hoje barulhentamente ou
+ com as mãos provoca profundo desagrado, mas sem que haja o menor receio pela
+ saúde. E nem a ideia de ler com má iluminação nem a de gás venenoso, por
+ exemplo, despertam sentimentos de desagrado ou vergonha remotamente
+ semelhantes, embora sejam óbvias suas más consequências para a saúde. Desta
+ maneira, o nojo da expectoração, e os tabus que a cercam, aumentam muito antes
+ que as pessoas tenham uma ideia clara da transmissão de certas doenças pelo
+ escarro. O que inicialmente prova e agrava os sentimentos de nojo e as
+ restrições é a transformação das relações e dependência humanas.
+
+ [...]
+
+ A motivação fundada na consideração social surge muito antes da motivação por
+ conhecimento científico. O rei, como “sinal de respeito”, exige esse
+ comportamento de seus cortesãos. Nos círculos da corte, este sinal da
+ dependência em que ela vive, a crescente compulsão para controlar-se e
+ moderar-se torna-se uma “marca de distinção” a mais, que é imediatamente
+ imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. E aqui,
+ como nas precedentes curvas de civilização, a admoestação “Isso não se faz”,
+ com a qual a moderação, o medo e a repugnância são inculcados, só muito depois
+ é ligada, como resultado de certa “democratização”, a uma teoria científica,
+ com um argumento que se aplica por igual a todos os homens, qualquer que seja
+ sua posição ou status. O impulso primário a essa lenta repressão de uma
+ inclinação que antes era forte e geral não vem da compreensão racional das
+ causas das doenças, mas — conforme será discutido em detalhe mais adiante — de
+ mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade.
+
+ 4. A modificação de hábito de escarrar e, finalmente, a eliminação mais ou
+ menos completa de sua necessidade constitui um bom exemplo da maleabilidade da
+ vida psíquica. Pode ser que essa necessidade tenha sido compensada por outras
+ (como, por exemplo, a necessidade de fumar) ou debilitada por certas mudanças
+ na dieta. Mas é certo que o grau de supressão que se tornou possível neste caso
+ não aconteceu no tocante a muitas outras inclinações. A tendência a escarrar,
+ como a de examinar o esputo, mencionada nesses exemplos, é substituível. Ela se
+ manifesta agora apenas em crianças e em análise de sonhos, e sua eliminação é
+ vista no riso específico que nos sacode quando “essas coisas” são mencionadas
+ abertamente.
+
+ Outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis na mesma extensão. E
+ isto coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana.
+ Sem dúvida ela é submissa a certas fidelidades que podem ser chamadas
+ “naturais”. O processo histórico modifica-a dentro desses limites. O grau em
+ que a vida e o comportamento humanos podem ser moldados por processos
+ históricos não foi ainda analisado em suficiente detalhe. De qualquer modo,
+ tudo isso mostra, mais uma vez, como processos naturais e históricos se
+ influenciam mútua e inseparavelmente. A formação de sentimentos de vergonha e
+ asco e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos
+ naturais e históricos. Essas formas de emoções são manifestações da natureza
+ humana em condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo
+ sócio-histórico como um de seus elementos.
+
+ É difícil concluir se a oposição radical entre “civilização” e “natureza” é
+ mais do que uma expressão das tensões da própria psique “civilizada”, de um
+ desequilíbrio específico na vida psíquica gerado no estágio recente da
+ civilização ocidental. De qualquer modo, a vida psíquica de povos “primitivos”
+ não é menos historicamente (isto é, socialmente) marcada do que a dos povos
+ “civilizados”, mesmo que os primeiros mal estejam conscientes de sua própria
+ história. Não há um ponto zero na historicidade do desenvolvimento humano, da
+ mesma forma que não o há na socialidade, na interdependência social dos homens.
+ Nos povos “primitivos” e “civilizados”, observam-se as mesmas proibições e
+ restrições socialmente induzidas juntamente com suas equivalentes psíquicas,
+ socialmente induzidas: ansiedades, prazer a aversão, desagrado e deleite. No
+ mínimo, por conseguinte, não é muito claro o que se tem em vista quando o
+ chamado padrão primitivo é oposto, como “natural”, ao “civilizado”, como social
+ e histórico. No que interessa às funções psíquicas do homem, processos naturais
+ e históricos trabalham indissoluvelmente juntos.
+
+### Fundo da vida social
+
+ Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo
+ transferido para o fundo da vida social. [...] Suas paredes visíveis e
+ invisíveis vedam os aspectos mais “privados”, “íntimos”, irrepreensivelmente
+ “animais” da existência humana, à vista de outras pessoas.
+
+ [...]
+
+ Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na
+ ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. Tal como outros
+ “implementos de civilização”, espalhou-se de forma bem gradual pela Europa. E,
+ como eles, era símbolo de uma mudança decisiva que ocorria nessa época nos
+ seres humanos. Aumentava a sensibilidade com tudo aquilo que entrava em contato
+ com o corpo. A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes
+ haviam estado livres desse sentimento.
+
+ [...]
+
+ Neste particular, também, houve certa reação e relaxação desde a guerra. Isto
+ esteve claramente ligado à crescente mobilidade da sociedade, à difusão dos
+ esportes, a excursões e viagens, e também à separação relativamente cedo dos
+ jovens da comunidade familiar. A transição da camisola para o pijama — isto é,
+ para um trajo de dormir mais “socialmente apresentável” — constitui um sintoma
+ desta situação. A mudança não é, como se pensa algumas vezes, apenas um
+ movimento de retrogressão, uma diminuição dos sentimentos de vergonha ou
+ delicadeza ou, quem sabe, uma liberação e descontrole de ânsias instintivas,
+ mas o desenvolvimento de uma forma que se ajusta a nosso padrão avançado de
+ delicadeza e da situação específica em que a atual vida social coloca o
+ indivíduo.
+
+ [...]
+
+ As roupas de dormir da fase precedente despertavam sentimentos de vergonha e
+ embaraço exatamente porque eram relativamente informes. Não havia intenção de
+ que fossem vistas por pessoa fora do círculo familiar.
+
+### Ansiedades pelo condicionamento
+
+ “Se for forçado por necessidade inevitável a dividir a cama com outra pessoa…
+ em uma viagem, não é correto ficar tão perto dele que o perturbe ou mesmo o
+ toque”, escreve La Salle (Exemplo D) e: “Você não deve nem se despir nem ir
+ para a cama na presença de qualquer outra pessoa.”
