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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-06-15 10:37:40 -0300 |
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Expressadas provisória e aproximativamente, nesse instante, mais + diretamente do que antes, são as compulsões menos visíveis e mais impessoais da + interdependência social, a divisão do trabalho, o mercado, a competição, que + impõem restrições e controle aos impulsos e emoções. São essas pressões, e os + correspondentes tipos de explicação e condicionamento acima mencionados, que + fazem parecer que o comportamento socialmente desejável seja gerado + voluntariamente pelo próprio indivíduo, por sua própria iniciativa. Isto se + aplica à regulação e às restrições de impulsos necessárias ao “trabalho”, e + também a todo padrão de acordo com o qual eles são modelados nas sociedades + industrializadas burguesas. + + [...] + + Em ambos os casos, na sociedade aristocrática da corte e nas sociedades + burguesas dos séculos XIX e XX, as classes superiores são socialmente + controladas em escala particularmente alta. O papel fundamental desempenhado + por essa crescente dependência das classes superiores, como mola propulsora da + civilização, será demonstrado adiante. + + [...] + + Tabus e restrições de vários tipos acompanham a expectoração de catarro, como + de outras funções corporais, em muitas sociedades, tanto “primitivas” como + “civilizadas”. O que as distingue é o fato de que, nas primeiras, eles são + sempre mantidos por medo de outras pessoas, ou seres, mesmo que imaginários — + isto é, por controles externos — ao passo que, nas últimas, são transformados + mais ou menos completamente em controles internos. As tendências proibidas (por + exemplo, a tendência para escarrar) desaparecem em parte da consciência, sob + pressão desse controle interno, ou, como poderia ser também chamado, do + superego e do “hábito de previsão”. O que sobra na consciência como motivação + da ansiedade é alguma consideração de longo prazo. Assim, em nossa época o medo + de escarrar, e os sentimentos de vergonha e repugnância nos quais isto se + expressa, concentram-se na ideia mais precisamente definida e logicamente + compreensível de certas doenças e suas “causas”, e não em torno da imagem de + influências mágicas, deuses, espíritos, ou demônios. Mas a série de exemplos + mostra também com grande clareza que a compreensão racional das origens de + certas doenças, do perigo do esputo como transmissor, não é a causa primária do + medo e da repugnância nem a mola propulsora da civilização, a força por trás + das mudanças no comportamento no tocante ao hábito de escarrar. + + [...] + + Vale a pena deixar esclarecido, de uma vez por todas, que algo que sabemos ser + prejudicial à saúde de maneira alguma desperta necessariamente sentimentos de + desagrado ou vergonha. E, reciprocamente, algo que desperta esses sentimentos + não tem que ser prejudicial à saúde. Alguém que coma hoje barulhentamente ou + com as mãos provoca profundo desagrado, mas sem que haja o menor receio pela + saúde. E nem a ideia de ler com má iluminação nem a de gás venenoso, por + exemplo, despertam sentimentos de desagrado ou vergonha remotamente + semelhantes, embora sejam óbvias suas más consequências para a saúde. Desta + maneira, o nojo da expectoração, e os tabus que a cercam, aumentam muito antes + que as pessoas tenham uma ideia clara da transmissão de certas doenças pelo + escarro. O que inicialmente prova e agrava os sentimentos de nojo e as + restrições é a transformação das relações e dependência humanas. + + [...] + + A motivação fundada na consideração social surge muito antes da motivação por + conhecimento científico. O rei, como “sinal de respeito”, exige esse + comportamento de seus cortesãos. Nos círculos da corte, este sinal da + dependência em que ela vive, a crescente compulsão para controlar-se e + moderar-se torna-se uma “marca de distinção” a mais, que é imediatamente + imitada abaixo e difundida com a ascensão de classes mais numerosas. E aqui, + como nas precedentes curvas de civilização, a admoestação “Isso não se faz”, + com a qual a moderação, o medo e a repugnância são inculcados, só muito