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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-08-07 10:05:58 -0300
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--- /dev/null
+++ b/books/life/arte-da-vida.md
@@ -0,0 +1,13 @@
+[[!meta title="Arte da vida"]]
+
+* Autor: Zygmunt Bauman
+* Ano: 2009
+* Editora: Zahar
+
+## Índice
+
+* Classe média, ansiedade, obsessão, 64, 65.
+* Utopia, distopia, novo homem, acidente, 131.
+* Terceiro homem, 157.
+* Reciprocidade, responsabilidade, 160.
+* Organização, 163.
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--- /dev/null
+++ b/books/life/arte-de-viver.md
@@ -0,0 +1,1040 @@
+[[!meta title="A Arte de Viver para as Novas Gerações"]]
+
+Sobre
+-----
+
+A Arte de Viver para as Novas Gerações, Raoul Vaneigem.
+
+Versões
+-------
+
+* http://library.nothingness.org/articles/SI/en/pub_contents/5
+* http://arikel.free.fr/aides/vaneigem/
+
+Trechos
+-------
+
+ The path toward simplicity is the most complex of all, and here in particular
+ it seemed best not to tear away from the commonplace the tangle of roots which
+ enable us to transplant it into another region, where we can cultivate it to
+ our own profit.
+
+ -- http://library.nothingness.org/articles/SI/en/display/34
+
+ Gostaria que um livro como este fosse acessível às cabeças menos acostumadas com a
+ linguagem das idéias. Espero não ter fracassado totalmente. Desse caos, algum dia sairão
+ fórmulas capazes de atingir à queima-roupa os nosso inimigos. Até lá, que as frases
+ relidas aqui e ali tenham seus efeitos. A via para a simplicidade é a mais complexa de
+ todas e, especialmente nesse caso, era conveniente não arrancar ao lugar-comum as
+ múltiplas raízes que poderemos transplantar a outro terreno e cultivá-las em nosso
+ benefício.
+
+ -- 8
+
+ A opção de viver é uma opção política. Não queremos um mundo no qual a garantia
+ de não morrer de fome se troca pelo risco de morrer de tédio.
+
+ -- 9
+
+ O bom comportamento do prisioneiro depende da esperança de fugir que a prisão
+ alimenta. Por outro lado, impelido contra uma parede sem saída, um homem apenas
+ conhece a raiva de destruí-la ou de quebrar nela a cabeça, o que não deixa de
+ ser lamentável para uma boa organização social (mesmo se o suicida não tiver a
+ feliz idéia de se matar no estilo dos príncipes orientais, levando com ele
+ todos os seus servos: juízes, bispos, generais, policiais, psiquiatras, filósofos,
+ managers, especialistas e cibernéticos).
+
+ -- 36
+
+ Assim que o líder do jogo se torna um chefe, o princípio hierárquico se salva, e a revolução
+ se detém para presidir o massacre dos revolucionários. É preciso lembrar sempre: o projeto
+ insurrecional só pertence às massas, o líder reforça-o, o chefe o trai. É entre o líder e o
+ chefe que inicialmente se desenrola a luta autêntica.
+
+ -- 37
+
+ Resumindo, a descompressão nada mais é do que o controle dos antagonismos pelo poder.
+ A oposição de dois termos toma sentido pela introdução de um terceiro. Se só existem dois
+ pólos, eles se neutralizam, uma vez que cada um se define pelos valores do outro. É
+ impossível escolher entre eles, entra-se no domínio da tolerância e do relativismo, tão
+ querido à burguesia. Como é compreensível o interesse da hierarquia apostólica romana na
+ querela entre o maniqueísmo e o trinitarismo!
+
+ -- 38
+
+ O poder aquisitivo é a licença de aquisição do poder. O velho proletariado
+ vendia a força de trabalho para subsistir; o seu escasso tempo livre era gasto
+ mais ou menos de maneira agradável em discussões, conversas, nos bares, fazendo
+ amor, caminhando em festas e motins. O novo proletariado vende a força de
+ trabalho para consumir. Quando não busca no trabalho forçado uma promoção
+ hierárquica, o trabalhador é convidado a comprar objetos (carro, gravata,
+ cultura...) que lhe atribuirão o seu lugar na escala social.
+ Esta é a era em que a ideologia do consumo se torna o consumo da ideologia.
+ A expansão cultural leste-oeste não é um acidente. De um lado, o homo
+ consumidor compra um litro de uísque e recebe como prêmio a mentira que o
+ acompanha. Do outro, o homem comunista compra ideologia e recebe como prêmio um
+ litro de vodca. Paradoxalmente, os regimes soviéticos e capitalistas seguem um
+ caminho comum, os primeiros graças à sua economia de produção, os segundos pela
+ sua economia de consumo.
+
+ -- 46
+
+ Com as diferenças crescendo em número e se tornando menores, a distância
+ entre ricos e pobres diminui de fato, e a humanidade é nivelada, com as
+ variações de pobreza sendo as únicas variações. O ponto culminante seria a
+ sociedade cibernética composta de especialistas hierarquizados segundo a sua
+ aptidão de consumir e de fazer consumir as doses de poder necessárias ao
+ funcionamento de uma gigantesca máquina social da qual eles seriam ao mesmo
+ tempo a entrada e a saída de dados. Uma sociedade de exploradores-explorados
+ onde alguns escravos são mais iguais do que outros.