+
+ Na edição de 1774, os detalhes são mais uma vez evitados em todos os casos
+ possíveis. E o tom é visivelmente mais severo: “Se for forçado a dividir a cama
+ com uma pessoa do mesmo sexo, o que raramente acontece, deve manter um rigoroso
+ e vigilante recato” (Exemplo E). Este é o tom da injunção moral. Até mesmo dar
+ uma razão tornou-se penoso para o adulto. Pela ameaça do tom, a criança é
+ levada a associar essa situação a perigo. Quanto mais o padrão “natural” de
+ delicadeza e vergonha parece aos adultos e quanto mais o controle civilizado de
+ ânsias instintivas é aceito como natural, mais incompreensível se torna para os
+ adultos que as crianças não sintam “por natureza” esta delicadeza e vergonha.
+ Necessariamente as crianças tocam repetidamente o patamar adulto de embaraço e
+ — uma vez que não estão ainda adaptadas — transgridem os tabus da sociedade,
+ cruzam o patamar adulto de vergonha, e penetram em zonas de perigo emocionais
+ que o próprio adulto só com dificuldade consegue controlar. Nesta situação, o
+ adulto não explica as exigências que faz em matéria de comportamento. Não tem
+ como fazê-lo adequadamente. Está tão condicionado que se conforma de maneira
+ mais ou menos automática a um padrão social. Qualquer outro comportamento,
+ qualquer desobediência às proibições ou restrições que prevalecem em sua
+ sociedade, implica perigo e uma desvalorização das restrições que ele mesmo se
+ impõe. A conotação peculiarmente emocional tão amiúde ligada a exigências
+ morais, à severidade agressiva e ameaçadora com que são frequentemente
+ defendidas, refletem a ameaça que qualquer desafio às proibições representa
+ para o equilíbrio instável de todos aqueles a cujos olhos o padrão de
+ comportamento da sociedade se tornou mais ou menos uma “segunda natureza”.
+ Essas atitudes são sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os
+ casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva, e com ela sua própria
+ existência social e ordem social onde se radica, é, mesmo remotamente,
+ ameaçada.
+
+ [...]
+
+ a parede entre pessoas, a reserva, a barreira emocional erigida pelo
+ condicionamento entre um corpo e outro cresceram sem cessar. Desde cedo as
+ crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e
+ experiências que isto traz.
+
+ [...]
+
+ Com uma certa impotência, o observador do século XIX e, até certo ponto, do
+ século XX, vê-se diante de modelos e regras de condicionamento do passado. E
+ até que compreendamos que nosso próprio patamar de repugnância, nossa própria
+ estrutura de sentimentos, evoluíram — em um processo estruturado — e seguem
+ evoluindo, continua realmente quase incompreensível, do atual ponto de vista,
+ como diálogos como esses pudessem ser incluídos em um livro escolar ou
+ deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é
+ exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em
+ relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu.
+
+### Constituição psíquisa: "a conspiração do silêncio"
+
+ Vemos, mais uma vez, como é importante para a compreensão de uma constituição
+ psíquica mais antiga, e de nossa própria, observar o aumento dessa distância, a
+ formação gradual de uma área segregada especial na qual as pessoas vêm, aos
+ poucos, a passar os primeiros doze, quinze e agora quase vinte anos de sua
+ vida. O desenvolvimento biológico humano em tempos mais antigos não tomou um
+ curso diferente do de hoje. Só com relação a essa mudança social podemos
+ compreender melhor todos os problemas de “crescer” como se apresentam hoje e,
+ com eles, os “resíduos infantis” na estrutura de personalidade de pessoas
+ crescidas (adultos). A diferença mais pronunciada entre as roupas de crianças e
+ adultos em nosso tempo é apenas uma expressão particularmente visível desse
+ fato. E, também essa diferença era mínima no tempo de Erasmo e durante um longo
+ período depois.
+
+ [...]
+
+ Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a
+ representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante
+ à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo
+ civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás da
+ cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De
+ maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de
+ paredes da consciência.
+
+ [...]
+
+ Uma vez que no curso do processo civilizador o impulso sexual, como tantos
+ outros, está sujeito a controle e transformação cada vez mais rigorosos, muda o
+ problema que ele coloca. A pressão aplicada sobre adultos para privatizar todos
+ os seus impulsos (em especial, os sexuais), a “conspiração de silêncio”, as
+ restrições socialmente geradas à fala, o caráter emocionalmente carregado da
+ maioria das palavras relativas a ardores sexuais, tudo isto constrói uma grossa
+ parede de sigilo em volta do adolescente. O que torna o esclarecimento sexual
+ tão difícil — a derrubada desse muro, que um dia será necessário — não é só a
+ necessidade de fazer o adolescente conformar-se ao mesmo padrão de controle de
+ instintos e de domínio como o adulto. É, acima de tudo, a estrutura de
+ personalidade dos próprios adultos que torna difícil falar sobre essas coisas
+ secretas.
+
+ [...]
+
+ À vista de tudo isso, torna-se claro como deve ser colocada a questão da
+ infância. Os problemas psicológicos de indivíduos que crescem não podem ser
+ compreendidos se forem considerados como se desenvolvendo uniformemente em
+ todas as épocas históricas. Os problemas relativos à consciência e impulsos
+ instintivos da criança variam com a natureza das relações entre ela e os
+ adultos. Essas relações têm em todas as sociedades uma forma específica
+ correspondente às peculiaridades de sua estrutura. [...] Por isso
+ mesmo, os problemas decorrentes da adaptação e modelação de adolescentes ao
+ padrão dos adultos — por exemplo, os problemas específicos da puberdade em
+ nossa sociedade civilizada — só podem ser compreendidos em relação à fase
+ histórica, à estrutura da sociedade como um todo, que exige e mantém esse
+ padrão de comportamento adulto e esta forma especial de relacionamento entre
+ adultos e crianças.
+
+### Relação civilizacional tendencial entre ganhos de liberdade exterior e aumento de coerção interior
+
+ Há evidência de sobra de que, nessa aristocracia de corte, a restrição a
+ relações sexuais ao casamento era frequentemente considerada como burguesa e
+ socialmente descabida. Não obstante, tudo isto dá uma ideia de como um tipo
+ específico de liberdade corresponde diretamente a formas e estágios
+ particulares de interdependência social entre seres humanos.
+
+ As formas linguísticas não dinâmicas, às quais continuamos presos, opõem
+ liberdade a coerção como se fossem céu e inferno. A curto prazo, esse
+ raciocínio em opostos absolutos muitas vezes se mostra razoavelmente adequado.