depois + é ligada, como resultado de certa “democratização”, a uma teoria científica, + com um argumento que se aplica por igual a todos os homens, qualquer que seja + sua posição ou status. O impulso primário a essa lenta repressão de uma + inclinação que antes era forte e geral não vem da compreensão racional das + causas das doenças, mas — conforme será discutido em detalhe mais adiante — de + mudanças na maneira como as pessoas vivem juntas na estrutura da sociedade. + + 4. A modificação de hábito de escarrar e, finalmente, a eliminação mais ou + menos completa de sua necessidade constitui um bom exemplo da maleabilidade da + vida psíquica. Pode ser que essa necessidade tenha sido compensada por outras + (como, por exemplo, a necessidade de fumar) ou debilitada por certas mudanças + na dieta. Mas é certo que o grau de supressão que se tornou possível neste caso + não aconteceu no tocante a muitas outras inclinações. A tendência a escarrar, + como a de examinar o esputo, mencionada nesses exemplos, é substituível. Ela se + manifesta agora apenas em crianças e em análise de sonhos, e sua eliminação é + vista no riso específico que nos sacode quando “essas coisas” são mencionadas + abertamente. + + Outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis na mesma extensão. E + isto coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana. + Sem dúvida ela é submissa a certas fidelidades que podem ser chamadas + “naturais”. O processo histórico modifica-a dentro desses limites. O grau em + que a vida e o comportamento humanos podem ser moldados por processos + históricos não foi ainda analisado em suficiente detalhe. De qualquer modo, + tudo isso mostra, mais uma vez, como processos naturais e históricos se + influenciam mútua e inseparavelmente. A formação de sentimentos de vergonha e + asco e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos + naturais e históricos. Essas formas de emoções são manifestações da natureza + humana em condições sociais específicas e reagem, por sua vez, sobre o processo + sócio-histórico como um de seus elementos. + + É difícil concluir se a oposição radical entre “civilização” e “natureza” é + mais do que uma expressão das tensões da própria psique “civilizada”, de um + desequilíbrio específico na vida psíquica gerado no estágio recente da + civilização ocidental. De qualquer modo, a vida psíquica de povos “primitivos” + não é menos historicamente (isto é, socialmente) marcada do que a dos povos + “civilizados”, mesmo que os primeiros mal estejam conscientes de sua própria + história. Não há um ponto zero na historicidade do desenvolvimento humano, da + mesma forma que não o há na socialidade, na interdependência social dos homens. + Nos povos “primitivos” e “civilizados”, observam-se as mesmas proibições e + restrições socialmente induzidas juntamente com suas equivalentes psíquicas, + socialmente induzidas: ansiedades, prazer a aversão, desagrado e deleite. No + mínimo, por conseguinte, não é muito claro o que se tem em vista quando o + chamado padrão primitivo é oposto, como “natural”, ao “civilizado”, como social + e histórico. No que interessa às funções psíquicas do homem, processos naturais + e históricos trabalham indissoluvelmente juntos. + +### Fundo da vida social + + Tal como a maior parte das demais funções corporais, o sono foi sendo + transferido para o fundo da vida social. [...] Suas paredes visíveis e + invisíveis vedam os aspectos mais “privados”, “íntimos”, irrepreensivelmente + “animais” da existência humana, à vista de outras pessoas. + + [...] + + Uma camisola especial começou a ser adotada lentamente, mais ou menos na + ocasião em que acontecia o mesmo com o garfo e o lenço. Tal como outros + “implementos de civilização”, espalhou-se de forma bem gradual pela Europa. E, + como eles, era símbolo de uma mudança decisiva que ocorria nessa época nos + seres humanos. Aumentava a sensibilidade com tudo aquilo que entrava em contato + com o corpo. A vergonha passou a acompanhar formas de comportamento que antes + haviam estado livres desse sentimento. + + [...] + + Neste particular, também, houve certa reação e relaxação desde a guerra. Isto + esteve claramente ligado à crescente mobilidade da