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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-10-06 13:41:25 -0300
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Books: A Cidade Perversa
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--- /dev/null
+++ b/books/philosophy/cidade-perversa.md
@@ -0,0 +1,162 @@
+[[!meta title="A Cidade Perversa"]]
+
+* Uau! Como ressoa com as leituras de Elias, Marcuse e Hans Sachs.
+* Marquês de Sade versus Sady Baby?
+
+## Trechos
+
+### Zanga
+
+ 58A zanga é provavelmente o primeiro jogo de cartas feito para levar a melhor
+ (tipo de jogo no qual os jogadores mostram alternadamente uma carta na mesa, e
+ aquele que jogou a carta mais forte, segundo as regras do jogo, se apodera de
+ tudo, abrindo e fechando as cartas). Foi muito jogado na França no século XVII
+ e no início do século XVIII, e continua em uso com regras muito semelhantes com
+ o nome de tresillo na Espanha, hombre [como na França] na Dinamarca e tridge na
+ Inglaterra.
+
+### Misc
+
+ 103
+ A leitura de Mandeville permite entender o que muitos estudos econômicos
+ não conseguem explicar. Não teria sido possível o desenvolvimento do
+ capitalismo sem a liberação das paixões. Aí é que se encontra, em minha
+ opinião, a resposta a essa pergunta, até hoje sem resposta, concludente e
+ constantemente reiterada desde Marx. Por que exatamente o capitalismo, tendo
+ amadurecido desde a Idade Média, finalmente nasceu na Europa por volta de
+ 1700, nas Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na
+ Inglaterra? Por que, se em tantos lugares existiam poderosos mercados
+ tradicionais, nenhum se transformou em mercado liberal capitalista? Por que
+ essa transformação ocorreu na Europa por volta de 1700, e não nos séculos de
+ ouro do Império Romano, sob a dinastia dos Antoninos, tanto mais que a
+ primeira máquina a vapor, a eolípila, acabava de ser inventada por Héron de
+ Alexandria? Ou ainda na China, por exemplo, no apogeu da dinastia Qing, nos
+ séculos XVII e XVIII? Ou ainda no apogeu do Império Otomano, no século XVI,
+ por exemplo, sob Solimão, o Magnífico? Ou ainda na Índia, na época da
+ dinastia Maurya, no século IV antes de Jesus Cristo, durante a qual foi
+ escrito o primeiro tratado de economia política, intitulado Arthaçastra —
+ Instrução sobre a prosperidade material? E ainda poderíamos mencionar muitos
+ outros lugares. A única resposta possível parece-me a seguinte: as condições
+ materiais identificadas por Marx provavelmente estavam reunidas nesses
+ diferentes lugares (acumulação primitiva, tendo por um lado uma mão de obra
+ desenraizada e, por outro, fluxos de dinheiro), mas a condição moral, ou
+ antes, amoral, não estava. Quero dizer que nesses lugares as paixões eram
+ contidas em sistemas simbólicos poderosos, ao passo que aqui foram liberadas.
+ Essa liberação das paixões ao longo dos séculos XVII e XVIII é que permitiu a
+ entrada no capitalismo.
+
+ 104
+ Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração
+ do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo
+ pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas
+ morais. E, de fato, ele o era — ao mesmo tempo trazendo consigo formas
+ absolutamente inéditas de alienação.
+
+ [...]
+
+ Mas, sobretudo, a colmeia é uma ilustração perfeita do gênio do Criador da
+ natureza, que consegue construir uma organização extremamente complexa,
+ implicando a divisão do trabalho entre os homens, a partir de uma única causa
+ muito simples: o amor próprio (chamado de self-liking por Mandeville).
+ Utilizando da melhor maneira possível este simples e mesmo estúpido amor
+ próprio, gerando todas as libidos possíveis, podemos chegar, sem precisar
+ intervir com leis jurídicas ou regras morais, a uma metáfora “admirável”, tão
+ perfeita quanto a da colmeia. Existe aí uma espécie de astúcia do Criador,
+ que utiliza os defeitos dos homens para criar, apesar deles próprios, uma
+ ordem perfeita que os transcende. É pura e simplesmente o projeto
+ cibernético, tal como viria a ser desenvolvido por Norbert Wiener, que já
+ está contido na ideia de colmeia, já que ela é organizada de acordo com um
+ programa perfeito de grande complexidade, que resulta de subprogramas muito
+ simples (comportando apenas algumas instruções) seguidos por cada um dos
+ habitantes.101
+
+ [...]
+
+ O que me parece analisar mais radicalmente a colmeia mandevilliana, no que
+ ela tem de extremamente inquietante para a liberdade humana, com esses homens
+ incapazes de sair de uma total alienação aos seus vícios, é o castelo
+ sadeano, que também se organiza a partir de uma exploração sistemática de
+ todas as paixões imagináveis e mesmo inimagináveis.