+ Para quem está na prisão, o mundo do outro lado das grades é um mundo de
+ liberdade. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, não há, ao contrário do
+ que sugerem antíteses como essas, uma suposta liberdade “absoluta”, se por ela
+ entendemos total independência e ausência de qualquer coação social. O que há é
+ libertação, de uma forma de restrição opressiva ou intolerável para outra,
+ menos pesada. Dessa maneira, o processo civilizador, a despeito da
+ transformação e aumento das limitações que impõe às emoções, é acompanhado
+ permanentemente por tipos de libertação dos mais diversos. A forma de casamento
+ nas cortes absolutistas, simbolizada pela igual disposição de salas de estar e
+ quartos de dormir para homens e mulheres nas mansões da aristocracia de corte,
+ constitui um dos muitos exemplos desta situação. A mulher era mais livre de
+ restrições externas do que na sociedade feudal. Mas a coação interior que ela
+ era obrigada a impor a si mesma de acordo com a forma de integração e com o
+ código de comportamento em vigor na sociedade de corte, que se originavam ambos
+ dos mesmos aspectos estruturais dessa sociedade que engendraram sua
+ “liberação”, havia aumentado para ela e para os homens em confronto com a
+ sociedade cavaleirosa.
+
+ [...]
+
+ Burgueses e burguesas libertaram-se das limitações externas a que estiveram
+ sujeitos como pessoas de segunda classe, na hierarquia dos estamentos. Aumentou
+ o entrelaçamento de comércio e dinheiro, cujo crescimento lhes deu o poder
+ social necessário para se libertarem. Mas, neste aspecto, as limitações sociais
+ do indivíduo também são mais fortes do que antes. [...] O motivo por que o
+ trabalho como ocupação, que com a ascensão da burguesia se tornou estilo geral
+ de vida, deveria exigir uma disciplina particularmente rigorosa da sexualidade
+ é uma questão independente; as ligações entre a estrutura da personalidade e a
+ social no século XIX não cabem aqui. Não obstante, para os padrões da sociedade
+ burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na
+ sociedade de corte eram extremamente débeis. [...] Mas ambas as quebras de
+ padrão têm, nessa época, de ser inteiramente excluídas da vida social oficial.
+ Ao contrário do que acontece na corte, devem ser rigorosamente confinadas atrás
+ da cena, banidas para o reino do segredo. Este é apenas um dos muitos exemplos
+ do aumento da reserva e do autocontrole que o indivíduo então se impõe.
+
+ 10. O processo civilizador não segue uma linha reta. A tendência geral da
+ mudança pode ser identificada, como aqui fizemos. Em escala menor, observamos
+ os mais diversos movimentos que se entrecruzam, mudanças e surtos nesta ou
+ naquela direção. Mas se estudamos o movimento da perspectiva de grandes
+ períodos de tempo, vemos claramente que diminuem as compulsões originadas
+ diretamente na ameaça do uso das armas e da força física, e que as formas de
+ dependência que levam à regulação dos efeitos, sob a forma de autocontrole,
+ gradualmente aumentam. Esta mudança desponta em seu aspecto mais retilíneo se
+ observamos os homens da classe alta do tempo — isto é, a classe composta
+ inicialmente de guerreiros ou cavaleiros, em seguida de cortesãos, e finalmente
+ de profissionais burgueses. Se analisamos o tecido de muitas camadas do
+ desenvolvimento histórico, contudo, verificamos que o movimento é infinitamente
+ mais complexo. Em todas as fases ocorrem numerosas flutuações, frequentes
+ avanços ou recuos dos controles internos e externos. O estudo dessas
+ flutuações, particularmente das mais próximas de nós no tempo, pode facilmente
+ obscurecer a tendência geral. Uma delas está presente ainda hoje na memória de
+ todos: no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, em comparação com o
+ período anterior à guerra, parece ter ocorrido uma “relaxação da moral”. Certo
+ número de limitações impostas ao comportamento antes da guerra debilitou-se ou
+ desapareceu inteiramente. Muitas coisas antes proibidas passaram a ser
+ permitidas. Visto bem de perto, o movimento parece estar ocorrendo na direção
+ oposta à demonstrada aqui, a levar a uma relação dos controles impostos ao
+ indivíduo pela vida social. Apurando-se o exame, porém, não é difícil notar que
+ isto é apenas uma recessão muito ligeira, uma das flutuações que constantemente
+ ocorrem na complexidade do movimento histórico, em cada fase do processo total.
+
+ Um dos exemplos no particular é o das roupas de banho. No século XIX, cairia no
+ ostracismo social a mulher que usasse em público os costumes de banho ora
+ comuns. Mas essa mudança, e com ela toda a difusão do esporte entre ambos os
+ sexos, pressupõe um padrão muito elevado de controle de impulsos. Só numa
+ sociedade na qual um alto grau de controle é esperado como normal, e na qual as
+ mulheres estão, da mesma forma que os homens, absolutamente seguras de que cada
+ indivíduo é limitado pelo autocontrole e por um rigoroso código de etiqueta,
+ podiam surgir trajos de banho e esporte com esse relativo grau de liberdade. É
+ uma relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão “civilizado”
+ particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação automática e
+ de transformação de emoções, condicionados para se tornarem hábitos.
+
+ [...]
+
+ O mecanismo de condicionamento, contudo, pouco difere do usado em épocas
+ anteriores. Isto porque não implica uma supervisão mais rigorosa da tarefa, ou
+ planejamento mais exato que leve em conta as circunstâncias especiais da
+ criança, mas é efetuado, principalmente e por meios automáticos e, até certo
+ ponto, por reflexos.
+
+ [...]
+
+ 12. A tendência do processo civilizador a tornar mais íntimas todas as funções
+ corporais, a encerrá-las em enclaves particulares, a colocá-las “atrás de
+ portas fechadas”, produz diversas consequências. Uma das mais importantes, já
+ observada em conexão com várias outras formas de impulsos, notamos com especial
+ clareza no desenvolvimento de limitações civilizadoras à sexualidade. É a
+ peculiar divisão dentro do homem, que se acentua na mesma medida em que os
+ aspectos da vida humana que podem ser exibidos na vida social são separados dos
+ que não podem, e que devem permanecer “privados” ou “secretos”. [...]
+ Em outras palavras, com o avanço da civilização a vida dos seres humanos fica
+ cada vez mais dividida entre uma esfera íntima e uma pública, entre
+ comportamento secreto e público. E esta divisão é aceita como tão natural,
+ torna-se um hábito tão compulsivo, que mal é percebida pela consciência.
+
+ [...]