sociedade, à difusão dos + esportes, a excursões e viagens, e também à separação relativamente cedo dos + jovens da comunidade familiar. A transição da camisola para o pijama — isto é, + para um trajo de dormir mais “socialmente apresentável” — constitui um sintoma + desta situação. A mudança não é, como se pensa algumas vezes, apenas um + movimento de retrogressão, uma diminuição dos sentimentos de vergonha ou + delicadeza ou, quem sabe, uma liberação e descontrole de ânsias instintivas, + mas o desenvolvimento de uma forma que se ajusta a nosso padrão avançado de + delicadeza e da situação específica em que a atual vida social coloca o + indivíduo. + + [...] + + As roupas de dormir da fase precedente despertavam sentimentos de vergonha e + embaraço exatamente porque eram relativamente informes. Não havia intenção de + que fossem vistas por pessoa fora do círculo familiar. + +### Ansiedades pelo condicionamento + + “Se for forçado por necessidade inevitável a dividir a cama com outra pessoa… + em uma viagem, não é correto ficar tão perto dele que o perturbe ou mesmo o + toque”, escreve La Salle (Exemplo D) e: “Você não deve nem se despir nem ir + para a cama na presença de qualquer outra pessoa.” + + Na edição de 1774, os detalhes são mais uma vez evitados em todos os casos + possíveis. E o tom é visivelmente mais severo: “Se for forçado a dividir a cama + com uma pessoa do mesmo sexo, o que raramente acontece, deve manter um rigoroso + e vigilante recato” (Exemplo E). Este é o tom da injunção moral. Até mesmo dar + uma razão tornou-se penoso para o adulto. Pela ameaça do tom, a criança é + levada a associar essa situação a perigo. Quanto mais o padrão “natural” de + delicadeza e vergonha parece aos adultos e quanto mais o controle civilizado de + ânsias instintivas é aceito como natural, mais incompreensível se torna para os + adultos que as crianças não sintam “por natureza” esta delicadeza e vergonha. + Necessariamente as crianças tocam repetidamente o patamar adulto de embaraço e + — uma vez que não estão ainda adaptadas — transgridem os tabus da sociedade, + cruzam o patamar adulto de vergonha, e penetram em zonas de perigo emocionais + que o próprio adulto só com dificuldade consegue controlar. Nesta situação, o + adulto não explica as exigências que faz em matéria de comportamento. Não tem + como fazê-lo adequadamente. Está tão condicionado que se conforma de maneira + mais ou menos automática a um padrão social. Qualquer outro comportamento, + qualquer desobediência às proibições ou restrições que prevalecem em sua + sociedade, implica perigo e uma desvalorização das restrições que ele mesmo se + impõe. A conotação peculiarmente emocional tão amiúde ligada a exigências + morais, à severidade agressiva e ameaçadora com que são frequentemente + defendidas, refletem a ameaça que qualquer desafio às proibições representa + para o equilíbrio instável de todos aqueles a cujos olhos o padrão de + comportamento da sociedade se tornou mais ou menos uma “segunda natureza”. + Essas atitudes são sintomas da ansiedade despertada nos adultos em todos os + casos em que a estrutura de sua própria vida instintiva, e com ela sua própria + existência social e ordem social onde se radica, é, mesmo remotamente, + ameaçada. + + [...] + + a parede entre pessoas, a reserva, a barreira emocional erigida pelo + condicionamento entre um corpo e outro cresceram sem cessar. Desde cedo as + crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e + experiências que isto traz. + + [...] + + Com uma certa impotência, o observador do século XIX e, até certo ponto, do + século XX, vê-se diante de modelos e regras de condicionamento do passado. E + até que compreendamos que nosso próprio patamar de repugnância, nossa própria + estrutura de sentimentos, evoluíram — em um processo estruturado — e seguem + evoluindo, continua realmente quase incompreensível, do atual ponto de vista, + como diálogos como esses pudessem ser incluídos em um livro escolar ou + deliberadamente produzidos como material de leitura para crianças. Mas esta é + exatamente a razão por que nosso próprio padrão, incluindo nossa atitude em + relação às crianças, deve ser compreendido como algo que evoluiu. |