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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-08-07 10:05:58 -0300 |
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Espero não ter fracassado totalmente. Desse caos, algum dia sairão + fórmulas capazes de atingir à queima-roupa os nosso inimigos. Até lá, que as frases + relidas aqui e ali tenham seus efeitos. A via para a simplicidade é a mais complexa de + todas e, especialmente nesse caso, era conveniente não arrancar ao lugar-comum as + múltiplas raízes que poderemos transplantar a outro terreno e cultivá-las em nosso + benefício. + + -- 8 + + A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia + de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio. + + -- 9 + + O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão + alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas + conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de + ser lamentável para uma boa organização social (mesmo se o suicida não tiver a + feliz idéia de se matar no estilo dos príncipes orientais, levando com ele + todos os seus servos: juízes, bispos, generais, policiais, psiquiatras, filósofos, + managers, especialistas e cibernéticos). + + -- 36 + + Assim que o líder do jogo se torna um chefe, o princípio hierárquico se salva, e a revolução + se detém para presidir o massacre dos revolucionários. É preciso lembrar sempre: o projeto + insurrecional só pertence às massas, o líder reforça-o, o chefe o trai. É entre o líder e o + chefe que inicialmente se desenrola a luta autêntica. + + -- 37 + + Resumindo, a descompressão nada mais é do que o controle dos antagonismos pelo poder. + A oposição de dois termos toma sentido pela introdução de um terceiro. Se só existem dois + pólos, eles se neutralizam, uma vez que cada um se define pelos valores do outro. É + impossível escolher entre eles, entra-se no domínio da tolerância e do relativismo, tão + querido à burguesia. Como é compreensível o interesse da hierarquia apostólica romana na + querela entre o maniqueísmo e o trinitarismo! + + -- 38 + + O poder aquisitivo é a licença de aquisição do poder. O velho proletariado + vendia a força de trabalho para subsistir; o seu escasso tempo livre era gasto + mais ou menos de maneira agradável em discussões, conversas, nos bares, fazendo + amor, caminhando em festas e motins. O novo proletariado vende a força de + trabalho para consumir. Quando não busca no trabalho forçado uma promoção + hierárquica, o trabalhador é convidado a comprar objetos (carro, gravata, + cultura...) que lhe atribuirão o seu lugar na escala social. + Esta é a era em que a ideologia do consumo se torna o consumo da ideologia. + A expansão cultural leste-oeste não é um acidente. De um lado, o homo + consumidor compra um litro de uísque e recebe como prêmio a mentira que o + acompanha. Do outro, o homem comunista compra ideologia e recebe como prêmio um + litro de vodca. Paradoxalmente, os regimes soviéticos e capitalistas seguem um + caminho comum, os primeiros graças à sua economia de produção, os segundos pela + sua economia de consumo. + + -- 46 + + Com as diferenças crescendo em número e se tornando menores, a distância + entre ricos e pobres diminui de fato, e a humanidade é nivelada, com as + variações de pobreza sendo as únicas variações. O ponto culminante seria a + sociedade cibernética composta de especialistas hierarquizados segundo a sua + aptidão de consumir e de fazer consumir as doses de poder necessárias ao + funcionamento de uma gigantesca máquina social da qual eles seriam ao mesmo + tempo a entrada e a saída de dados. Uma sociedade de exploradores-explorados + onde alguns escravos são mais iguais do que outros. + + -- 47 + + A história é a transformação contínua da alienação natural em alienação social, + e também, paradoxalmente, o contínuo reforço de um movimento de contestação que + irá dissolvê-la, “desalienando-a”. A luta histórica contra a alienação natural + transforma a alienação natural em alienaçao social, mas o movimento de + desalienação histórica atinge por sua vez a alienação social e denuncia a sua + magia fundamental. + + [...] + + O apodrecimento das relações humanas pela troca e pela contrapartida está + evidentemente ligado à existência da burguesia. Que a troca persista em uma + parte do mundo em que se diz que a sociedade sem classes se realizou atesta que + a sombra da burguesia continua reinar debaixo da bandeira vermelha. Enquanto + isso, entre as pessoas que vivem nos países industrializados, o prazer de dar + delimita muito claramente a fronteira entre o mundo do cálculo e o mundo da + exuberância, da festa. + + -- 49 + + Dom, troca, contrapartida e doação. + + -- 49 + + Técnica. + + -- 50 + + Desse ponto de vista, a história não passa da transformação da alienação + natural em alienação social: um processo de desalienação transformado em um + processo de alienação social, um movimento de libertação que produza novos + grilhões. Embora, no final, a vontade de emancipação humana ataque diretamente + o conjunto dos mecanismos paralisantes, ou seja, a organização social baseada + na apropriação privada. Esse é o movimento de desalienação que vai desfazer a + história e realizá-la em novos modos de vida. + + A ascensão da burguesia ao poder anuncia a vitória do homem sobre as forças + naturais. Mas, na mesma hora, a organização social hierárquica, nascida da + necessidade de luta contra a fome, a doença, o desconforto etc., perde sua + justificativa e é obrigada a endossar a responsabilidade pelo mal-estar nas + civilizações industriais. Hoje os homens já não atribuem a sua miséria à + hostilidade da natureza, mas sim, à tirania de uma forma social totalmente + inadequada, totalmente anacrônica. Destruindo o poder mágico dos senhores + feudais, a burguesia condenou a magia do poder hierárquico. O proletariado + executará a sentença. + + -- 50 + + O princípio hierárquico é o princípio mágico que resitiu à emancipação dos homens e as + suas lutas históricas pela liberdade. De agora em diante nenhuma revolução será digna + desse nome se não implicar pelo menos a eliminação radical de toda hierarquia. + + -- 51 + + Rigidamente quantificado (pelo dinheiro e depois pela quantidade de poder, por aquilo a + que poderíamos chamar “unidades sociométricas de poder”), a troca polui todas as relações + humanas, todos os sentimentos, todos os pensamentos. Onde quer que a troca domine, só + sobram coisas, um mundo de homens-objetos congelados nos organogramas do poder + cibernético: o mundo da reificação. Mas é também, paradoxalmente, a oportunidade de uma + reestruturação radical dos nossos modelos de vida e de pensamento. Um ponto zero em que + tudo pode verdadeiramente começar. + + [...] + + Ao sacrifício do senhor sucede o último estágio do sacrifício, o sacrifício do especialista. + Para consumir, o especialista faz outros consumirem de acordo com um programa + cibernético no qual a hiper-racionalidade das trocas suprimirá o sacrifício – e o homem ao + mesmo tempo! Se a troca pura regular um dia as modalidades de existência dos cidadãos- + robôs da democracia cibernética, o sacrifício deixará de existir. Para obedecer, os objetos + não têm necessidade de justificativa. O sacrifício não faz parte do programa das máquinas + assim como do seu oposto, o projeto do homem total. + + -- 52 + + Contrariamente aos interesses daqueles que controlam seu uso, a técnica tende a + desmistificar o mundo. + + [...] + + As mediações alienadas enfraquecem o