+
+ Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos
+ socialmente gerados de vergonha e repugnância, entram em luta no interior do
+ indivíduo. Este, conforme já apontamos, é o estado de coisas que Freud tenta
+ descrever através de conceitos como “superego” e “inconsciente” ou, como se diz
+ não sem razões na fala diária, como “subconsciente”. Mas, como quer que seja
+ expresso, o código social de conduta grava-se de tal forma no ser humano, desta
+ ou daquela forma, que se torna elemento constituinte do indivíduo. E este
+ elemento, o superego, tal como a estrutura da personalidade do indivíduo como
+ um todo, necessária e constantemente muda com o código social de comportamento
+ e a estrutura da sociedade. A acentuada divisão do “ego”, ou consciência,
+ característica do homem em nossa fase de civilização, que encontra expressão em
+ termos como “superego” e “inconsciente”, corresponde à cisão específica no
+ comportamento que a sociedade civilizada exige de seus membros. É igual ao grau
+ de regulamentação e restrição imposto à expressão de necessidades profundas e
+ impulsos. Tendências nessa direção podem se desenvolver sob qualquer forma na
+ sociedade humana, mesmo naquelas que chamamos de “primitivas”. Mas a força
+ adquirida em sociedades como a nossa por essa diferenciação, e a forma como ela
+ aparece, são reflexo de um desenvolvimento histórico particular, são resultado
+ de um processo civilizador.
+
+ É isso o que temos em mente quando nos referimos aqui à constante
+ correspondência entre a estrutura social e a estrutura da personalidade, do ser
+ individual.
+
+### A "forma socialmente impressa" da agressividade
+
+ Como todos os demais instintos, ela é condicionada, mesmo em ações visivelmente
+ militares, pelo estado adiantado da divisão de funções, e pelo decorrente
+ aumento na dependência dos indivíduos entre si e face ao aparato técnico. É
+ confinada e domada por inumeráveis regras e proibições, que se transformaram em
+ autolimitações. Foi tão transformada, “refinada”, “civilizada” como todas as
+ outras forma de prazer, e sua violência imediata e descontrolada aparece apenas
+ em sonhos ou em explosões isoladas que explicamos como patológicas.
+
+ [...]
+
+ Deixando de lado uma pequena elite, o saque, a rapinagem, e o assassinato eram
+ práticas comuns da sociedade guerreira dessa época, conforme anotou Luchaire, o
+ historiador da sociedade francesa do século XIII. Há pouca evidência de que as
+ coisas fossem diferentes em outros países ou nos séculos que se seguiram.
+ Explosões de crueldade não excluíam ninguém da vida social. Seus autores não
+ eram banidos. O prazer de matar e torturar era socialmente permitido. Até certo
+ ponto, a própria estrutura social impelia seus membros nessa direção, fazendo
+ com que parecesse necessário e praticamente vantajoso comportar-se dessa
+ maneira.
+
+ O que, por exemplo, devia ser feito com prisioneiros? Era pouco o dinheiro
+ nessa sociedade. Se os prisioneiros podiam pagar e, além disso, eram membros da
+ mesma classe do vitorioso, exercia-se certo grau de contenção. Mas, os outros?
+ Conservá-los vivos significava alimentá-los. Devolvê-los significava aumentar a
+ riqueza e o poder de luta do inimigo. Isto porque os súditos (isto é, os que
+ trabalhavam, serviam e lutavam) faziam parte da riqueza da classe governante
+ daquele tempo. De modo que os prisioneiros eram mortos ou devolvidos tão
+ mutilados que não prestavam mais para serviço de guerra ou trabalho. O mesmo se
+ aplicava à destruição de campos plantados, entupimento de poços e abate de
+ árvores. Em uma sociedade predominantemente agrária, na qual as posses fixas
+ representavam a maior parte da propriedade, isto também servia para enfraquecer
+ o inimigo. A emotividade mais forte do comportamento era até certo ponto
+ socialmente necessária. As pessoas se comportavam de maneira socialmente útil e
+ tinham prazer nisso.
+
+ [...]
+
+ Não que as pessoas andassem sempre de cara feia, arcos retesados e postura
+ marcial como símbolo claro e visível de sua perícia belicosa. Muito pelo
+ contrário, em um momento estão pilheriando, no outro trocam zombarias, uma
+ palavra leva a outra e, de repente, emergindo do riso se veem no meio de uma
+ rixa feroz. Grande parte do que nos parece contraditório — a intensidade da
+ religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências,
+ as explosões desmedidas de alegria e divertimento, a súbita explosão de força
+ incontrolável do ódio e da beligerância — tudo isso, tal como a rápida mudança
+ de estados de ânimo, é na realidade sintoma da mesma estrutura social e de
+ personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre,
+ mais direta, mais aberta, do que mais tarde. Só para nós, para quem tudo é mais
+ controlado, moderado, calculado, em quem tabus sociais mergulham muito mais
+ fundamente no tecido da vida instintiva como forma de autocontrole, é que esta
+ visível intensidade de religiosidade, beligerância ou crueldade parece
+ contraditória. A religião, a crença na onipotência punitiva ou premiadora de
+ Deus nunca teve em si um efeito “civilizador” ou de controle de emoções. Muito
+ ao contrário, a religião é sempre exatamente tão “civilizada” como a sociedade
+ ou classe que a sustenta. E porque as emoções são expressas nessa época de uma
+ maneira que, em nosso mundo, é geralmente observada em crianças, chamamos de
+ “infantis” essas manifestações e formas de comportamento.
+
+ [...]
+
+ Quem quer que não amasse ou odiasse ao máximo nessa sociedade, quem quer que
+ não soubesse defender sua posição no jogo das paixões, podia entrar para um
+ mosteiro, para todos os efeitos. Na vida mundana ele estava tão perdido como,
+ inversamente, estaria numa sociedade posterior, e particularmente na corte, o
+ homem que não pudesse controlá-las, não pudesse esconder e “civilizar” suas
+ emoções.
+
+ [...]
+
+ Nessa sociedade não havia poder central suficientemente forte para obrigar as
+ pessoas a se controlarem. [...] Conforme veremos no detalhe mais adiante, a
+ reserva e a “consideração mútua” entre as pessoas aumentavam, inicialmente na
+ vida social diária comum. E a descarga de emoções em ataque físico se limitava
+ a certos enclaves temporais e espaciais. Uma vez tivesse o monopólio da força
+ física passado a autoridades centrais, nem todos os homens fortes podiam se dar
+ ao prazer do ataque físico. Isto passava nesse instante a ser reservado àqueles
+ poucos legitimados pela autoridade central (como, por exemplo, a polícia contra
+ criminosos) e a números maiores apenas em tempos excepcionais de guerra ou
+ revolução, na luta socialmente legitimada contra inimigos internos ou externos.
+
+ Mas até mesmo esses enclaves temporais ou espaciais na sociedade civilizada,
+ nos quais se deu maior liberdade à beligerância — acima de tudo, nas guerras
+ entre nações — tornaram-se mais impessoais e levavam cada vez menos a uma
+ descarga emocional marcada pelo imediatismo e intensidade da fase medieval.
+ [...] Ainda assim, isso poderia acontecer com maior rapidez do que poderíamos supor,
+ não tivesse o combate físico direto entre um homem e seu odiado adversário
+ cedido lugar a uma luta mecanizada que exige rigoroso controle dos afetos.
