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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2016-12-12 17:55:54 -0200
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--- a/books/vida/arte-de-viver.mdwn
+++ b/books/vida/arte-de-viver.mdwn
@@ -31,6 +31,11 @@ Trechos
-- 8
+ A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia
+ de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio.
+
+ -- 9
+
O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão
alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas
conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de
@@ -762,3 +767,274 @@ Trechos
páginas dedicadas aos papéis, no capítulo XV).
-- 150
+
+ Como distrair os homens de seu presente a não ser atraindo-os à esfera na qual o tempo
+ escoa? Essa tarefa cabe ao historiador. O historiador organiza o passado, fragmentado-o
+ conforme a linha oficial do tempo, depois arruma os acontecimentos em categorias ad hoc.
+ Essas categorias, de fácil uso, põem os acontecimentos passados em quarentena. Sólidos
+ parênteses os isolam, os contêm, os impedem de tomar vida, de ressuscitar, de rebentar de
+ novo nas ruas da nossa vida cotidiana. O acontecimento está, por assim dizer, congelado. É
+ proibido juntar-se a ele, refazê-lo completá-lo, tentar a sua superação. Aí está ele,
+ conservado para sempre e suspenso para a contemplação dos estetas. Uma leve mudança de
+ ênfase e hei-lo transposto do passado ao futuro. O futuro não é mais que historiadores se
+ repetindo. O futuro que eles anunciam é uma colagem de recordações, das suas
+ recordações. Vulgarizada pelos pensadores stalinistas, a famosa noção do sentido da
+ história acabou esvaziando de toda humanidade tanto o futuro quanto o passado.
+
+ -- 151
+
+ Construir uma arte de viver é hoje uma reivindicação popular. É necessário
+ concretizar em um espaço-tempo apaixonadamente vivido as pesquisas de todo um
+ passado artístico que na verdade foram postas de lado de modo descuidado.
+
+ Neste caso as recordações as quais me refiro, são recordações de feridas
+ mortais. Aquilo que não é terminado apodrece. O passado é erroneamente tratado
+ como irremediável. Ironicamente, aqueles que falam dele com um dado definitivo
+ não param de triturá-lo, de falsificá-lo, de arranjá-lo ao gosto do dia. Eles
+ agem como o pobre Winston, em 1984 de George Orwell, reescrevendo artigos de
+ jornais antigos que foram contraditos pela evolução dos acontecimentos.
+
+ [...]
+
+ Existe apenas uma forma valorosa de esquecer : aquela que apaga o passado
+ realizando-o. Aquela que salva da decomposição pela superação. Os fatos, por
+ mais longe que se situem, nunca disseram sua última palavra. Basta uma mudança
+ radical no presente para que desçam das estantes do museu e ganhem vida aos
+ nossos pés.
+
+ -- 152
+
+ Construir o presente é corrigir o passado, mudar a psicogeografia do nosso
+ ambiente, libertar de sua ganga os sonhos e os desejos insatisfeitos, deixar as
+ paixões individuais harmonizarem-se no coletivo. O intervalo de tempo que
+ separa os revoltados de 1525 dos rebeldes muletistas, Spartakus de Pancho Villa
+ só pode ser transposto pela minha vontade de viver.
+
+ Esperar por amanhãs festivos é o que impossibilita as nossas festas de hoje. O
+ futuro é pior que o oceano: ele nada contém. Planejamento, prospecção, plano a
+ longo prazo: é o mesmo que especular sobre o teto da casa quando o primeiro
+ andar não existe mais. E contudo se construíres bem o presente o resto virá por
+ consequência.
+
+ [...]
+
+ Na zona da criação verdadeira o tempo se dilata. No inautêntico, o tempo se
+ acelera.
+
+ -- 153
+
+ A tarefa é sempre resolver as contradições do presente, não parar no meio do
+ caminho, não se deixar distrair, tomar o caminho da superação. Essa tarefa é
+ coletiva, de paixão, de jogo (a eternidade é o mundo do jogo, diz Boehme). Por
+ mais pobre que seja o presente sempre contém a verdadeira riqueza, a da
+ construção possível. Esse é o poema interrompido que me enche de alegria.
+
+ -- 153-154
+
+ A paixão de criar é a base do projeto de realização (2), a paixão do amor é a
+ base do projeto de comunicação (4), a paixão do jogo é a base do projeto de
+ participação (6). Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade
+ repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença atualmente observável
+ na maioria das pessoas de uma mesma vontade de construir uma vida apaixonante
+ (3). O erotismo é a coerência espontânea que dá unidade prática à tentativa de
+ enriquecer a experiência vivida. ( 5)
+
+ [...]