homem ao tornarem-se indispensáveis. Uma + máscara social cobre os seres e objetos. No estado atual de apropriação primitiva, essa + máscara transforma aquilo que ela cobre em coisas mortas, em mercadorias. Não existe + mais natureza. Reencontrar a natureza é reinventá-la como adversário vantajoso + construindo novas relações sociais. A excrescência do equipamento material arrebenta o + casulo da velha sociedade hierárquica. + + -- 55 + + O quantitativo e o linear confundem-se. O qualitativo é plurivalente, o quantitativo, + unívoco. A vida quantificada se torna uma linha uniforme que é seguida em direção à + morte. + + -- 61 + + que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo? + Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob pretexto de me proteger? E como me + reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível + incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. Tudo se passa como se os meus + passos me precedessem, como se pensamentos e afetos seguissem os contornos de uma + paisagem mental que eles pensam criar, e que na realidade os modela. Uma força absurda – + tanto mais absurda quanto se inscreve na racionalidade do mundo e parece incontestável – + coage a saltar sem parar para atingir um solo que os meus pés nunca abandonaram. E com + esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de + mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto... + A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o + + -- 63 + + Ao saciar a sobrevivência por meio de uma alimentação artificial, a sociedade de consumo + suscita um novo apetite de viver. Onde quer que a sobrevivência esteja tão garantida quanto + o trabalho, as antigas salvaguardas transformam-se em obstáculos. Não só a luta para + sobreviver impede de viver: uma vez que se torna uma luta sem objetivos reais, ela corrói + iaté a própria sobrevivência, tornando precário o que era irrisório. A sobrevivência cresceu + tanto que, se não trocar de pele, ela nos sufocará na sua pele à medida que morre. + A proteção fornecida pelos senhores perdeu razão de ser desde que a solicitude mecânica + + [...] + + O poder já não protege, ele protege a si próprio contra todos. + + -- 65-66 + + Quais são os métodos de sedução do poder? A coação interiorizada + que assegura uma consciência tranquila baseada na mentira: o masoquismo do cidadão + honesto. Foi de fato necessário chamar de desprendimento ao que não passava de + castração, pintar com as cores da liberdade a escolha entre várias formas de servidão. + + -- 71 + + Sedução para domesticar, ordem, morte em pequenas ou grandes doses, + bloqueio da força criativa. + + -- 72 + + Quando o rebelde começa a acreditar que luta por um bem superior, o princípio + autoritário ganha impulso. Nunca faltaram razões à humanidade para renunciar ao + humano. De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um + medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida + cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte + essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma + coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra “coisa” arrastando por + toda parte o seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, abdica-se o + mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura, + pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da + doença. + + [...] + + A revolução se faz todos os dias, apesar dos especialistas da revolução e em + oposição a eles: uma revolução sem nome, como tudo aquilo que pertence à + experiência vivida. Ela prepara, na clandestinidade cotidiana dos gestos e dos + sonhos, a sua coerência explosiva. + + Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia + pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um + sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído na minha mente + enquanto durmo. + + [...] + + Escrevo por impaciência e com impaciência. Para viver sem tempo morto. O que as + outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas + precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me + salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem + total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou + menor. + + -- 74 + + Arte, vida, criatividade. + + -- 75-77 + + Do mesmo modo que a classe dominante tem os melhores motivos do mundo para + negar a existência da luta de classes, assim a história da separação não pode + deixar de se confundir com a história da dissimulação. + + -- 78 + + Excetuando as máquinas de guerra, as máquinas antigas têm origem no teatro: + gruas, roldanas, mecanismos hidráulicos eram usados como acessórios teatrais + bem antes de transformarem as relações de produção. Este fato merece ser + salientado: por mais longe que se recue, a dominação da terra e dos homens + depende sempre de técnicas invariavelmente consagradas ao serviço do trabalho e + da ilusão. + + -- 84 + + Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar + as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a + psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos + quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o + ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor + é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade + de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas + oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos + na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um + armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem- + consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os + quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a + passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de + estereótipos, é aquilo a que hoje se + + -- 85 + + Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e + assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da + pseudo-atividade. + + -- 86 + + A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na + hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os + estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e + roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2) + + A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se + identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a + escolha dos modelos de identifiicação. A identificação é um estado doentio, + mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença + mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel + representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também + oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer + substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no + domínio do lúdico(4) + + [...] + + O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver. + + -- 87 + + Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm + na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de + desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos + verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos + viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária. + E por isso cultivamos aparências. + + -- 88 + + Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os + encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se + conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova + em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de + jogo que transforma os papéis. + + -- 89 + + a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou + uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O + paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de + crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão. + Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o + paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que + ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do + qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório + climatizado dos hispitais psiquiátricos. + + Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na + qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias, + sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os + estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de + nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um + compromisso, por uma atividade prática. + + -- 90 + + Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as + sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte + desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas + contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos + tratarão disso, se lhes dermos a chance. + + [...] + + A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os + casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o + poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os + extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos + papéis ou os recusam. + + -- 91 + + Papel, Reich, couraça. + + -- 92 + + Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto + mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos. + Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que + não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos + não são um crime. + + -- 94 + + Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais + o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de + perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar + a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da + suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se + uma fase clandestina de tática, a era do jogo. + + O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as + manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de + táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os + papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos + momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria + ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa + apoderar. + + -- 99 + + Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui + três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento. + No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da + vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação + espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E, + hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver + do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um + cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se + reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo + segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de + um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de + organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o + homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do + homem pelo homem e do poder hierárquico. + + -- 102 + + Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um + paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem + justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se + expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem + mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos + prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia + individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da + mesquinhez e do pensamento pequeno. + + -- 105 + + Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a + sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver. + + -- 107 + + O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de + quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que + se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo + poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no + fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os + lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo, + zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um + cemitério. + + [...] + + Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram + uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos + específicos! + + Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a + si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua + liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que + resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à + não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem + como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que + seu preço seja tão alto quanto a liberdade. + + -- 114-115 + + Não existe ninguém, por mais alienado que seja, que não possua e não reconheça + a si próprio uma parte irredutível de criatividade, um quarto escuro protegido + contra qualquer intrusão de mentira e de coações. No dia em que a organização + social estender o seu controle sobre essa parte do homem, ela reinará apenas + sobre robôs e cadáveres. + + [...] + + Agora que a alienação do consumidor é esclarecida pela própria dialética do + consumo, que prisão eles preparam para a subversivíssima criatividade + individual? Eu já disse que a última saída dos dirigentes era transformar as + pessoas em organizadoras da própria passividade. + + -- 125 + + A espontaneidade - a espontaneidade é o modo de ser da criatividade individual. + Ela é o seu primeiro jorro, ainda imaculado, não poluído na fonte e ainda não + ameaçado de recuperação. Se nada é mais bem repartido no mundo do que a + criatividade, a espontaneidade, pelo contrário, parece ser um privilégio. Só a + possuem aqueles que por meio de uma longa resitência ao poder ganharam a + consciência de seu próprio valor como indivíduos. Nos momentos revolucionários + isso significa a maioria das pessoas. Em outros períodos, quando a revolução é + construída dia a dia sem ser vista, são mais pessoas do que pensamos. Onde quer + que subsista um raio de criatividade, a espontaneidade conserva as sua + possibilidades. + + -- 126 + + Só é espontâneo aquilo que não emana de uma coação interiorizada, mesmo + subconscientemente, e que além disso escapa ao domínio da abstração alienante, + à recuperação espetacular. Ela é mais uma conquista do que algo dado. A + reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente + (compare com a construção dos sonhos). + + [...] + + Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência + da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados, + ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao + inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de + si mesmo. + + [...] + + A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de + improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado + para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer + do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos + cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do + ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os + africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste + essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático + imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade + resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da + própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática + e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas” + + -- 127 + + A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida + mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de + novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos + poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização + da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de + arte é a construção de uma vida apaixonante. + + -- 131 + + Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor: + + 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal; + 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa; + 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética + + Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar + nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas. + À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da + responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para + zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito. + + Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência + que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos + trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de + organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de + capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria + por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade, + representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo, + como diria Fourier). + + [...] + + Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos + geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos + cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima. + + [...] + + A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção + desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos + proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego. + Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e + programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da + existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A + organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo + controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana. + + Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que + proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas, + podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional, + Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos + diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos + e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos + em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a + proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida + pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração + magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo + a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar. + + -- 136-137 + + O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor + perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa + de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em + oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em + deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu + requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas + de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a + presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até + no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à + maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os + homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a + entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de + forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens. + Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do + julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando + quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma + taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido. + + [...] + + Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o + impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o + seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse + abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se + multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo + imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os + senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com + a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os + senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das + coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada + ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário + destruí-las? + + Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são + aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que + nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará + diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém + objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de + uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas + isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do + poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu + adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da + hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra + magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo + que lhe é oposto.” + + Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto + contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação + possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela + organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da + vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável + da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do + seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso + a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão. + Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo + que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a + outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria + abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça + demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado + sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham + os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência + insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a + sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a + sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma. + + -- 138-139 + + A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o + adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser + destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação + deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da + organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da + arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário. + + [...] + + A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de + qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva + dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de + um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou + seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o + acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa + poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E + quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já + perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava + superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo + estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu + alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a + viver segundo as leis da adaptação ao mundo. + + -- 140 + + O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de + ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente + favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores + antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que + é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma + para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz + estranhamente familiar. + + Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos + do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou + reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta + para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não + consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder, + uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes + fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do + significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que + uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da + fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e + as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da + alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável + domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor + oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior? + + [...] + + É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação + deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos, + os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos + com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para + derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão + para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim + definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm + ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento + histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão + para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate + com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas. + + -- 142 + + Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar + em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos + pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão + um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem? + + -- 143 + + O espaço é um ponto na linha do tempo, na máquina que transforma o futuro em + passado. O tempo controla o espaço vivido, mas controla-o do exterior, + fazendo-o passar, tornando-o transitório. Contudo, o espaço da vida individual + não é um espaço puro, e o tempo que o arrasta não é também uma pura + temporalidade. Vale a pena examinar a questão com mais cuidado. + + Cada ponto terminal na linha do tempo é único e particular, e entretanto logo + que se acrescenta o ponto seguinte, o seu predecessor desaparece na + uniformidade da linha, digerido por um passado que já conhece outros pontos. + Impossível distingui-lo. Cada ponto portanto faz progredir a linha que o faz + desaparecer. + + [...] + + Por mais que o espaço vivido seja um universo de sonhos, desejos, de + criatividade prodigiosa, ele não passa em termos de duração de um ponto que + sucede a outro ponto correndo segundo um único princípio, o da destruição. Ele + aparece, se desenvolve e desaparece na linha anônima do passado na qual o seu + cadáver se torna matéria-prima aos lampejos da memória e aos historiadores. + + [...] + + O espaço cristalino da vida cotidiana rouba uma parcela de tempo exterior + graças à qual se cria uma pequena área de espaço-tempo unitário: é o + espaço-tempo dos momentos da criatividade, do prazer, do orgasmo. O lugar dessa + alquimia é minúsculo, mas a intensidade vivida é tal que exerce na maioria das + pessoas um fascínio sem igual. Visto pelos olhos do poder, observando do + exterior, esses momentos de paixão não passam de um ponto irrisório, um + instante drenado do futuro pelo passado. A linha do tempo objetivo nada sabe – + e nada quer saber – do presente como presença subjetiva imediata. E por sua + vez, a vida subjetiva apertada no espaço de um ponto – a minha alegria, o meu + prazer, as minhas fantasias – não gostaria de saber nada sobre o + tempo-que-escoa, o tempo linear, o tempo das coisas. Ela deseja, pelo + contrário, aprender tudo do seu presente já que afinal ela nada mais é que um + presente. + + -- 148 + + O projeto de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida passa pela + análise daquilo que o empobrece. O tempo linear só domina os homens na medida + em que lhes impede de transformar o mundo, na medida em que os coage portanto a + se adptarem. Para o poder, o inimigo número um é a criatividade individual + irradiando livremente. E a força da criatividade está no unitário. Como se + esforça o poder para quebrar a unidade do espaço-tempo vivido? Transformando a + experiência vivida em mercadoria, lançando-a no mercado do espetáculo, ao sabor + da oferta e da procura por papéis e estereótipos (foi isso que discuti nas + páginas dedicadas aos papéis, no capítulo XV). + + -- 150 + + Como distrair os homens de seu presente a não ser atraindo-os à esfera na qual o tempo + escoa? Essa tarefa cabe ao historiador. O historiador organiza o passado, fragmentado-o + conforme a linha oficial do tempo, depois arruma os acontecimentos em categorias ad hoc. + Essas categorias, de fácil uso, põem os acontecimentos passados em quarentena. Sólidos + parênteses os isolam, os contêm, os impedem de tomar vida, de ressuscitar, de rebentar de + novo nas ruas da nossa vida cotidiana. O acontecimento está, por assim dizer, congelado. É + proibido juntar-se a ele, refazê-lo completá-lo, tentar a sua superação. Aí está ele, + conservado para sempre e suspenso para a contemplação dos estetas. Uma leve mudança de + ênfase e hei-lo transposto do passado ao futuro. O futuro não é mais que historiadores se + repetindo. O futuro que eles anunciam é uma colagem de recordações, das suas + recordações. Vulgarizada pelos pensadores stalinistas, a famosa noção do sentido da + história acabou esvaziando de toda humanidade tanto o futuro quanto o passado. + + -- 151 + + Construir uma arte de viver é hoje uma reivindicação popular. É necessário + concretizar em um espaço-tempo apaixonadamente vivido as pesquisas de todo um + passado artístico que na verdade foram postas de lado de modo descuidado. + + Neste caso as recordações as quais me refiro, são recordações de feridas + mortais. Aquilo que não é terminado apodrece. O passado é erroneamente tratado + como irremediável. Ironicamente, aqueles que falam dele com um dado definitivo + não param de triturá-lo, de falsificá-lo, de arranjá-lo ao gosto do dia. Eles + agem como o pobre Winston, em 1984 de George Orwell, reescrevendo artigos de + jornais antigos que foram contraditos pela evolução dos acontecimentos. + + [...] + + Existe apenas uma forma valorosa de esquecer : aquela que apaga o passado + realizando-o. Aquela que salva da decomposição pela superação. Os fatos, por + mais longe que se situem, nunca disseram sua última palavra. Basta uma mudança + radical no presente para que desçam das estantes do museu e ganhem vida aos + nossos pés. + + -- 152 + + Construir o presente é corrigir o passado, mudar a psicogeografia do nosso + ambiente, libertar de sua ganga os sonhos e os desejos insatisfeitos, deixar as + paixões individuais harmonizarem-se no coletivo. O intervalo de tempo que + separa os revoltados de 1525 dos rebeldes muletistas, Spartakus de Pancho Villa + só pode ser transposto pela minha vontade de viver. + + Esperar por amanhãs festivos é o que impossibilita as nossas festas de hoje. O + futuro é pior que o oceano: ele nada contém. Planejamento, prospecção, plano a + longo prazo: é o mesmo que especular sobre o teto da casa quando o primeiro + andar não existe mais. E contudo se construíres bem o presente o resto virá por + consequência. + + [...] + + Na zona da criação verdadeira o tempo se dilata. No inautêntico, o tempo se + acelera. + + -- 153 + + A tarefa é sempre resolver as contradições do presente, não parar no meio do + caminho, não se deixar distrair, tomar o caminho da superação. Essa tarefa é + coletiva, de paixão, de jogo (a eternidade é o mundo do jogo, diz Boehme). Por + mais pobre que seja o presente sempre contém a verdadeira riqueza, a da + construção possível. Esse é o poema interrompido que me enche de alegria. + + -- 153-154 + + A paixão de criar é a base do projeto de realização (2), a paixão do amor é a + base do projeto de comunicação (4), a paixão do jogo é a base do projeto de + participação (6). Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade + repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença atualmente observável + na maioria das pessoas de uma mesma vontade de construir uma vida apaixonante + (3). O erotismo é a coerência espontânea que dá unidade prática à tentativa de + enriquecer a experiência vivida. ( 5) + + [...] + + A construção da vida cotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional + e do passional. O mistério deliberadamente tecido desde sempre a respeito da + vida tem como principal objetivo dissimular a trivialidade da sobrevivência. De + fato, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. O + fascínio que a promessa de uma vida rica e multidimensional exerce sobre cada + indíviduo adquire, necessariamente, o aspecto de um projeto submetido no todo + ou em parte ao poder social encarregado de impedi-lo. Assim como o governo dos + homens recorre essencialmente a um tríplice modo de opressão – a coação, a + mediação alienante e a sedução mágica – também a vontade de viver encontra + força e coerência na unidade de três projetos indissociáveis : a realização, a + comunicação, a participação. + + Em uma história dos homens que não se reduzisse à história da sobrevivência, + sem por outro lado se dissociar dela, a dialética desse triplo projeto, aliada + à dialética das forças produtivas explica a maioria dos comportamentos. Não há + motim ou revolução que não revele uma busca apaixonada por uma vida exuberante, + por uma transparência das relações humanas e por um modo coletivo de + transformação do mundo. De fato, três paixões fundamentais parecem animar a + evolução histórica, paixões que são para a vida aquilo que a necessidade de + alimento e proteção são para a sobrevivência. A paixão da criação, a paixão do + amor e a paixão do jogo interagem com a necessidade de alimento e de proteção, + tal como a vontade de viver interfere continuamente na necessidade de + sobreviver. + + -- 155 + + A mania cartesiana de fragmentar, e de progredir de forma gradual, produz + necessariamente uma realidade coxa e incompleta. Os exércitos da Ordem só + recrutam mutilados. + + -- 156 + + Mostrei de que maneira a organização social hierárquica constrói o mundo + destruindo os homens; de que modo o aperfeiçoamento do seu mecanismo e das suas + redes a fez funcionar como um computador gigante cujos programadores são também + programados; de que modo, enfim, o mais frio dos monstros frios encontra a sua + realização no projeto do estado cibernético. + + Nessas condições a luta pelo pão de cada dia, o combate contra o desconforto, a + busca de uma estabilidade de emprego e de uma segurança material são, na frente + social, igualmente expedições ofensivas que tomam lenta mas seguramente o + aspecto de ações de retaguarda (mas não se deve subestimar a importância + delas). + + Apesar de falsos compromissos e de atividades ilusórias, uma energia criadora + continuamente estimulada não é absorvida mais depressa suficientemente sob a + ditadura do consumo. [...] O que acontecerá a essa exuberância repentinamente + disponível, a esse excesso de robustez e de virilidade que nem as coações nem a + mentira conseguiram verdadeiramente desgastar? + + Não recuperada pelo consumo artístico e cultural – pelo espetáculo ideológico – + a criatividade volta-se espontaneamente contra as condições e as garantias de + sobrevivência. Os rebeldes não têm nada a perder a não ser sua sobrevivência. + Contudo, podem perdê-la de dois modos : perdendo a vida ou construindo-a. Já + que a sobrevivência é uma espécie de morte lenta, existe uma tentação, não + desprovida de sentimentos genuínos, de acelerar o movimento e morrer mais + depressa como pisar fundo no acelerador de um carro de corrida. “Vive-se” + então negativamente a negação da sobrevivência. Ou pelo contrário, as pessoas + podem se esforçar por sobreviver como anti-sobreviventes concentrando sua + energia no enriquecimento da vida cotidiana. Negam a sobrevivência + incorporando-a em uma atividade lúdica construtiva. Essas duas soluções + promovem a tendência unitária e contraditória da dialética da decomposição e da + superação. + + -- 157 + + Nietzsche. + + -- 158 + + O fervor dos soldados rasos faz a disciplina dos exércitos: a única coisa que a + cachorrada policial aprende é a hora de morder e a hora de rastejar. + + [...] + + Se a violência inerente aos grupos de jovens delinquentes deixasse de se + dissipar em ações espetaculares e tornar-se insurrecional, provocaria sem + dúvida uma reação em cadeia, uma onda de choque qualitativa. [...] Se os + blouson noirs atingiram uma consciência revolucionária pela simples compreensão + daquilo que já são e pela simples exigência de querer ser mais, é provável que + determinem o epicentro da inversão de perspectiva. Federar os seus grupos seria + o ato que simultaneamente manifestaria e permitiria essa consciência. + + -- 159 + + Ninguém se desenvolve livremente sem espalhar a liberdade no mundo. + + -- 163 + + Os especialistas da comunicação organizam a mentira em proveito dos senhores de + cadáveres. + + [...] + + - quanto mais me desligo do objeto do meu desejo, e quanto mais força objetiva + dou ao objeto do meu desejo, mais o meu desejo se torna despreocupado em + relação ao seu objeto; + + - quanto mais me desligo do meu desejo como objeto e mais força objetiva dou ao + objeto do meu desejo, mais o meu desejo encontra sua razão de ser no ser + amado. + + -- 165 + + A verdadeira escolha é entre a sedução espetacular – a conversa fiada – e a + sedução pelo qualitativo – a pessoa que é sedutora porque não se preocupa em + seduzir. + + -- 166 + + O prazer é o princípio de unificação. O amor é a paixão pela unidade em um + momento comum. A amizade é a paixão pela unidade em um projeto comum. + + -- 167 + + Sem predizer os detalhes de uma sociedade em que a organização das relações + humanas esteja aberta sem reservas à paixão do jogo, podemos no entanto prever + que ela apresentará as seguintes características: + + - recusa de chefes e de qualquer hierarquia + - recusa de sacrifício + - recusa de papéis + - liberdade de realização autêntica + - transparência das relações sociais + + -- 170 + + São, evidentemente, grupos numericamente pequenos, as micrissociedades, que + apresentam as melhores condições de experimentação. Nelas, o jogo regulará + soberanamente os mecanismos da vida em comum, a harmonização dos caprichos, dos + desejos das paixões. + + [...] + + O que aconteceria então se as pessoas começassem a brincar com os papéis da + vida real? + + -- 171 + + Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou essa pessoa se + arruína ou arruína