+ Mesmo nas guerras do mundo civilizado, o indivíduo não pode mais dar rédea
+ livre ao prazer provocado pela vista do inimigo, mas lutar, pouco importando
+ como se sinta, obedecendo ao comando de chefes invisíveis, ou apenas
+ indiretamente visíveis, e contra inimigos frequentemente invisíveis ou só
+ indiretamente visíveis. E foi preciso uma imensa perturbação social, aguçada
+ por propaganda habilmente concertada, para reacender e legitimar em grandes
+ massas de pessoas os instintos socialmente proibidos, o prazer de matar e a
+ destruição, que foram eliminados do cotidiano da vida civilizada.
+
+ [...]
+
+ Para dar um exemplo, a beligerância e a agressão encontram expressão
+ socialmente permitida nos jogos esportivos. [...] Esse aspecto determina em
+ parte a maneira como se escrevem livros e peças de teatro e influencia
+ decisivamente o papel do cinema em nosso mundo.
+ Essa transformação do que, inicialmente, se exprimia em uma manifestação ativa
+ e frequentemente agressiva, no prazer passivo e mais controlado de assistir
+ (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na educação e nas regras de
+ condicionamento dos jovens.
+
+ Na edição de 1774 da Civilité, de La Salle, lemos (p.23): “Crianças gostam de
+ tocar em roupas e em outras coisas que lhes agradam as mãos. Esta ânsia deve
+ ser corrigida e devem ser ensinadas a tocar o que veem apenas com os olhos.”
+
+ Hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do
+ homem civilizado que seja proibido por autocontrole socialmente inculcado de,
+ espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia. Toda a modelação de
+ seus gestos — pouco importando como o padrão possa diferir entre as nações
+ ocidentais no tocante a detalhes — é decisivamente influenciada por essa
+ necessidade. Já mostramos páginas atrás como o emprego do sentido do olfato, a
+ tendência de cheirar o alimento ou outras coisas, veio a ser restringido como
+ algo animal. Aqui temos uma das interconexões através da qual um diferente
+ órgão dos sentidos, o olho, assume importância muito específica na sociedade
+ civilizada. De maneira semelhante à da orelha, e talvez ainda mais, o olho se
+ torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo
+ pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições.
+
+ [...]
+
+ Todos os que caírem fora dos limites desse padrão social são considerados
+ “anormais”. Por conseguinte, alguém que desejasse gratificar seu prazer à
+ maneira do século XVI, queimando gatos, seria hoje considerado “anormal”
+ simplesmente porque o condicionamento normal em nosso estágio de civilização
+ restringe a manifestação de prazer nesses atos mediante uma ansiedade instilada
+ sob a forma de autocontrole.
+ Neste caso, obviamente, opera o mesmo tipo de mecanismo psicológico com base no
+ qual ocorreu a mudança a longo prazo da personalidade: manifestações
+ socialmente indesejáveis de instintos e prazer são ameaçadas e punidas com
+ medidas que geram e reforçam desagrado e ansiedade. Na repetição constante do
+ desagrado despertado pelas ameaças, e na habituação a esse ritmo, o desagrado
+ dominante é compulsoriamente associado até mesmo a comportamentos que, na sua
+ origem, possam ser agradáveis. Dessa maneira, o desagrado e a ansiedade
+ socialmente despertados — hoje representados, embora nem sempre nem
+ exclusivamente, pelos pais — lutam com desejos ocultos. O que foi mostrado
+ aqui, de diferentes ângulos, como um avanço nas fronteiras da vergonha, do
+ patamar da repugnância, dos padrões das emoções, provavelmente foi posto em
+ movimento por mecanismos como esses.
+
+### Em tempos medievais
+
+ A forca, o símbolo do poder judiciário de cavaleiro, é parte do ambiente de sua
+ vida. Talvez não seja muito importante, mas, de qualquer maneira, não é um
+ espetáculo particularmente doloroso. Sentença, execução, morte tudo isto é uma
+ presença constante nessa vida. Elas, também, não foram ainda removidas para
+ trás da cena.
+
+ [...]
+
+ por exemplo, na obra de Breughel, um padrão de repugnância que lhe permite
+ trazer para as telas aleijados, camponeses, cadafalsos, ou pessoas que se
+ aliviam de necessidades corporais. Mas o padrão visto neles está vinculado a
+ sentimentos sociais muito diferentes dos que vemos nesses quadros em que
+ aparece a classe alta de fins do período medieval.
+
+ [...]
+
+ Essas cenas de amor são tudo, menos “obscenas”. O amor é apresentado nelas como
+ tudo o mais na vida do cavaleiro fidalgo, torneios, caçadas, campanhas,
+ pilhagens. As cenas não são especialmente ressaltadas. Não sentimos em sua
+ representação coisa alguma da violência, da tendência para excitar ou
+ gratificar a satisfação de desejos negados na vida, característica de tudo o
+ que é “obsceno”. Esse desenho não nasce de uma alma oprimida, nem revela nada
+ de “secreto” mediante a violação de tabus.
+
+ [...]
+
+ Todas essas cenas são o retrato de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão
+ a impulsos e sentimentos de forma incomparavelmente mais fácil, rápida,
+ espontânea e aberta do que hoje, na qual as emoções eram menos controladas e,
+ em consequência, menos reguladas e passíveis de oscilar mais violentamente
+ entre extremos.
+
+ Mas tais restrições e controles se faziam em uma direção diferente e em grau
+ menor que em períodos posteriores, e não assumiam a forma de autocontrole
+ constante, quase automático. O tipo de integração e interdependência em que
+ viviam essas pessoas não as compelia a abster-se de funções corporais uma na
+ frente da outra ou a controlar seus impulsos agressivos na mesma extensão que
+ na fase seguinte. Isto se aplica a todos. Mas, claro, para os camponeses, a
+ margem para agressão era mais restrita do que para o cavaleiro — isto é,
+ restrita a seus pares. [...] Uma restrição de ordem social às vezes se
+ impunha ao camponês pelo simples fato de que não tinha o suficiente para comer.
+ Isto certamente representa um controle de impulsos do mais alto grau e que
+ afeta todo o comportamento do ser humano. Mas ninguém prestava atenção a isso e
+ esta situação social dificilmente lhe tornava necessário impor controles a si
+ mesmo quando assoava o nariz, escarrava, ou pegava vorazmente comida na mesa.
+
+ [...]
+
+ A manifestação de sentimentos na sociedade medieval é, de maneira geral, mais
+ espontânea e solta do que no período seguinte. Mas não é livre ou sem modelagem
+ social em qualquer sentido absoluto. O homem sem restrições é um fantasma.