+
+ -- 47
+
+ A história é a transformação contínua da alienação natural em alienação social,
+ e também, paradoxalmente, o contínuo reforço de um movimento de contestação que
+ irá dissolvê-la, “desalienando-a”. A luta histórica contra a alienação natural
+ transforma a alienação natural em alienaçao social, mas o movimento de
+ desalienação histórica atinge por sua vez a alienação social e denuncia a sua
+ magia fundamental.
+
+ [...]
+
+ O apodrecimento das relações humanas pela troca e pela contrapartida está
+ evidentemente ligado à existência da burguesia. Que a troca persista em uma
+ parte do mundo em que se diz que a sociedade sem classes se realizou atesta que
+ a sombra da burguesia continua reinar debaixo da bandeira vermelha. Enquanto
+ isso, entre as pessoas que vivem nos países industrializados, o prazer de dar
+ delimita muito claramente a fronteira entre o mundo do cálculo e o mundo da
+ exuberância, da festa.
+
+ -- 49
+
+ Dom, troca, contrapartida e doação.
+
+ -- 49
+
+ Técnica.
+
+ -- 50
+
+ Desse ponto de vista, a história não passa da transformação da alienação
+ natural em alienação social: um processo de desalienação transformado em um
+ processo de alienação social, um movimento de libertação que produza novos
+ grilhões. Embora, no final, a vontade de emancipação humana ataque diretamente
+ o conjunto dos mecanismos paralisantes, ou seja, a organização social baseada
+ na apropriação privada. Esse é o movimento de desalienação que vai desfazer a
+ história e realizá-la em novos modos de vida.
+
+ A ascensão da burguesia ao poder anuncia a vitória do homem sobre as forças
+ naturais. Mas, na mesma hora, a organização social hierárquica, nascida da
+ necessidade de luta contra a fome, a doença, o desconforto etc., perde sua
+ justificativa e é obrigada a endossar a responsabilidade pelo mal-estar nas
+ civilizações industriais. Hoje os homens já não atribuem a sua miséria à
+ hostilidade da natureza, mas sim, à tirania de uma forma social totalmente
+ inadequada, totalmente anacrônica. Destruindo o poder mágico dos senhores
+ feudais, a burguesia condenou a magia do poder hierárquico. O proletariado
+ executará a sentença.
+
+ -- 50
+
+ O princípio hierárquico é o princípio mágico que resitiu à emancipação dos homens e as
+ suas lutas históricas pela liberdade. De agora em diante nenhuma revolução será digna
+ desse nome se não implicar pelo menos a eliminação radical de toda hierarquia.
+
+ -- 51
+
+ Rigidamente quantificado (pelo dinheiro e depois pela quantidade de poder, por aquilo a
+ que poderíamos chamar “unidades sociométricas de poder”), a troca polui todas as relações
+ humanas, todos os sentimentos, todos os pensamentos. Onde quer que a troca domine, só
+ sobram coisas, um mundo de homens-objetos congelados nos organogramas do poder
+ cibernético: o mundo da reificação. Mas é também, paradoxalmente, a oportunidade de uma
+ reestruturação radical dos nossos modelos de vida e de pensamento. Um ponto zero em que
+ tudo pode verdadeiramente começar.
+
+ [...]
+
+ Ao sacrifício do senhor sucede o último estágio do sacrifício, o sacrifício do especialista.
+ Para consumir, o especialista faz outros consumirem de acordo com um programa
+ cibernético no qual a hiper-racionalidade das trocas suprimirá o sacrifício – e o homem ao
+ mesmo tempo! Se a troca pura regular um dia as modalidades de existência dos cidadãos-
+ robôs da democracia cibernética, o sacrifício deixará de existir. Para obedecer, os objetos
+ não têm necessidade de justificativa. O sacrifício não faz parte do programa das máquinas
+ assim como do seu oposto, o projeto do homem total.
+
+ -- 52
+
+ Contrariamente aos interesses daqueles que controlam seu uso, a técnica tende a
+ desmistificar o mundo.
+
+ [...]
+
+ As mediações alienadas enfraquecem o homem ao tornarem-se indispensáveis. Uma
+ máscara social cobre os seres e objetos. No estado atual de apropriação primitiva, essa
+ máscara transforma aquilo que ela cobre em coisas mortas, em mercadorias. Não existe
+ mais natureza. Reencontrar a natureza é reinventá-la como adversário vantajoso
+ construindo novas relações sociais. A excrescência do equipamento material arrebenta o
+ casulo da velha sociedade hierárquica.
+
+ -- 55
+
+ O quantitativo e o linear confundem-se. O qualitativo é plurivalente, o quantitativo,
+ unívoco. A vida quantificada se torna uma linha uniforme que é seguida em direção à
+ morte.
+
+ -- 61
+
+ que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo?
+ Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob pretexto de me proteger? E como me
+ reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível
+ incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. Tudo se passa como se os meus
+ passos me precedessem, como se pensamentos e afetos seguissem os contornos de uma
+ paisagem mental que eles pensam criar, e que na realidade os modela. Uma força absurda –
+ tanto mais absurda quanto se inscreve na racionalidade do mundo e parece incontestável –
+ coage a saltar sem parar para atingir um solo que os meus pés nunca abandonaram. E com
+ esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de
+ mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto...
+ A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o
+
+ -- 63
+
+ Ao saciar a sobrevivência por meio de uma alimentação artificial, a sociedade de consumo
+ suscita um novo apetite de viver. Onde quer que a sobrevivência esteja tão garantida quanto
+ o trabalho, as antigas salvaguardas transformam-se em obstáculos. Não só a luta para
+ sobreviver impede de viver: uma vez que se torna uma luta sem objetivos reais, ela corrói
+ iaté a própria sobrevivência, tornando precário o que era irrisório. A sobrevivência cresceu
+ tanto que, se não trocar de pele, ela nos sufocará na sua pele à medida que morre.
+ A proteção fornecida pelos senhores perdeu razão de ser desde que a solicitude mecânica
+
+ [...]
+
+ O poder já não protege, ele protege a si próprio contra todos.
+
+ -- 65-66
+
+ Quais são os métodos de sedução do poder? A coação interiorizada
+ que assegura uma consciência tranquila baseada na mentira: o masoquismo do cidadão
+ honesto. Foi de fato necessário chamar de desprendimento ao que não passava de
+ castração, pintar com as cores da liberdade a escolha entre várias formas de servidão.
+
+ -- 71
+
+ Sedução para domesticar, ordem, morte em pequenas ou grandes doses,
+ bloqueio da força criativa.
+
+ -- 72
+
+ Quando o rebelde começa a acreditar que luta por um bem superior, o princípio
+ autoritário ganha impulso. Nunca faltaram razões à humanidade para renunciar ao
+ humano. De fato algumas pessoas possuem um verdadeiro reflexo de submissão, um
+ medo irracional da liberdade, um masoquismo visível em toda parte da vida
+ cotidiana. Com que amarga facilidade se abandona um desejo, uma paixão, a parte
+ essencial de si. Com que passividade, com que inércia se aceita viver por uma
+ coisa qualquer, agir por qualquer coisa, com a palavra “coisa” arrastando por
+ toda parte o seu peso morto. Uma vez que é difícil ser si mesmo, abdica-se o
+ mais rápido possível, ao primeiro pretexto: o amor pelos filhos, pela leitura,
+ pela alcachofra. Nosso desejo de cura apaga-se sob tal generalidade abstrata da
+ doença.
+
+ [...]
+
+ A revolução se faz todos os dias, apesar dos especialistas da revolução e em
+ oposição a eles: uma revolução sem nome, como tudo aquilo que pertence à
+ experiência vivida. Ela prepara, na clandestinidade cotidiana dos gestos e dos
+ sonhos, a sua coerência explosiva.
+
+ Nenhum problema é tão importante para mim quanto aquele que é colocado todo dia
+ pela dificuldade de inventar uma paixão, de realizar um desejo, de construir um
+ sonho da forma espontânea como durante a noite ele é construído na minha mente
+ enquanto durmo.
+
+ [...]
+
+ Escrevo por impaciência e com impaciência. Para viver sem tempo morto. O que as
+ outras pessoas dizem só me interessa na medida em que me diga respeito. Elas
+ precisam de mim para que se salvem assim como eu preciso delas para que eu me
+ salve. O nosso projeto é comum. Mas está fora de questão que o projeto do homem
+ total esteja ligado à redução da individualidade. Não existe castração maior ou
+ menor.
+
+ -- 74
+
+ Arte, vida, criatividade.
+
+ -- 75-77
+
+ Do mesmo modo que a classe dominante tem os melhores motivos do mundo para
+ negar a existência da luta de classes, assim a história da separação não pode
+ deixar de se confundir com a história da dissimulação.
+
+ -- 78
+
+ Excetuando as máquinas de guerra, as máquinas antigas têm origem no teatro:
+ gruas, roldanas, mecanismos hidráulicos eram usados como acessórios teatrais
+ bem antes de transformarem as relações de produção. Este fato merece ser
+ salientado: por mais longe que se recue, a dominação da terra e dos homens
+ depende sempre de técnicas invariavelmente consagradas ao serviço do trabalho e
+ da ilusão.
