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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2016-12-09 10:27:35 -0200
committerSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2016-12-09 10:27:35 -0200
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+++ b/books/vida/arte-de-viver.mdwn
@@ -489,4 +489,226 @@ Trechos
reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente
(compare com a construção dos sonhos).
+ [...]
+
+ Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência
+ da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados,
+ ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao
+ inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de
+ si mesmo.
+
+ [...]
+
+ A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de
+ improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado
+ para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer
+ do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos
+ cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do
+ ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os
+ africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste
+ essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático
+ imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade
+ resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da
+ própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática
+ e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas”
+
-- 127
+
+ A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida
+ mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de
+ novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos
+ poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização
+ da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de
+ arte é a construção de uma vida apaixonante.
+
+ -- 131
+
+ Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor:
+
+ 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal;
+ 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa;
+ 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética
+
+ Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar
+ nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas.
+ À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da
+ responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para
+ zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito.
+
+ Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência
+ que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos
+ trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de
+ organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de
+ capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria
+ por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade,
+ representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo,
+ como diria Fourier).
+
+ [...]
+
+ Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos
+ geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos
+ cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima.
+
+ [...]
+
+ A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção
+ desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos
+ proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego.
+ Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e
+ programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da
+ existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A
+ organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo
+ controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana.
+
+ Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que
+ proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas,
+ podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional,
+ Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos
+ diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos
+ e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos
+ em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a
+ proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida
+ pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração
+ magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo
+ a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar.
+
+ -- 136-137
+
+ O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor
+ perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa
+ de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em
+ oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em
+ deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu
+ requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas
+ de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a
+ presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até
+ no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à
+ maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os
+ homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a
+ entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de
+ forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens.
+ Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do
+ julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando
+ quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma
+ taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido.
+
+ [...]
+
+ Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o
+ impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o
+ seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse
+ abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se
+ multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo
+ imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os
+ senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com
+ a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os
+ senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das
+ coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada
+ ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário
+ destruí-las?
+
+ Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são
+ aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que
+ nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará
+ diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém
+ objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de
+ uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas
+ isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do
+ poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu
+ adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da
+ hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra
+ magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo
+ que lhe é oposto.”
+
+ Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto
+ contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação
+ possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela
+ organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da
+ vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável
+ da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do
+ seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso
+ a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão.
+ Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo
+ que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a
+ outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria
+ abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça
+ demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado
+ sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham
+ os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência
+ insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a
+ sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a
+ sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma.
+
+ -- 138-139
+
+ A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o
+ adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser
+ destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação
+ deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da
+ organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da
+ arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário.
+
+ [...]
+
+ A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de
+ qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva
+ dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de
+ um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou
+ seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o
+ acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa
+ poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E
+ quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já
+ perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava
+ superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo
+ estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu
+ alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a
+ viver segundo as leis da adaptação ao mundo.
+
+ -- 140
+
+ O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de
+ ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente
+ favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores
+ antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que
+ é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma
+ para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz
+ estranhamente familiar.
+
+ Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos
+ do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou
+ reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta
+ para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não
+ consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder,
+ uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes
+ fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do
+ significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que
+ uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da
+ fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e
+ as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da
+ alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável
+ domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor
+ oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior?
+
+ [...]
+
+ É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação
+ deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos,
+ os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos
+ com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para
+ derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão
+ para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim
+ definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm
+ ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento
+ histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão
+ para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate
+ com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas.
+
+ -- 142
+
+ Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar
+ em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos
+ pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão
+ um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem?
+
+ -- 143