+ Reconhecidamente, a natureza, a força, o detalhamento de proibições, controles
+ e dependências mudam de centenas de maneiras e, com elas, a tensão e o
+ equilíbrio das emoções e, de idêntica maneira, o grau e tipo de satisfação que
+ o indivíduo procura e consegue.
+
+### Autocontrole como resposta ao avanço da interdependência
+
+ Quanto mais avançam a interdependência e a divisão de trabalho na sociedade,
+ mais dependente a classe alta se torna das outras e maior, por conseguinte, a
+ força social destas, pelo menos potencialmente. Mesmo quando ela ainda é
+ principalmente uma classe guerreira, quando mantém as outras classes
+ dependentes sobretudo pela espada e o monopólio das armas, algum grau de
+ dependência dessas outras classes não está de todo ausente. Mas é
+ incomparavelmente menor, e menor também é, conforme veremos em mais detalhes
+ adiante, a pressão vinda de baixo. Em consequência, o senso de domínio da
+ classe alta, seu desprezo pelas demais, é muito mais franco, e muito menos
+ forte a pressão sobre ela para praticar moderação e controlar seus impulsos.
+
+ [...]
+
+ Um novo comedimento, um controle e regulação novo e mais extenso do
+ comportamento que a velha vida cavaleirosa fazia necessário ou possível, são
+ agora exigidos do nobre. São resultado da nova e maior dependência em que foi
+ colocado o nobre. Ele não é mais um homem relativamente livre, senhor de seu
+ castelo, do castelo que é sua pátria.
+
+### Para uma teoria sobre civilizações
+
+ como e por que, no curso de transformações gerais da sociedade, que ocorrem em
+ longos períodos de tempo e em determinada direção — e para as quais foi adotado
+ o termo “desenvolvimento” —, a afetividade do comportamento e experiência
+ humanos, o controle de emoções individuais por limitações externas e internas,
+ e, neste sentido, a estrutura de todas as formas de expressão, são alterados em
+ uma direção particular? Essas mudanças são indicadas na fala diária quando
+ dizemos que pessoas de nossa própria sociedade são mais “civilizadas” do que
+ antes, ou que as de outras sociedades são mais “incivis” ou menos “civilizadas”
+ (ou mesmo mais “bárbaras”) que as da nossa. São óbvios os juízos de valor
+ contidos nessas palavras, embora sejam menos óbvios os fatos a que se referem.
+ Isto acontece em parte porque os estudos empíricos de transformações a longo
+ prazo de estruturas de personalidade, e em especial de controle de emoções, dão
+ origem a grandes dificuldades no estágio atual das pesquisas sociológicas. À
+ frente do interesse sociológico no presente, encontramos processos de prazo
+ relativamente curto e, em geral, apenas problemas relativos a um dado estado da
+ sociedade. As transformações a longo prazo das estruturas sociais e, por
+ conseguinte, também, das estruturas da personalidade, perderam-se de vista na
+ maioria dos casos.
+
+ O presente estudo diz respeito a esses processos de longo prazo. A sua
+ compreensão pode ser facilitada por uma curta indicação dos vários tipos que
+ esses processos assumem. Para começar, podemos distinguir duas direções
+ principais nas mudanças estruturais das sociedades: as que tendem para maior
+ diferenciação e integração, e as que tendem para menos. Além disso, há um
+ terceiro tipo de processo social, no curso do qual é mudada a estrutura de uma
+ sociedade, ou de alguns de seus aspectos particulares, mas sem haver tendência
+ de aumento ou diminuição no nível de diferenciação e integração. Por último,
+ são incontáveis as mudanças na sociedade que não implicam mudança em sua
+ estrutura. Este trabalho não faz justiça a toda a complexidade dessas mudanças,
+ porquanto numerosas formas híbridas, e não raro vários tipos de mudança, mesmo
+ em direções opostas, podem ser observadas simultaneamente na mesma sociedade.
+ Mas, por ora, este curto esboço dos diferentes tipos de mudança deve bastar
+ para indicar os problemas de que trata este estudo.
+
+ O primeiro volume concentra-se, acima de tudo, na questão de saber se a
+ suposição, baseada em observações dispersas, de que há mudanças a longo prazo
+ nas emoções e estruturas de controle das pessoas em sociedades particulares —
+ mudanças que se desenvolvem ao longo de uma única e mesma direção durante
+ grande número de gerações — pode ser confirmada por evidência fidedigna e
+ encontrar comprovação factual.
+
+ [...]
+
+ A demonstração de uma mudança em emoções e estruturas de controle humanas que
+ ocorre ao longo de muitas gerações, e na mesma direção ou, em curtas palavras,
+ o aumento do reforço e diferenciação dos controles — gera outra questão: é
+ possível relacionar essa mudança a longo prazo nas estruturas da personalidade
+ com mudanças a longo prazo na sociedade como um todo, que de igual maneira
+ tendem a uma direção particular, a um nível mais alto de diferenciação e
+ integração social? O segundo volume trata desses problemas.
+
+ No tocante a essas mudanças estruturais a longo prazo da sociedade, falta
+ também prova empírica. Tornou-se, por conseguinte, necessário no segundo volume
+ dedicar parte do mesmo à descoberta e elucidação das ligações factuais nesta
+ segunda área. A questão é se uma mudança estrutural da sociedade como um todo,
+ tendendo a um nível mais alto de diferenciação e integração, pode ser
+ demonstrada com ajuda de evidência empírica confiável. Isto se revelou
+ possível. O processo de formação dos Estados nacionais, discutido no segundo
+ volume, constitui um exemplo desse tipo de mudança estrutural. Finalmente, em
+ um esboço provisório de uma teoria de civilização, elabora-se um modelo, a fim
+ de demonstrar possíveis ligações entre a mudança a longo prazo nas estruturas
+ da personalidade no rumo da consolidação e diferenciação dos controles
+ emocionais, e a mudança a longo prazo na estrutura social com vistas a um nível
+ mais alto de diferenciação e integração como, por exemplo, visando a uma
+ diferenciação e prolongamento das cadeias de interdependência e à consolidação
+ dos “controles estatais”.
+
+ [...]
+
+ Facilmente se pode compreender que ao adotar uma metodologia voltada para
+ ligações factuais e suas explicações (isto é, um enfoque empírico e teórico
+ preocupado com mudanças estruturais de longo prazo de um tipo específico, ou
+ “desenvolvimento”), abandonamos as ideias metafísicas que vinculam o conceito
+ de desenvolvimento à noção ou de uma necessidade mecânica ou de uma finalidade
+ teleológica.
+
+ [...]