+
+ -- 84
+
+ Por meio ainda da técnica rudimentar da imagem, o indivíduo aprende a modelar
+ as suas atitudes existenciais segundo os retratos-robôs que dele traça a
+ psicologia moderna. Os seus tiques e manias pessoais se tornam os meios pelos
+ quais o poder o integra nos seus esquemas. A miséria da vida cotidiana atinge o
+ ápice ao pôr-se em cena na tela. Do mesmo modo que a passividade do consumidor
+ é uma passividade ativa, a passividade do espectador reside na sua capacidade
+ de assimilar papéis para depois desempenhá-los de acordo com as normas
+ oficiais. A repetição de imagens, os estereótipos oferecem uma série de modelos
+ na qual cada um deve escolher um papel. O espetáculo é um museu de imagens, um
+ armazém de sombras chinesas. É também um teatro experimental. O homem-
+ consumidor se deixa condicionar pelos estereótipos (lado passivo) segundo os
+ quais modela os seus diferentes comportamentos (lado ativo). Dissimular a
+ passividade, renovando as formas de participação espetacular e a variedade de
+ estereótipos, é aquilo a que hoje se
+
+ -- 85
+
+ Os papéis são desmanchados pela força da resistência da experiência vivida, e
+ assim a espontaneidade arrebenta o abscesso da inautencidade e da
+ pseudo-atividade.
+
+ -- 86
+
+ A habilidade em desempenhar e lidar com os papéis determina o lugar ocupado na
+ hierarquia do espetáculo. A decomposição do espetáculo prolifera os
+ estereótipos e os papéis, os quais justamente por isso caem no ridículo, e
+ roçam demasiado perto a sua negação, isto é, o gesto espontâneo (1,2)
+
+ A identificação é o caminho de entrada no papel. A necessidade de se
+ identificar com ele é mais importante para a estabilidade do poder que a
+ escolha dos modelos de identifiicação. A identificação é um estado doentio,
+ mas só as identificações acidentais caem na categoria oficial chamada ”doença
+ mental”.O papel tem por função vampirizar a vontade de viver (3) O papel
+ representa a experiência vivida, porém ao mesmo tempo a reifica. Ele também
+ oferece consolo pela vida que ele empobrece, tornando-se assim um prazer
+ substituto e neurótico. É importante se libertar dos papéis recolocando-os no
+ domínio do lúdico(4)
+
+ [...]
+
+ O peso do inautêntico suscita uma reação violenta, quase biológica, do querer-viver.
+
+ -- 87
+
+ Os nossos esforços, aborrecimentos, fracassos, o absurdo dos nossos atos provêm
+ na maioria das vezes da imperiosa necessidade em que nos encontramos de
+ desempenhar papéis híbridos, papéis que parecem responder aos nossos
+ verdadeiros desejos, mas que na verdade são antagônicos a eles. “Queremos
+ viver”, dizia Pascal, “de acordo com a idéia dos outros, numa vida imaginária.
+ E por isso cultivamos aparências.
+
+ -- 88
+
+ Aonde a sociedade do espetáculo vai buscar os seus novos estereótipos? Ela os
+ encontra graças à injeção de criatividade que impede que alguns papéis se
+ conformem ao estereótipo decadente ( da mesma forma que a linguagem se renova
+ em contato com as formas populares). Graças, em outras palavras, ao elemento de
+ jogo que transforma os papéis.
+
+ -- 89
+
+ a identificação – o princípio do teste de Szondi (psiquiatra que representou
+ uma oposição à linha dura stalinista dentro da URSS) é bem conhecido. O
+ paciente é convidado a escolher, no meio de 48 fotos de doentes em estado de
+ crise paroxística, os rostos que lhe inspiram simpatia ou aversão.
+ Invariavelmente são escolhidos os indivíduos que apresentam uma pulsão que o
+ paciente aceita, ao passo que são rejeitados aqueles que expressam pulsões que
+ ele rejeita. A partir dos resultados o psquiatra constrói um perfil pusional do
+ qual se serve para liberar o paciente ou para dirigi-lo ao crematório
+ climatizado dos hispitais psiquiátricos.
+
+ Consideremos agora os imperativos da sociedade do consumo, uma sociedade na
+ qual a essência do homem é consumir: consumir Coca-cola, literatura, idéias,
+ sexo, arquitetura, TV, poder. Os bens de consumo, as ideologias, os
+ estereótipos, são as fotos de um formidável teste de Szondi no qual cada um de
+ nós é convidado a tomar parte, não por meio de uma simples escolha, mas por um
+ compromisso, por uma atividade prática.
+
+ -- 90
+
+ Pode-se considerar que as pesquisas de mercado, as técnicas de motivação, as
+ sondagens de opinião, os inquéritos sociológicos, o estruturalismo são parte
+ desse projeto, não importa o quão anárquicas e débeis possam ser ainda suas
+ contribuições. Faltam a coordenação e a racionalização? Os cibernéticos
+ tratarão disso, se lhes dermos a chance.
+
+ [...]
+
+ A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para agrupar e afastar os
+ casos em que a identificação não ocorreu de forma apropriada. Aqueles que o
+ poder não pode governar nem matar, são rotulados de loucos. Aí se encontram os
+ extremistas e os megalomaníacos do papel. Encontram-se também os que riem dos
+ papéis ou os recusam.
+
+ -- 91
+
+ Papel, Reich, couraça.
+
+ -- 92
+
+ Quanto mais nos desligamos do papel, melhor manipulamos contra o adversário. Quanto
+ mais evitamos o peso das coisas, mais conquistamos leveza de movimentos.
+ Os amigos não ligam muito para as formas...Discutem abertamente, certos de que
+ não podem machucar um ao outro. Onde a comunicação real é buscada, os equívocos
+ não são um crime.
