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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-10-06 13:41:25 -0300 |
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Books: A Cidade Perversa
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Não teria sido possível o desenvolvimento do + capitalismo sem a liberação das paixões. Aí é que se encontra, em minha + opinião, a resposta a essa pergunta, até hoje sem resposta, concludente e + constantemente reiterada desde Marx. Por que exatamente o capitalismo, tendo + amadurecido desde a Idade Média, finalmente nasceu na Europa por volta de + 1700, nas Províncias Unidas impregnadas de calvinismo, e depois na + Inglaterra? Por que, se em tantos lugares existiam poderosos mercados + tradicionais, nenhum se transformou em mercado liberal capitalista? Por que + essa transformação ocorreu na Europa por volta de 1700, e não nos séculos de + ouro do Império Romano, sob a dinastia dos Antoninos, tanto mais que a + primeira máquina a vapor, a eolípila, acabava de ser inventada por Héron de + Alexandria? Ou ainda na China, por exemplo, no apogeu da dinastia Qing, nos + séculos XVII e XVIII? Ou ainda no apogeu do Império Otomano, no século XVI, + por exemplo, sob Solimão, o Magnífico? Ou ainda na Índia, na época da + dinastia Maurya, no século IV antes de Jesus Cristo, durante a qual foi + escrito o primeiro tratado de economia política, intitulado Arthaçastra — + Instrução sobre a prosperidade material? E ainda poderíamos mencionar muitos + outros lugares. A única resposta possível parece-me a seguinte: as condições + materiais identificadas por Marx provavelmente estavam reunidas nesses + diferentes lugares (acumulação primitiva, tendo por um lado uma mão de obra + desenraizada e, por outro, fluxos de dinheiro), mas a condição moral, ou + antes, amoral, não estava. Quero dizer que nesses lugares as paixões eram + contidas em sistemas simbólicos poderosos, ao passo que aqui foram liberadas. + Essa liberação das paixões ao longo dos séculos XVII e XVIII é que permitiu a + entrada no capitalismo. + + 104 + Nessa condição amoral reside certamente o segredo da irresistível penetração + do capitalismo em muitos sistemas tradicionais em todo o mundo: o capitalismo + pareceu libertador a muitos dos povos ainda presos a severas cláusulas + morais. E, de fato, ele o era — ao mesmo tempo trazendo consigo formas + absolutamente inéditas de alienação. + + [...] + + Mas, sobretudo, a colmeia é uma ilustração perfeita do gênio do Criador da + natureza, que consegue construir uma organização extremamente complexa, + implicando a divisão do trabalho entre os homens, a partir de uma única causa + muito simples: o amor próprio (chamado de self-liking por Mandeville). + Utilizando da melhor maneira possível este simples e mesmo estúpido amor + próprio, gerando todas as libidos possíveis, podemos chegar, sem precisar + intervir com leis jurídicas ou regras morais, a uma metáfora “admirável”, tão + perfeita quanto a da colmeia. Existe aí uma espécie de astúcia do Criador, + que utiliza os defeitos dos homens para criar, apesar deles próprios, uma + ordem perfeita que os transcende. É pura e simplesmente o projeto + cibernético, tal como viria a ser desenvolvido por Norbert Wiener, que já + está contido na ideia de colmeia, já que ela é organizada de acordo com um + programa perfeito de grande complexidade, que resulta de subprogramas muito + simples (comportando apenas algumas instruções) seguidos por cada um dos + habitantes.101 + + [...] + + O que me parece analisar mais radicalmente a colmeia mandevilliana, no que + ela tem de extremamente inquietante para a liberdade humana, com esses homens + incapazes de sair de uma total alienação aos seus vícios, é o castelo + sadeano, que também se organiza a partir de uma exploração sistemática de + todas as paixões imagináveis e mesmo inimagináveis. + + [...] + + 145 + + Se Marx tivesse lido Sade, não teria cometido um grave erro: não ter + visto que toda a economia também é uma enorme questão passional e pulsional. + Se Marx tivesse lido Sade, o mundo seria outro. Teríamos evitado a criação + desses monstros frios que foram as economias socialistas suspeitando de toda + paixão, exceto a paixão pelo chefe. Não teríamos tido essa divisão altamente + nociva entre Marx, por um lado, na