+
+ este estudo nem era de uma “evolução”, no sentido do século XIX, de um
+ progresso automático, nem de uma “mudança social” inespecífica no sentido do
+ século XX. Naquele tempo isto me pareceu tão óbvio que deixei de mencionar
+ explicitamente essas implicações teóricas. A introdução à segunda edição me dá
+ a oportunidade de corrigir essa omissão.
+
+ [...]
+
+ A situação é semelhante no tocante a grande número de outros problemas aqui
+ estudados. Quando, após vários estudos preparatórios que me permitiram
+ investigar a evidência documentária e explorar os problemas teóricos
+ gradualmente emergentes, o caminho para uma possível solução pareceu mais
+ claro, tornei-me consciente de que este estudo ajuda a solucionar o renitente
+ problema da ligação entre estruturas psicológicas individuais (as assim
+ chamadas estruturas de personalidade) e as formas criadas por grandes números
+ de indivíduos interdependentes (as estruturas sociais). E o faz porque aborda
+ ambos os tipos de estruturas não como fixos, como em geral acontece, mas como
+ mutáveis, como aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo
+ prazo.
+
+### Os limites de conceber as coisas como um mero jogo de cartas
+
+ A fim de exemplificar este fato, bastará discutir a maneira como o homem que é
+ atualmente considerado o principal teórico da sociologia, Talcott Parsons,
+ tenta colocar e solucionar alguns dos problemas aqui estudados. É
+ característico do enfoque teórico de Parsons tentar dissecar analiticamente, em
+ seus componentes elementares, como disse ele certa vez,1 os diferentes tipos de
+ sociedades em seu campo de observação. A um tipo particular de componente
+ elementar ele chamou de “variáveis de padrão”. Essas variáveis de padrão
+ incluem a dicotomia entre “afetividade” e “neutralidade afetiva”. Sua concepção
+ pode ser mais bem-entendida comparando-se a sociedade com um jogo de cartas:
+ cada tipo de sociedade, na opinião de Parsons, representa uma “mão” diferente.
+ As cartas, porém, são sempre as mesmas e seu número é pequeno, por mais
+ diversas que sejam suas faces. Uma das cartas com que o jogo é disputado é a
+ polaridade entre afetividade e neutralidade afetiva. Parsons concebeu
+ originariamente essa ideia, segundo nos diz, analisando os tipos de sociedade
+ de Tönnies, a Gemeinschaft (comunidade) e Gesellschaft (sociedade). A
+ “comunidade”, parece acreditar ele, caracteriza-se pela afetividade, e a
+ “sociedade”, pela neutralidade afetiva. Mas, ao determinar as diferenças entre
+ diferentes tipos de sociedade, e diferentes tipos de relacionamentos dentro da
+ mesma, ele atribui a essa “variável de padrão” no jogo de cartas, como a
+ outras, um significado inteiramente geral. No mesmo contexto, Parsons trata do
+ problema da relação entre estrutura social e personalidade.2 Indica que
+ conquanto antes os tivesse interpretado simplesmente como “sistemas de ação
+ humana” estreitamente vinculados e interatuantes, agora pode declarar com
+ certeza que, em um sentido teórico, eles são fases, ou aspectos, diferentes de
+ um único e mesmo sistema de ação fundamental. Ilustra isto com um exemplo,
+ explicando que o que no plano sociológico pode ser considerado como uma
+ institucionalização da neutralidade afetiva é, essencialmente, o mesmo que no
+ nível da personalidade pode ser considerado como “na imposição da renúncia à
+ gratificação imediata, no interesse da organização disciplinada e dos objetivos
+ a longo prazo da personalidade”.
+
+ [...]
+
+ [1] in Talcott Parsons, Essays in Sociological Theory (Glencoe, 1963), p.359 e segs.
+
+ [...]
+
+ O que, neste livro, com ajuda de extensa documentação empírica se mostra que é
+ um processo, Parsons, pela natureza estática de seus conceitos, reduz
+ retrospectivamente, e em minha opinião sem nenhuma necessidade, a estados. Em
+ vez de um processo relativamente complexo, mediante o qual a vida afetiva das
+ pessoas é gradualmente levada a um maior e mais uniforme controle de emoções —
+ mas certamente não a um estado de total neutralidade afetiva —, Parsons sugere
+ uma simples oposição entre dois estados, afetividade e neutralidade afetiva,
+ que supostamente estariam presentes em graus diferentes em diferentes tipos de
+ sociedade, tal como quantidades diferentes de substâncias químicas.
+
+ [...]
+
+ Os fenômenos sociais, na verdade, só podem ser observados como evoluindo e
+ tendo evoluído. Sua dissecação por meio de pares de conceitos, que restringem a
+ análise a dois estados antitéticos, representa um desnecessário empobrecimento
+ da percepção sociológica tanto a nível empírico como teórico.
+
+ [...]
+
+ As categorias básicas selecionadas por Parsons, no entanto, parecem-me
+ arbitrárias no mais alto grau. Subjacentes a elas há a noção tácita, não
+ comprovada e supostamente axiomática, de que o objetivo de toda teoria
+ científica é o de reduzir tudo o que é variável a algo invariável, e
+ simplificar todos os fenômenos complexos dissecando-os em seus componentes
+ individuais.
+
+Construções auxiliares desnecessariamente complicadas:
+
+ O exemplo da teoria de Parsons, no entanto, sugere que a teorização no campo da
+ sociologia é mais complicada, do que simplificada, por uma sistemática redução
+ dos processos sociais a estados sociais, e de fenômenos complexos,
+ heterogêneos, a componentes mais simples e só aparentemente homogêneos. Este
+ tipo de redução e abstração poderia justificar-se como método de teorização
+ apenas se levasse, inequivocamente, a uma compreensão mais clara e profunda
+ pelos homens de si mesmos como sociedades e como indivíduos. Em vez disso,
+ descobrimos que as teorias formuladas por esses métodos, tal como a teoria do
+ epiciclo de Ptolomeu, exigem construções auxiliares desnecessariamente
+ complicadas, a fim de fazer com que concordem com os fatos observáveis. Não
+ raro elas parecem nuvens escuras das quais, daqui e dali, caem uns poucos raios
+ de luz que tocam a terra.
+
+Processos:
+
+ Na verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias
+ sociológicas ou de outra natureza que tratem de seres humanos. Conforme
+ demonstrado neste estudo, a relação entre o indivíduo e as estruturas sociais
+ só pode ser esclarecida se ambos forem investigados como entidades em mutação e
+ evolução. Só então será possível construir modelos de seus relacionamentos,
+ como é feito aqui, que concordam com fatos demonstráveis.
+
+ [...]