+
+ -- 94
+
+ Quanto mais se esgota aquilo que tem por função estiolar a vida cotidiana, mais
+ o poderio da vida vence o poder dos papéis. Esse é o início da inversão de
+ perspectiva. É nesse nível que a nova teoria revolucionária deve se concentrar
+ a fim de abrir a brecha que leva à superação. Dentro da era do cálculo e da
+ suspeita inaugurada pelo capitalismo e pelo stalinismo, opõe-se e constrói-se
+ uma fase clandestina de tática, a era do jogo.
+
+ O estado de degradação do espetáculo, as experiência individuais, as
+ manifestações coletivas de recusa fornecem o contexto para o desenvolvimento de
+ táticas práticas para lidar com os papéis. Coletivamente é possível suprimir os
+ papéis. A criatividade espontânea e o ambiente festivo que fluem livremente nos
+ momentos revolucionários oferecem exemplos numerosos disso. Quando a alegria
+ ocupa o coração do povo não existe líder ou encenação que dele se possa
+ apoderar.
+
+ -- 99
+
+ Segundo Hans Selye, o teórico do estresse, a síndrome geral da adaptação possui
+ três fases: a reação de alarme, a fase de resistência e a fase de esgotamento.
+ No plano do parecer, o homem soube lutar pela eternidade, mas , no plano da
+ vida autêntica, ainda se encontra na fase da adaptação animal: reação
+ espontânea na infância, consolidação na maturidade, esgotamento na velhice. E,
+ hoje em dia, quanto mais as pessoas buscam o plano do parecer, mais o cadáver
+ do caráter efêmero e incoerente do espetáculo demonstra que elas vivem como um
+ cão e morrem como um tufo de erva seca. Não pode estar longe o dia em que se
+ reconhecerá que a organização social criada pelo homem para transformar o mundo
+ segundo os seus desejos não serve mais a esse objetivo. E que ela não passa de
+ um sistema de proibição que impede a criação de uma forma superior de
+ organização e o uso de técnicas de libertação e realização individuais que o
+ homem forjou por meio da história da apropriação privada, da exploração do
+ homem pelo homem e do poder hierárquico.
+
+ -- 102
+
+ Colocar a serviço do imutável a ideologia do progresso e da mudança cria um
+ paradoxo que nada, de agora em diante, pode esconder à consciência , nem
+ justificar diante dela. Neste universo em que a técnica e o conforto se
+ expandem, vemos que os seres se fecham em si mesmos, endurecem, vivem
+ mesquinhamente, morrem por coisas sem importância. É um pesadelo no qual nos
+ prometeram uma liberdade absoluta e nos deram um metro cúbico de autonomia
+ individual, rigorosamente controlada pelos vizinhos. Um espaço-tempo da
+ mesquinhez e do pensamento pequeno.
+
+ -- 105
+
+ Ninguém tem o direito de ignorar que a força do condicionamento o habitua a
+ sobreviver com um centésimo do seu potencial de viver.
+
+ -- 107
+
+ O revoltado sem outro horizonte além do muro das coações corre o risco de
+ quebrar a cabeça nele ou de defendê-lo um dia com uma teimosa estupidez. Já que
+ se apreender na perspectiva das coações é sempre olhar no sentido desejado pelo
+ poder, quer para recusá-lo, quer para aceitá-lo. Assim o homem se encontra no
+ fim da linha, coberto de podridão como diz Rosanov. Limitado por todos os
+ lados, ele resite a qualquer intrusão, e monta guarda sobre si mesmo,
+ zelosamente, sem perceber que se tornou estéril: que mantém vigílila sobre um
+ cemitério.
+
+ [...]
+
+ Como as pessoas mais inclinadas aos acordos comprometedores sempre consideram
+ uma incomensurável glória permanecerem íntegras em um ou dois pontos
+ específicos!
+
+ Nenhum laço é mais difícil de romper que aquele no qual o indivíduo se prende a
+ si próprio quando sua revolta se perde dessa forma. Quando ele coloca a sua
+ liberdade a serviço da não-liberdade, o aumento da força da não-liberdade que
+ resulta disso o escraviza. Ora, pode acontecer que nada se assemelhe tanto à
+ não-liberdade quanto o esforço em direção à liberdade, mas a não- liberdade tem
+ como particularidade que uma vez comprada ela perde todo o seu valor, mesmo que
+ seu preço seja tão alto quanto a liberdade.
+
+ -- 114-115
+
+ Não existe ninguém, por mais alienado que seja, que não possua e não reconheça
+ a si próprio uma parte irredutível de criatividade, um quarto escuro protegido
+ contra qualquer intrusão de mentira e de coações. No dia em que a organização
+ social estender o seu controle sobre essa parte do homem, ela reinará apenas
+ sobre robôs e cadáveres.
+
+ [...]
+
+ Agora que a alienação do consumidor é esclarecida pela própria dialética do
+ consumo, que prisão eles preparam para a subversivíssima criatividade
+ individual? Eu já disse que a última saída dos dirigentes era transformar as
+ pessoas em organizadoras da própria passividade.