o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um + especialista em jogo coletivo. + + [...] + + Qual é o melhor provocador? O líder do jogo que se torna dirigente. + + [...] + + Diferentemente do provocador, o traidor aparece espontaneamente em um grupo + revolucionário. Ele surge sempre que a paixão do jogo desaparece e junto com + ela o projeto de participação real. O traidor é um homem que não encontrando + como se realizar autenticamente por meio do modo de participação que lhe é + proposto, decide jogar contra essa participação não para corrigi-la mas para + destrui-la. traidor é a doença senil dos grupos revolucinarios. + + [...] + + Um exército eficientemente hierarquizado pode ganhar uma guerra, mas não uma + revolução. Uma horda indisciplinada não consegue a vitória nem na guerra, nem + na revolução. O problema é organizar sem hierarquizar, ou em outras palavras, + procurar que o líder do jogo não se torne um chefe. O espírito lúdico é a + melhor garantia contra a esclerose autoritária. Nada resiste a criatividade + armada. Sabemos que as tropas de Villa e de Makhno derrotaram os mais + aguerridos batalhões de exército. + + -- 172 + + A organização hierárquica e a completa falta de disciplina são ambas ineficientes. + + [...] + + Como manter a disciplina necessária ao combate numa tropa que se recusa + obedecer servilmente a um chefe? Como evitar a falta de coesão? Na maioria das + vezes, os exércitos revolucionários sucumbem ao mal da submissão a uma causa ou + a busca inconsequente do prazer. + + [...] + + A melhor tática forma uma só unidade com o cálculo hedonista. A vontade de + viver, brutal, desenfreada é para o combatente a mais mortífera arma secreta. + Essa arma volta-se contra aqueles que a ameaçam: para defender a pele, o + soldado tem todo o interesse em atirar nos superiores. + + -- 173 + + Quando uma canalização de água arrebentou no laboratório de Pavlov, nenhum dos + cães que sobreviveram à inundação conservou o menor traço do seu longo + condicionamento. O maremoto das grandes transformações sociais teria menos + efeito sobre os homens do que uma inundação sobre cães? + + -- 178 + + Aqueles que se aproximam da revolução afastando-se de si mesmos – como todos os + militantes fazem – se aproximam de costas para trás às avessas. + + -- 180 diff --git a/books/life/brevidade-da-vida.md b/books/life/brevidade-da-vida.md new file mode 100644 index 0000000..4e21a25 --- /dev/null +++ b/books/life/brevidade-da-vida.md @@ -0,0 +1,209 @@ +[[!meta title="Sobre a brevidade da vida"]] + +* [Seneca On The Shortness Of Life](https://archive.org/details/SenecaOnTheShortnessOfLife). +* [Sobre a Brevidade da Vida - Sêneca](http://lelivros.love/book/baixar-livro-sobre-a-brevidade-da-vida-seneca-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/). + +## Trechos + + A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a + realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no + luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, + finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou (4) por + nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida + breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores. Tal como + abundantes e régios recursos, quando caem nas mãos de um mau senhor, + dissipam-se num momento, enquanto que, por pequenos que sejam, se são confiados + a um bom guarda, crescem pelo uso, assim também nossa vida se estende por muito + tempo, para aquele que sabe dela bem dispor. + + [...] + + Por que nos queixamos da Natureza? Ela mostrou-se benevolente: a vida, se + souberes utilizá-la, é longa. Mas uma avareza insaciável apossa-se de, um de + outro, uma laboriosa dedicação a atividades inúteis, um embriaga-se de vinho, + outro entorpece-se na inatividade; a este, uma ambição sempre dependente das + opiniões alheias o esgota, um incontido desejo de comerciar leva aquele a + percorrer todas as terras e todos os mares, na esperança de lucro; a paixão + pelos assuntos militares atormenta alguns, sempre preocupados com perigos + alheios ou inquietos com seus próprios; há os que, por uma servidão voluntária, + se desgastam numa ingrata solicitude a seus superiores; (2) a busca da beleza + de um outro ou o cuidado com sua própria ocupa a muitos; a maioria, que não + persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e + inconstante leviandade, desgostando-se com isso; alguns não definiram para onde + dirigir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados e bocejantes, de tal + forma que não duvido ser verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o maior + dos poetas: “Pequena é a parte da vida que (3) vivemos.” Pois todo o restante + não é vida, mas tempo. + + [...] + + Finalmente, todos concordam que um homem ocupado não pode fazer nada bem: não + pode se dedicar à eloqüência, nem aos estudos liberais, uma vez que seu + espírito, ocupado em coisas diversas, não se aprofunda em nada, mas, pelo + contrário, tudo rejeita, pensando que tudo lhe é imposto. Nada é menos próprio + do homem ocupado do que viver, pois não há outra coisa que seja mais difícil de + aprender. Professores das outras artes, há vários e por toda parte, dentre + algumas dessas, vemos crianças terem atingido tanta maestria, que chegam até a + ensiná-las. Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez + te espantes, a vida (4) toda é um aprender a morrer. Muitos dos maiores homens, + tendo afastado todos os obstáculos e renunciado às riquezas, a seus negócios e + aos prazeres, empregaram até o último de seus dias para aprender a viver, + contudo muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo – e + muito menos ainda (5) o sabem os que mencionei acima. + + [...] + + Cada um faz precipitar sua vida e (9) padece da ânsia do futuro e de tédio + do presente. + + [...] + + Portanto não há por que pensar que alguém tenha vivido muito, por causa de suas + rugas ou cabelos brancos: ele não viveu por muito tempo, simplesmente foi por + muito tempo. Pensarias ter navegado muito, aquele que, tendo se afastado do + porto, foi apanhado por violenta tempestade, errou para cá e para lá e ficou a + dar voltas, conforme a mudança dos ventos e o capricho dos furacões, sem + contudo sair do lugar? Ele não navegou muito, mas foi muito acossado. + + [...] + + Os homens recebem pensões e aluguéis com muito prazer e concentram neles suas + preocupações, esforços e cuidados, mas ninguém dá valor ao tempo; usa-se dele a + rédeas soltas, como se nada custasse. Porém, quando doentes, se estão próximos + do perigo de morte, prostram-se aos joelhos dos médicos; ou, se temem a pena + capital, estão prontos a gastar todos os seus bens para viver. + Tamanha é a discórdia de seus (3) sentimentos! Se fosse possível apresentar a + cada um a conta dos anos futuros, da mesma forma que podemos fazer com os + passados, como tremeriam aqueles que vissem restar-lhes poucos anos e como os + poupariam! Pois, se é fácil administrar o que, embora curto, é certo, deve-se + conservar com muito cuidado o que não se pode saber (4) quando há de acabar. + Contudo não há por que pensar que eles ignoram que coisa preciosa é o tempo: + costumam dizer aos que amam muitíssimo que estão dispostos a lhes dar parte de + seus dias. E realmente dão, sem se aperceberem disto, mas dão de forma a + subtraírem vários anos a si, sem aumentar os daqueles. Mas ignoram o fato mesmo + de estarem perdendo seus anos, por isso lhes é tolerável a perda de um bem que + não é (5) notado. Ninguém devolverá teus anos, ninguém