+
+ Sem jamais dizer isto clara e abertamente, Parsons e todos os sociólogos da
+ mesma inclinação imaginam que existam separadamente essas coisas a que se
+ referem os conceitos de “indivíduo” e “sociedade”. Assim — para dar apenas um
+ exemplo —, Parsons adota a noção, já desenvolvida por Durkheim, de que a
+ relação entre “indivíduo” e “sociedade” é uma “interpenetração” do indivíduo e
+ do sistema social. Como quer que essa “interpenetração” seja concebida, o que
+ mais pode essa metáfora significar, senão que estamos tratando de duas
+ entidades diferentes que, primeiro, existem separadamente e que depois se
+ “interpenetram”?3
+
+Segue uma ótima crítica à sociologia estrutural/estática que enxerga sociedades
+como sistemas em repouso e que apenas buscam o repouso quando ocorre algum acidente
+perturbando seu equilíbrio homeostático.
+
+### Humildar: sacar mais qual é a real e não se iludir
+
+ Muitos dos artigos de fé sociológicos pioneiros não foram mais aceitos pelos
+ sociólogos do século XX. Eles incluíam, acima de tudo, a crença em que o
+ desenvolvimento da sociedade é necessariamente uma evolução para o melhor, um
+ movimento na direção do progresso. Esta crença foi categoricamente rejeitada
+ por muitos sociólogos posteriores, de acordo com sua própria experiência
+ social.
+
+ [...]
+
+ Se, no século XIX, concepções específicas do que devia ser ou do que se
+ desejava que fosse — concepções ideológicas específicas — levaram a um
+ interesse fundamental pelo desenvolvimento da sociedade, no século XX outras
+ concepções do que devia ser ou era desejável — outras concepções ideológicas —
+ geraram pronunciado interesse entre os principais teóricos pelo estado da
+ sociedade como ela se encontra, negligenciando os problemas da dinâmica das
+ formações sociais, e sua falta de interesse por problemas de processo de longa
+ duração e por todas as oportunidades de explicação que o estudo desses
+ problemas proporciona.
+
+ [...]
+
+ Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os
+ primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam
+ as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes
+ industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a
+ ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas
+ de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com
+ sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um
+ futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no
+ futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento
+ da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais
+ emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o
+ desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças.
+ Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento
+ social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre
+ doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela
+ época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de
+ importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a
+ fatos verificáveis.
+
+ Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra
+ razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização,
+ cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que
+ ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um
+ passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados
+ dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os
+ que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida
+ tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os
+ adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes
+ classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação
+ ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor,
+ no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes
+ dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro
+ mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o
+ progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes
+ das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se
+ identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses
+ como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim.
+
+ [...]
+
+ O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas
+ procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o
+ arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas
+ sociais. Isto porque só poderemos reunir conhecimentos sociológicos adequados o
+ suficiente para serem usados na solução dos agudos problemas da sociedade se,
+ quando equacionamos e resolvemos problemas sociológicos, deixamos de subordinar
+ a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções
+ devem ser.
+
+A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial:
+
+ Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua
+ oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com
+ ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a
+ ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que
+ exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de
+ influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O
+ que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da
+ prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que
+ deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi.
+
+ [...]
+
+ Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as
+ pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como
+ ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira”
+ realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras
+ começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas
+ concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um
+ indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social”
+ igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza
+ do problema.
+
+### Indivíduo como sujeito aberto
+
+ No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em
+ uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual
+ usado aqui, realmente significa.
+
+ [...]
+
+ Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico.
+ Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo
+ “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber
+ seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o
+ processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são
+ ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da
+ humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a
+ compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a
+ chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de
+ conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a
+ “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia
+ causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem
+ precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo
+ inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade.
+ [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber
+ processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações
+ formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender
+ os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de
+ imagem do homem e da sua percepção de si mesmo.
+ [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o
+ que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de
+ todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir
+ importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua
+ vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as
+ pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes,
+ formando configurações mutáveis entre si.
+
+ [...]
+
+ A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias
+ estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito
+ aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos,
+ isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a
+ processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária
+ convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da
+ Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio
+ isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é
+ “exterior”.
+
+ [...]
+
+ Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na
+ literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a
+ incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...]
+ Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência
+ eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra
+ explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio
+ no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as
+ formam?
+
+ [...]
+
+ Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos
+ conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários
+ para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para
+ heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na
+ capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos
+ científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente
+ aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária,
+ irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de
+ seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um
+ conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por
+ conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido
+ de maior autocontrole pelo homem.
+
+ [...]
+
+ Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o
+ desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de
+ objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para
+ consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças
+ rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez
+ contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo
+ espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento
+ nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções,
+ desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau
+ mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do
+ mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por
+ outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos
+ observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto
+ tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos
+ muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da
+ natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa
+ científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem
+ acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora
+ republico examino a partir de outros aspectos.
+
+ [...]
+
+ O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira
+ puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de
+ forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por
+ conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o
+ homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios
+ seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da
+ sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse
+ respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se
+ relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os
+ homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os
+ processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade
+ ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação
+ ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do
+ conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e
+ finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o
+ suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria
+ contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o
+ sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da
+ indagação científica.
+
+ [...]
+
+ Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social,
+ tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se
+ interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e
+ emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais
+ eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação)
+ sem a permissão desses mecanismos de controle.
+
+ [...]
+
+ Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de
+ autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais
+ forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação
+ afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas
+ ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si
+ mesmas um objeto de investigação.
+
+ [...]
+
+ Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade
+ individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se
+ perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de
+ indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe
+ fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos
+ humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O
+ controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa
+ mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais
+ implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se
+ manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de
+ controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que
+ separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes
+ versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo”
+ da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e
+ emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na
+ autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o
+ verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é
+ uma metáfora conveniente, mas que induz em erro.
+
+### O conceito de configuração
+
+ A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de
+ “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto
+ ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante
+ toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente
+ delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas
+ formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de
+ pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou
+ menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde
+ através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades
+ recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer,
+ apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que,
+ conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à
+ imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de
+ numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou
+ sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico,
+ desaparece a cisão na visão tradicional do homem.
+
+### Dança, mu-dança
+
+ O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente
+ explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo
+ mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na
+ polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de
+ pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar
+ Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e
+ feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as
+ antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje
+ no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na
+ dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do
+ indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente
+ ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
+ reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais
+ configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos
+ específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria
+ absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações
+ de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais
+ configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam —
+ tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou
+ com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de
+ sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças.
+
+### Dinâmica criadora de monopólios
+
+ Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do
+ Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais
+ relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação
+ mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há
+ explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma
+ mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma,
+ a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades
+ livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso
+ dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas
+ grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição
+ social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na
+ rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica
+ como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto
+ com essas mudanças de configuração.