+
+ -- 125
+
+ A espontaneidade - a espontaneidade é o modo de ser da criatividade individual.
+ Ela é o seu primeiro jorro, ainda imaculado, não poluído na fonte e ainda não
+ ameaçado de recuperação. Se nada é mais bem repartido no mundo do que a
+ criatividade, a espontaneidade, pelo contrário, parece ser um privilégio. Só a
+ possuem aqueles que por meio de uma longa resitência ao poder ganharam a
+ consciência de seu próprio valor como indivíduos. Nos momentos revolucionários
+ isso significa a maioria das pessoas. Em outros períodos, quando a revolução é
+ construída dia a dia sem ser vista, são mais pessoas do que pensamos. Onde quer
+ que subsista um raio de criatividade, a espontaneidade conserva as sua
+ possibilidades.
+
+ -- 126
+
+ Só é espontâneo aquilo que não emana de uma coação interiorizada, mesmo
+ subconscientemente, e que além disso escapa ao domínio da abstração alienante,
+ à recuperação espetacular. Ela é mais uma conquista do que algo dado. A
+ reestruturação do indivíduo deve passar por uma reestruturação do inconsciente
+ (compare com a construção dos sonhos).
+
+ [...]
+
+ Para mim, a espontaneidade constitui uma experiência imediata, uma consciência
+ da experiência vivida, dessa experiência vivida cercada por todos os lados,
+ ameaçada por proibições e contudo, ainda não alienada, ainda não reduzida ao
+ inautêntico. No centro da experiência vivida, cada um se encontra mais perto de
+ si mesmo.
+
+ [...]
+
+ A consciência do presente harmoniza-se à experiência vivida como uma espécie de
+ improvisação. Esse prazer, pobre porque ainda isolado, rico porque já orientado
+ para o prazer idêntico dos oturos, carrega uma grande semelhança com o prazer
+ do jazz. O estilo de improvisação da vida cotidiana em seus melhores momentos
+ cabe no que Alfons Dauer escreve a respeito do Jazz : a concepção africana do
+ ritmo difere da nossa porque o apreendemos auditivamente ao passo que os
+ africanos o apreendem por meio do movimento corporal. A sua técnica consiste
+ essencialmente em introduzir a descontinuidade no seio do equilíbrio estático
+ imposto ao longo do tempo pelo ritmo e pela métrica. Essa descontinuidade
+ resultante da presença de centros de gravidade extáticos fora do tempo da
+ própria métrica e ritmo, cria constantemente tensões entre as batidas estática
+ e as batidas extáticas que lhes são sobrepostas”
+
+ -- 127
+
+ A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida
+ mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de
+ novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos
+ poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização
+ da arte. Já não existem artistas uma vez que todos os são. A futura obra de
+ arte é a construção de uma vida apaixonante.
+
+ -- 131
+
+ Aqui se encontram as três fases históricas que caracterizam a evolução do senhor:
+
+ 1 o princípio de dominação, ligado à sociedade feudal;
+ 2 o princípio de exploração ligado à sociedade burguesa;
+ 3 o princípio de organização, ligado à sociedade cibernética
+
+ Na verdade, os três elementos são indissociáveis – não se domina sem explorar
+ nem organizar simultaneamente – mas o peso de cada um varia conforme as épocas.
+ À medida que se passa de uma fase a outra, a autonomia e o âmbito da
+ responsabilidade do senhor são reduzidos. A humanidade do senhor tende para
+ zero enquanto a desumanidade do poder desencarnado tende ao infinito.
+
+ Conforme o princípio de dominação, o senhor recusa aos escravos uma existência
+ que limitaria a sua. No princípio de exploração, o patrão concede aos
+ trabalhadores uma existência que alimenta e amplia a sua. O princípio de
+ organização separa as existências individuais em frações, segundo o grau de
+ capacidade de liderança ou execução que comportam (um chefe de oficina seria
+ por exemplo definido no final de longos cálculos de sua produtividade,
+ representatividade, etc, por 56% de dirigente, 40% de executor e 4% ambíguo,
+ como diria Fourier).
+
+ [...]
+
+ Os massacres de Auschwitz ainda possuem um lirismo quando comparados às mãos
+ geladas do condicionamento generalizado que a organização tecnocrática dos
+ cibernéticos prepara para a sociedade, futura e tão próxima.
+
+ [...]
+
+ A parte do poder que restava aos possuidores dos instrumentos de produção
+ desaparece a partir do instante em que as máquinas, escapando aos
+ proprietários, passam para o controle dos técnicos que organizam o seu emprego.
+ Entretanto, os próprios organizadores são lentamente digeridos pelos esquemas e
+ programas que elaboram. A máquina simples foi talvez a última justificativa da
+ existência dos chefes, o último suporte do seu último vestígio de humanidade. A
+ organização cibernética da produção e do consumo passa obrigatoriamente pelo
+ controle, planejamento, racionalização da vida cotidiana.