te fará voltar a ti + mesmo. Uma vez principiada, a vida segue seu curso e não reverterá nem o + interromperá, não se elevará, não te avisará de sua velocidade. Transcorrerá + silenciosamente, não se prolongará por ordem de um rei, nem pelo apoio do povo. + Correrá tal como foi impulsionada no primeiro dia, nunca desviará seu curso, + nem o retardará. Que sucederá? Tu estás ocupado, e a vida se apressa; por sua + vez virá a morte, à qual deverás te entregar, queiras ou não. + + 9 – 1: Pode haver algo mais estúpido que o modo de ver de alguns – falo + daqueles que deixam de lado a prudência. Ocupam-se para poder viver melhor: + armazenam a vida, gastando-a! Fazem seus planos a longo prazo; no entanto + protelar é do maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece + a nós, rouba-nos o presente ao prometer o futuro. O maior impedimento para + viver é a expectativa, a qual tende para o amanhã e faz perder o momento + presente. Do que está nas mãos da Fortuna, dispões; o que está nas tuas, + despedes. Para onde ficas a olhar? Para que tendes? Tudo que está por vir se + assenta na incerteza: desde (2) já, vive! + + [...] + + O tempo presente é brevíssimo, tanto que a alguns parece não existir, pois está + sempre em movimento; flui e precipita-se; deixa de ser antes de vir a ser; é + tão incapaz de deter-se, quanto o mundo ou as estrelas, cujo infatigável + movimento não lhes permite permanecer no mesmo lugar. Pertence, pois, aos + ocupados, apenas o tempo presente, que é tão breve que não pode ser abarcado; e + este mesmo escapa-lhes, ocupados que estão em muitas coisas. + + [...] + + Dentre todos os homens, somente são ociosos os que estão disponíveis para a + sabedoria; eles são os únicos a viver, pois, não apenas administram bem sua + vida, mas acrescentam-lhe toda a eternidade. Todos os anos que se passaram + antes deles são somados aos seus. + + [...] + + Nenhum destes [filósofos] forçará tua morte, todos te ensinarão a morrer, + nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. Nunca a conversação com + eles será perigosa, fatal a amizade ou onerosa a deferência. Conseguirás deles + tudo o que quiseres: não será deles a culpa (2) se não tiveres exaurido tudo o + que desejas. Que felicidade, que bela velhice não aguarda o que se dispôs a ser + seu cliente! Ele terá com quem discutir sobre as menores, bem como sobre as + maiores, questões, a quem consultar diariamente sobre si mesmo, de quem ouvir a + verdade sem ofensa e ser louvado sem adulação, a cuja (3) semelhança se possa + moldar. Costumamos dizer que não está em nosso poder escolher os pais que a + sorte nos destinou, mas que nos foram dados ao acaso; contudo é nos permitido + ter um nascimento segundo a nossa escolha. Existem famílias dos mais nobres + espíritos: escolhe a qual delas queres pertencer, e receberás não apenas seu + nome, mas também seus próprios bens, que não terás de vigiar miserável e + mesquinhamente, pois, quanto mais forem partilhados pelos homens, maiores (4) + se tornarão. Estes te darão o acesso à eternidade, te elevarão àquelas alturas + de onde ninguém se precipita. Esta é a única maneira de prolongara existência + mortal e, até mais, de convertê-la em imortalidade. As dignidades, os + monumentos, tudo o que a ambição impôs por decretos, ou construiu com o suor, + depressa há de cair em ruínas: não há nada que a longa passagem dos anos não + destrua ou desordene. Mas ela não pode tocar nos conhecimentos que a sabedoria + consagrou, nenhuma idade os destruirá ou diminuirá, a seguinte e as sucessivas + sempre hão de aumentá-los ainda mais: pois a inveja tem olhos apenas para o que + está próximo de si, e admiramos com menos malícia o que está (5) distante. + Portanto a vida do filósofo estende-se por muito tempo, e ele não está + confinado nos mesmos limites que os outros. É o único a não depender das leis + do gênero humano: todos os séculos servem-no como a um deus. + + [...] + + É extremamente breve e agitada a vida dos que esquecem o passado, negligenciam + o presente e receiam o futuro; quando chegam ao termo de suas existências, os + pobres coitados compreendem tardiamente que (2) estiveram por longo tempo + ocupados em nada fazer. [...] + Não há ainda razão para se pensar que isto também seja uma prova de uma vida + longa: – o fato de muitas vezes os dias lhes parecerem longos, ou porque se + queixam de as horas custarem a passar até que chegue o momento do jantar; pois, + se porventura as ocupações os abandonam, sentem-se desertados e inquietam-se + mesmo no lazer, nem sabem como dispor dele ou matá-lo. Portanto anseiam por uma + ocupação qualquer, e todo intervalo de tempo entre duas ocupações lhes é um + fardo. E – por Hércules – tal é o que acontece quando se fixa a data dos + combates de gladiadores, ou quando se aguarda o dia de um outro gênero qualquer + de espetáculo ou divertimento: (4) desejam saltar os dias intermediários! + + [...] + + Em meio a grandes labutas, conseguem o que desejam e ansiosos conservam o que + conseguiram; entretanto não têm consciência de que o tempo nunca mais há de + voltar. Novas ocupações seguem-se às antigas; a esperança suscita esperança; a + ambição, ambição. + + [...] + + Portanto, meu caro Paulino, aparta-te da multidão e, já bastante acossado pela + duração de tua existência, não te afastes de um porto mais tranqüilo. Pensa + quantas vagas já te acometeram, quantas tempestades, de uma parte, já + suportaste na vida particular, quantas, de outra, suscitaste contra ti na vida + pública. Teu valor já foi suficientemente testado, em fatigantes e atormentadas + provas, o teu valor: tenta ver o que pode realizar no ócio. A maior parte de + tua vida, e certamente a melhor, foi dada à República, toma (2) também para ti + um pouco de teu tempo. Não te convoco a um retiro indolente e inativo, nem + a afogar todo o teu vigoroso caráter no sono ou nos prazeres caros à multidão: + isso não é estar em sossego. Encontrarás tarefas maiores que todas as que + cumpriste devotadamente até aqui, as quais executarás no retiro e livre de (3) + preocupações. + + [...] + + Recolhe-te a estas coisas mais tranqüilas, mais seguras, melhores! Acaso tu + pensas serem o mesmo estas duas coisas: cuidar que o trigo seja transportado ao + celeiro, intacto e a salvo da fraude ou negligência dos carregadores, que não + se estrague pela fermentação, que esteja bem seco, que seu peso e medida + confiram, e elevar-se às coisas sagradas e sublimes para conhecer qual é a + substância de deus, seu prazer, sua condição, sua forma, que destino aguarda + tua alma, que lugar a Natureza nos destina após nos separarmos do corpo, qual a + razão por que ela mantém os corpos mais pesados no centro do universo, suspende + os altos às regiões altas, eleva o fogo à mais alta, impele as estrelas às suas + trajetórias e ainda outras coisas cheias de notáveis (2) maravilhas? Abandona o + solo e volta-te a esses estudos! Agora, enquanto o sangue ferve, deve-se ir, + com determinação, para o melhor. + + [...] + + Portanto, quando vires freqüentemente uma toga pretexta ou um nome célebre no + fórum, não o invejes: essas coisas são adquiridas ao custo da vida. Para ligar + seu nome a um único ano, consumirão todos os seus anos. A uns, a vida abandonou + logo nas primeiras etapas, antes que tivessem atingido as alturas ambicionadas; + a outros, após terem galgado o cume das honras através de mil desonestidades, + sobrevém o triste pensamento: “ter trabalhado tanto por uma inscrição num + túmulo!” |