economia dos bens, e Freud por outro, na + economia libidinal — cisão equivocada desde o início, que nenhum + freudo-marxista, nem mesmo da escola de Frankfurt, jamais foi capaz de + resolver. Se Marx tivesse lido Sade, poderíamos dispor de uma economia geral + das paixões. O mundo poderia ter sido reformado de outra maneira. Teríamos + evitado a captação e o desvio dos espíritos resistentes à teodiceia smithiana + nas falsas alternativas ao capitalismo representadas pelas economias + socialistas, que só poderiam levar ao mais lamentável dos fiascos. + + Ao passo que, para Kant, era absolutamente necessário regular — a moral deve + ser baseada no imperativo categórico consistindo em se impor a si mesmo uma + lei na vida prática —, para Smith cabia, sobretudo, deixar fazer [laisser + faire], vale dizer, desregular — o que conduz logicamente a Sade. + + [...] + + Postulada essa distinção entre os dois Iluminismos, fica mais fácil indicar o + que distingue a modernidade da pós-modernidade. A modernidade é o equilíbrio + instável entre essas duas correntes opostas. Terá durado um século e meio. A + pós-modernidade é o recuo cada vez mais acentuado da zona transcendental que + remete ao que “não tem preço, mas uma dignidade” (Kant), em proveito do + princípio liberal, segundo o qual tudo tem um preço (Smith). + + Com efeito, podemos conceber Sade como aquele que, no fim do século, se + apropriou dessas teses liberais, por sinal de maneira extremamente sadeana, + levando-as a suas últimas consequências e mostrando, de uma forma que tendo a + considerar irretocável, aonde conduz, do ponto de vista do ser-si-mesmo e do + ser-junto, a sua escolha, constantemente reiterada ao longo de seus textos, + da moral egoísta contra a moral altruísta. + + Fazer de Sade um homem-chave do seu século, o século XVIII, é, portanto, + afastar-se das interpretações tão frequentes quanto anacrônicas que pretendem + considerá-lo arauto perfeito dos sistemas fascistas. Basta pensar, por + exemplo, na posição assumida por um autor tão estimável quanto Pasolini no + filme intitulado Salò ou Os cento e vinte dias de Sodoma, lançado no fim de + 1975. É provável que Pasolini, irritado com as visões, cada vez mais + frequentes depois de 1968, de um Sade simpático, bon vivant, alvo de + perseguições dos obscurantistas de sua época, tenha pretendido reagir a esse + absoluto contrassenso. Com isso, situou a ação de Os cento e vinte dias… em + Salò, a cidade do norte da Itália onde Mussolini se refugiara no fim da + Segunda Guerra Mundial para fundar uma república fascista. Como sabemos, foi + o último filme de Pasolini: ele seria assassinado após o lançamento. + + A morte trágica de Pasolini nos faz pensar. Não podemos, com efeito, passar por + cima de uma questão pungente: será que as circunstâncias de sua morte… não + desmentiriam sua tese? Pois ele foi morto, de maneira extremamente sadeana, não + por fascistas, mas por jovens extremamente liberados, tão liberados que não + tinham controle de suas paixões e pulsões, já que, pelo que sabemos, foi um + jovem prostituto romano de dezessete anos, um dos que eram frequentados por + Pasolini, que o matou a cacetadas no dia 1º de novembro de 1975, para em + seguida esmagá-lo várias vezes com seu próprio carro na praia de Ostia, perto + de Roma. + + [...] + + Situar Sade dessa maneira permite adiantar que o liberalismo tem duas faces: + uma face puritana, representada pelo “primeiro filho” de Mandeville, vale + dizer, Adam Smith, e uma face perversa, indissociavelmente ligada, representada + pelo “segundo filho” de Mandeville, Sade. Em outras palavras, devemos entender + o liberalismo como um sistema bifronte, à Janus, vale dizer, como um conjunto + perverso-puritano. + + O que poderia ser dito assim: o liberalismo é Smith com Sade. + + 153 + + A tese que defendo, portanto, é a seguinte: Sade diz a verdade do liberalismo e + por esse motivo é que foi necessário aprisioná-lo durante toda a vida e + atirá-lo no inferno após a morte, enquanto o conto da harmonização dos + interesses privados pela mão invisível, prometido pela teodiceia puritana de + Adam Smith, se espalhava pelo mundo. A esse inferno das bibliotecas, exposto + apenas à crítica devoradora dos ratos e camundongos, é que Sade foi recolhido e + escondido por alguns eruditos durante dois séculos. |