+
+ Os especialistas são esses senhores em migalhas, esses senhores-escravos que
+ proliferam no território da vida cotidiana. As susas possibilidades são nulas,
+ podemos garantir. Já em 1867 no congresso de Laussane da I Internacional,
+ Francau declarou: durante muito tempo estivemos a reboque dos marqueses dos
+ diplomas e dos princípes da ciência. Tratemos nós próprios de nossos assuntos
+ e, por mais inábeis que sejamos, nunca os faremos pior do que como foram feitos
+ em nosso nome”. Palavras cheias de sabedoria, e cujo sentido se reforça com a
+ proliferação dos especialistas e sua incrustação em todos os aspectos da vida
+ pessoal. Uma divisão opera-se claramente entre aqueles que obedecem à atração
+ magnética que exerce a grande kafkiana da cibernética e aqueles que, obedecendo
+ a seus próprios impulsos, se esforçam por lhe escapar.
+
+ -- 136-137
+
+ O senhor sem escravos ou a superação aristocrática da aristocracia – o senhor
+ perdeu-se pelos mesmos caminhos que Deus. Desaba como um Golem logo que deixa
+ de amar os homens, logo que deixa portanto de amar o prazer que pode ter em
+ oprimi-los, logo que abandona o princípio hedonista. Há pouco prazer em
+ deslocar coisas, em manipular seres passivos e insensíveis como tijolos. No seu
+ requinte, deus busca criaturas vivas, de boa carne pulsante, almas arrepiadas
+ de terror e respeito. Necessita, para experimentar a própria grandeza, sentir a
+ presença de súditos ardentes na oração, na contestação, no subterfúgio, e até
+ no insulto. O deus católico dispõe-se a conceder liberdade verdadeira, mas à
+ maneira dos penhoristas, só como empréstimo. Ele brinca de gato e rato com os
+ homens até o juízo final, quando os devora. Pelo fim da idade média, com a
+ entrada em cena da burguesia, esse deus é lentamente humanizado. Humanizado de
+ forma paradoxal, uma vez que se torna objeto, da mesma forma que os homens.
+ Condenando os homens à predestinação, o deus de Calvino perde o prazer do
+ julgamento arbitrário, não é mais livre para esmagar quem ele quiser e quando
+ quiser. Deus das transações comerciais, sem fantasia, comedido e frio como uma
+ taxa de câmbio, envergonha-se, esconde-se. O diálogo é rompido.
+
+ [...]
+
+ Por que razão é o senhor obrigado a abandonar a exigência hedonista? O que o
+ impede de alcançar o gozo total a não ser a sua própria condição de senhor, o
+ seu comprometimento com o princípio de superioridade hierárquica? E esse
+ abandono aumenta à medida que a hierarquia se fragmenta, que os senhores se
+ multiplicam diminuindo de tamanho, que a história democratiza o poder. O gozo
+ imperfeito dos senhores tornou-se gozo dos senhores imperfeitos. Viu-se como os
+ senhores burgueses, plebeus, ubuescos, coroaram a sua ravolta de cervejaria com
+ a festa fúnebre do fascismo. Mas logo nem sequer festa existirá para os
+ senhores-escravos, para os últimos homens hierárquicos, somente a tristeza das
+ coisas, uma serenidade soturna, o mal-estar do papel, a consciência do “nada
+ ser” O que acontecerá a essas coisas que nos governam? Será necessário
+ destruí-las?
+
+ Certamente, e os mais bem preparados para liquidar esses escravos-no-poder são
+ aqueles que lutam desde sempre contra a escravidão. A criatividade popular, que
+ nem a autoridade dos senhores e nem a dos patrões destruiu, jamais se ajoelhará
+ diante de necessidades programáticas e de planejamentos tecnocráticos. Alguém
+ objetará que menos paixão e entusiasmo pode ser mobilizado para a liquidação de
+ uma forma abstrata, um sistema, do que para a execução de senhores odiados. Mas
+ isso seria encarar o problema do ponto de vista errado, do ponto de vista do
+ poder. Contrariamente à burguesia, o proletariado não se define pelo seu
+ adversário de classe, ele traz em si o fim da distinção em classes e o fim da
+ hierarquia. O papel da burguesia foi unicamente negativo. Saint-just o lembra
+ magnificamente: aquilo que constitui uma república é a destruição total daquilo
+ que lhe é oposto.”
+
+ Se a burguesia se contenta em forjar armas contra a feudalidade, e portanto
+ contra si mesma, o proletariado pelo contrário contém em si a sua superação
+ possível. Ele é a poesia momentaneamente alienada pela classe dominante ou pela
+ organização tecnocrática, mas sempre a ponto de emergir. Único depositário da
+ vontade de viver, porque só ele conheceu até o paroxismo o caráter insuportável
+ da sobrevivência, o proletariado quebrará a muralha das coações pelo sopro do
+ seu prazer e pela violência espontânea da sua criatividade. Toda alegria e riso
+ a serem liberados, ele já possui. É dele mesmo que tira a força e a paixão.