+
+ A construção da vida cotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional
+ e do passional. O mistério deliberadamente tecido desde sempre a respeito da
+ vida tem como principal objetivo dissimular a trivialidade da sobrevivência. De
+ fato, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. O
+ fascínio que a promessa de uma vida rica e multidimensional exerce sobre cada
+ indíviduo adquire, necessariamente, o aspecto de um projeto submetido no todo
+ ou em parte ao poder social encarregado de impedi-lo. Assim como o governo dos
+ homens recorre essencialmente a um tríplice modo de opressão – a coação, a
+ mediação alienante e a sedução mágica – também a vontade de viver encontra
+ força e coerência na unidade de três projetos indissociáveis : a realização, a
+ comunicação, a participação.
+
+ Em uma história dos homens que não se reduzisse à história da sobrevivência,
+ sem por outro lado se dissociar dela, a dialética desse triplo projeto, aliada
+ à dialética das forças produtivas explica a maioria dos comportamentos. Não há
+ motim ou revolução que não revele uma busca apaixonada por uma vida exuberante,
+ por uma transparência das relações humanas e por um modo coletivo de
+ transformação do mundo. De fato, três paixões fundamentais parecem animar a
+ evolução histórica, paixões que são para a vida aquilo que a necessidade de
+ alimento e proteção são para a sobrevivência. A paixão da criação, a paixão do
+ amor e a paixão do jogo interagem com a necessidade de alimento e de proteção,
+ tal como a vontade de viver interfere continuamente na necessidade de
+ sobreviver.
+
+ -- 155
+
+ A mania cartesiana de fragmentar, e de progredir de forma gradual, produz
+ necessariamente uma realidade coxa e incompleta. Os exércitos da Ordem só
+ recrutam mutilados.
+
+ -- 156
+
+ Mostrei de que maneira a organização social hierárquica constrói o mundo
+ destruindo os homens; de que modo o aperfeiçoamento do seu mecanismo e das suas
+ redes a fez funcionar como um computador gigante cujos programadores são também
+ programados; de que modo, enfim, o mais frio dos monstros frios encontra a sua
+ realização no projeto do estado cibernético.
+
+ Nessas condições a luta pelo pão de cada dia, o combate contra o desconforto, a
+ busca de uma estabilidade de emprego e de uma segurança material são, na frente
+ social, igualmente expedições ofensivas que tomam lenta mas seguramente o
+ aspecto de ações de retaguarda (mas não se deve subestimar a importância
+ delas).
+
+ Apesar de falsos compromissos e de atividades ilusórias, uma energia criadora
+ continuamente estimulada não é absorvida mais depressa suficientemente sob a
+ ditadura do consumo. [...] O que acontecerá a essa exuberância repentinamente
+ disponível, a esse excesso de robustez e de virilidade que nem as coações nem a
+ mentira conseguiram verdadeiramente desgastar?
+
+ Não recuperada pelo consumo artístico e cultural – pelo espetáculo ideológico –
+ a criatividade volta-se espontaneamente contra as condições e as garantias de
+ sobrevivência. Os rebeldes não têm nada a perder a não ser sua sobrevivência.
+ Contudo, podem perdê-la de dois modos : perdendo a vida ou construindo-a. Já
+ que a sobrevivência é uma espécie de morte lenta, existe uma tentação, não
+ desprovida de sentimentos genuínos, de acelerar o movimento e morrer mais
+ depressa como pisar fundo no acelerador de um carro de corrida. “Vive-se”
+ então negativamente a negação da sobrevivência. Ou pelo contrário, as pessoas
+ podem se esforçar por sobreviver como anti-sobreviventes concentrando sua
+ energia no enriquecimento da vida cotidiana. Negam a sobrevivência
+ incorporando-a em uma atividade lúdica construtiva. Essas duas soluções
+ promovem a tendência unitária e contraditória da dialética da decomposição e da
+ superação.
+
+ -- 157
+
+ Nietzsche.
+
+ -- 158
+
+ O fervor dos soldados rasos faz a disciplina dos exércitos: a única coisa que a
+ cachorrada policial aprende é a hora de morder e a hora de rastejar.
+
+ [...]
+
+ Se a violência inerente aos grupos de jovens delinquentes deixasse de se
+ dissipar em ações espetaculares e tornar-se insurrecional, provocaria sem
+ dúvida uma reação em cadeia, uma onda de choque qualitativa. [...] Se os
+ blouson noirs atingiram uma consciência revolucionária pela simples compreensão
+ daquilo que já são e pela simples exigência de querer ser mais, é provável que
+ determinem o epicentro da inversão de perspectiva. Federar os seus grupos seria
+ o ato que simultaneamente manifestaria e permitiria essa consciência.