+
+ [...]
+
+ 145
+
+ Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter
+ visto que toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional.
+ Se Marx tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação
+ desses monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda
+ paixão, exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente
+ nociva entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na
+ economia libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum
+ freudo-marxista, nem mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de
+ resolver. Se Marx tivesse lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral
+ das paixões. O mundo poderia ter sido reformado de outra maneira. Teríamos
+ evitado a captação e o desvio dos espíritos resistentes à teodiceia smithiana
+ nas falsas alternativas ao capitalismo representadas pelas economias
+ socialistas, que só poderiam levar ao mais lamentável dos fiascos.
+
+ Ao passo que, para Kant, era absolutamente necessário regular — a moral deve
+ ser baseada no imperativo categórico consistindo em se impor a si mesmo uma
+ lei na vida prática —, para Smith cabia, sobretudo, deixar fazer [laisser
+ faire], vale dizer, desregular — o que conduz logicamente a Sade.
+
+ [...]
+
+ Postulada essa distinção entre os dois Iluminismos, fica mais fácil indicar o
+ que distingue a modernidade da pós-modernidade. A modernidade é o equilíbrio
+ instável entre essas duas correntes opostas. Terá durado um século e meio. A
+ pós-modernidade é o recuo cada vez mais acentuado da zona transcendental que
+ remete ao que “não tem preço, mas uma dignidade” (Kant), em proveito do
+ princípio liberal, segundo o qual tudo tem um preço (Smith).
+
+ Com efeito, podemos conceber Sade como aquele que, no fim do século, se
+ apropriou dessas teses liberais, por sinal de maneira extremamente sadeana,
+ levando-as a suas últimas consequências e mostrando, de uma forma que tendo a
+ considerar irretocável, aonde conduz, do ponto de vista do ser-si-mesmo e do
+ ser-junto, a sua escolha, constantemente reiterada ao longo de seus textos,
+ da moral egoísta contra a moral altruísta.
+
+ Fazer de Sade um homem-chave do seu século, o século XVIII, é, portanto,
+ afastar-se das interpretações tão frequentes quanto anacrônicas que pretendem
+ considerá-lo arauto perfeito dos sistemas fascistas. Basta pensar, por
+ exemplo, na posição assumida por um autor tão estimável quanto Pasolini no
+ filme intitulado Salò ou Os cento e vinte dias de Sodoma, lançado no fim de
+ 1975. É provável que Pasolini, irritado com as visões, cada vez mais
+ frequentes depois de 1968, de um Sade simpático, bon vivant, alvo de
+ perseguições dos obscurantistas de sua época, tenha pretendido reagir a esse
+ absoluto contrassenso. Com isso, situou a ação de Os cento e vinte dias… em
+ Salò, a cidade do norte da Itália onde Mussolini se refugiara no fim da
+ Segunda Guerra Mundial para fundar uma república fascista. Como sabemos, foi
+ o último filme de Pasolini: ele seria assassinado após o lançamento.
+
+ A morte trágica de Pasolini nos faz pensar. Não podemos, com efeito, passar por
+ cima de uma questão pungente: será que as circunstâncias de sua morte… não
+ desmentiriam sua tese? Pois ele foi morto, de maneira extremamente sadeana, não
+ por fascistas, mas por jovens extremamente liberados, tão liberados que não
+ tinham controle de suas paixões e pulsões, já que, pelo que sabemos, foi um
+ jovem prostituto romano de dezessete anos, um dos que eram frequentados por
+ Pasolini, que o matou a cacetadas no dia 1º de novembro de 1975, para em
+ seguida esmagá-lo várias vezes com seu próprio carro na praia de Ostia, perto
+ de Roma.
+
+ [...]
+
+ Situar Sade dessa maneira permite adiantar que o liberalismo tem duas faces:
+ uma face puritana, representada pelo “primeiro filho” de Mandeville, vale
+ dizer, Adam Smith, e uma face perversa, indissociavelmente ligada, representada
+ pelo “segundo filho” de Mandeville, Sade. Em outras palavras, devemos entender
+ o liberalismo como um sistema bifronte, à Janus, vale dizer, como um conjunto
+ perverso-puritano.
+
+ O que poderia ser dito assim: o liberalismo é Smith com Sade.
+
+ 153
+
+ A tese que defendo, portanto, é a seguinte: Sade diz a verdade do liberalismo e
+ por esse motivo é que foi necessário aprisioná-lo durante toda a vida e
+ atirá-lo no inferno após a morte, enquanto o conto da harmonização dos
+ interesses privados pela mão invisível, prometido pela teodiceia puritana de
+ Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto
+ apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e
+ escondido por alguns eruditos durante dois séculos.