+
+ -- 159
+
+ Ninguém se desenvolve livremente sem espalhar a liberdade no mundo.
+
+ -- 163
+
+ Os especialistas da comunicação organizam a mentira em proveito dos senhores de
+ cadáveres.
+
+ [...]
+
+ - quanto mais me desligo do objeto do meu desejo, e quanto mais força objetiva
+ dou ao objeto do meu desejo, mais o meu desejo se torna despreocupado em
+ relação ao seu objeto;
+
+ - quanto mais me desligo do meu desejo como objeto e mais força objetiva dou ao
+ objeto do meu desejo, mais o meu desejo encontra sua razão de ser no ser
+ amado.
+
+ -- 165
+
+ A verdadeira escolha é entre a sedução espetacular – a conversa fiada – e a
+ sedução pelo qualitativo – a pessoa que é sedutora porque não se preocupa em
+ seduzir.
+
+ -- 166
+
+ O prazer é o princípio de unificação. O amor é a paixão pela unidade em um
+ momento comum. A amizade é a paixão pela unidade em um projeto comum.
+
+ -- 167
+
+ Sem predizer os detalhes de uma sociedade em que a organização das relações
+ humanas esteja aberta sem reservas à paixão do jogo, podemos no entanto prever
+ que ela apresentará as seguintes características:
+
+ - recusa de chefes e de qualquer hierarquia
+ - recusa de sacrifício
+ - recusa de papéis
+ - liberdade de realização autêntica
+ - transparência das relações sociais
+
+ -- 170
+
+ São, evidentemente, grupos numericamente pequenos, as micrissociedades, que
+ apresentam as melhores condições de experimentação. Nelas, o jogo regulará
+ soberanamente os mecanismos da vida em comum, a harmonização dos caprichos, dos
+ desejos das paixões.
+
+ [...]
+
+ O que aconteceria então se as pessoas começassem a brincar com os papéis da
+ vida real?
+
+ -- 171
+
+ Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou essa pessoa se
+ arruína ou arruína o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um
+ especialista em jogo coletivo.
+
+ [...]
+
+ Qual é o melhor provocador? O líder do jogo que se torna dirigente.
+
+ [...]
+
+ Diferentemente do provocador, o traidor aparece espontaneamente em um grupo
+ revolucionário. Ele surge sempre que a paixão do jogo desaparece e junto com
+ ela o projeto de participação real. O traidor é um homem que não encontrando
+ como se realizar autenticamente por meio do modo de participação que lhe é
+ proposto, decide jogar contra essa participação não para corrigi-la mas para
+ destrui-la. traidor é a doença senil dos grupos revolucinarios.
+
+ [...]
+
+ Um exército eficientemente hierarquizado pode ganhar uma guerra, mas não uma
+ revolução. Uma horda indisciplinada não consegue a vitória nem na guerra, nem
+ na revolução. O problema é organizar sem hierarquizar, ou em outras palavras,
+ procurar que o líder do jogo não se torne um chefe. O espírito lúdico é a
+ melhor garantia contra a esclerose autoritária. Nada resiste a criatividade
+ armada. Sabemos que as tropas de Villa e de Makhno derrotaram os mais
+ aguerridos batalhões de exército.
+
+ -- 172
+
+ A organização hierárquica e a completa falta de disciplina são ambas ineficientes.
+
+ [...]
+
+ Como manter a disciplina necessária ao combate numa tropa que se recusa
+ obedecer servilmente a um chefe? Como evitar a falta de coesão? Na maioria das
+ vezes, os exércitos revolucionários sucumbem ao mal da submissão a uma causa ou
+ a busca inconsequente do prazer.
+
+ [...]
+
+ A melhor tática forma uma só unidade com o cálculo hedonista. A vontade de
+ viver, brutal, desenfreada é para o combatente a mais mortífera arma secreta.
+ Essa arma volta-se contra aqueles que a ameaçam: para defender a pele, o
+ soldado tem todo o interesse em atirar nos superiores.
+
+ -- 173
+
+ Quando uma canalização de água arrebentou no laboratório de Pavlov, nenhum dos
+ cães que sobreviveram à inundação conservou o menor traço do seu longo
+ condicionamento. O maremoto das grandes transformações sociais teria menos
+ efeito sobre os homens do que uma inundação sobre cães?
+
+ -- 178
+
+ Aqueles que se aproximam da revolução afastando-se de si mesmos – como todos os
+ militantes fazem – se aproximam de costas para trás às avessas.
+
+ -- 180