+ Aquilo que ele se prepara para construir destruirá por acréscimo tudo aquilo
+ que a ele se opõe do mesmo modo que em uma fita magnética, uma gravação apaga a
+ outra. O poder das coisas será abolido pelo proletariado no ato da sua própria
+ abolição. Será um gesto de luxo, uma espécie de indolência, uma graça
+ demonstrada por aqueles que provam a sua superioridade. Do novo proletariado
+ sairão os senhores sem escravos, não os autômatos do humanismo com que sonham
+ os masturbadores da esquerda pretensamente revolucionária. A violência
+ insurrecional das massas é apenas um aspecto da criatividade do proletariado: a
+ sua impaciência em negar-se do mesmo modo que é impaciente em executar a
+ sentença que a sobrevivência pronuncia contra si mesma.
+
+ -- 138-139
+
+ A superação do grande senhor e do homem cruel aplicará ao pé da letra o
+ adimirável princípio de Keats : tudo aquilo que pode ser destruído deve ser
+ destruído para que as crianças possam ser salvas da escravidão. Essa superação
+ deve ser operada simultaneamente em três esferas : a) a superação da
+ organização patriarcal; b) a superação do poder hierárquico; c) a superação da
+ arbitrariedade subjetiva, do capricho autoritário.
+
+ [...]
+
+ A criança adquire uma experiência subjetiva da liberdade, desconhecida de
+ qualquer espécie animal, mas permanece por outro lado na dependência objetiva
+ dos pais; necessita de seus cuidados e solicitude. O que distingue a criança de
+ um animal jovem é que a criança possui o sentido da transformação do mundo, ou
+ seja, poesia, mesmo que em grau limitado. Ao mesmo tempo, é proibido a ela o
+ acesso a técnicas que os adultos empregam na maior parte do tempo contra essa
+ poesia, por exemplo, técnicas de condicionamento das próprias crianças. E
+ quando as crianças finalmente chegam à idade de ter acesso às técnicas, já
+ perderam sob o peso das coações, na sua maturidade, aquilo que dava
+ superioridade à infância. O universo dos senhores antigos carrega o mesmo
+ estigma do universo das crianças: as técnicas de libertação estão fora do seu
+ alcance. Desde então está condenado a sonhar com uma transformação do mundo e a
+ viver segundo as leis da adaptação ao mundo.
+
+ -- 140
+
+ O jogo da criança, como o jogo dos nobres tem necesssidade de ser libertado, de
+ ser posto novamente em um lugar de honra. Hoje o momento é historicamente
+ favorável. Trata-se de salvar a criança realizando o projeto dos senhores
+ antigos: a infância e a sua subjetividade soberana, a infância com seu riso que
+ é um murmúrio de espontaneidade, a infância e seu modo de se ligar em si mesma
+ para iluminar o mundo, e seu modo de iluminar os objetos com uma luz
+ estranhamente familiar.
+
+ Perdemos a beleza das coisas, o seu modo de existir deixando-as morrer nas mãos
+ do poder e dos deuses. Em vão, a magnífica fantasia do surrealismo tentou
+ reanimá-las por meio de uma irradiação poética: o poder do imaginário não basta
+ para romper a casaca da alienação social que aprisiona as coisas. Ele não
+ consegue devolvê-las ao livre jogo da subjetividade. Visto do ângulo do poder,
+ uma pedra, uma árvore um mixer um ciclotron são objetos mortos , cruzes
+ fincadas na vontade de vê-las diferentes e de mudá-las. E contudo, para além do
+ significado atribuído a eles, sei que poderiam ser excitantes para mim. Sei que
+ uma máquina pode suscitar paixão desde que posta a serviço do jogo, da
+ fantasia, da liberdade. Em um mundo em que tudo é vivo, incluindo as árvores e
+ as pedras, já não existem signos contemplados passivamente. Tudo fala da
+ alegria. O triunfo da subjetividade dará vida às coisas. E o insuportável
+ domínio atual das coisas mortas sobre a subjetividade não é, no fundo, a melhor
+ oportunidade histórica de chegar a um estado de vida superior?
+
+ [...]
+
+ É necessário descobrir novas fronteiras. As limitações impostas pela alienação
+ deixaram, se não de nos aprisionar, pelo menos de nos iludir. Durante séculos,
+ os homens permaneceram diante de uma porta carcomida, abrindo nela buraquinhos
+ com um alfinete com uma facilidade crescente. Basta um empurrão hoje para
+ derrubá-la, e é somente depois disso, do outro lado, que tudo começa. A questão
+ para o proletariado não consiste mais em tomar o poder, mas em pôr-lhe fim
+ definitivamnete. Do lado de fora do mundo hierarquizado, as possibilidades vêm
+ ao nosso encontro. O primado da vida sobre a sobrevivência será o movimento
+ histórico que desfará a história. Os nossos verdadeiros adversários ainda estão
+ para ser inventados, e cabe a nós buscar o contato com eles, entrar em combate
+ com eles sob o pueril – infantil – avesso das coisas.
+
+ -- 142
+
+ Poderá a vontade individual enfim libertada pela vontdade coletiva ultrapassar
+ em proezas o controle sinistramente soberbo já alcançado sobre os seres humanos
+ pelas técnicas de condicionamento do estado policial? De um homem faz-se um cão
+ um tijolo um militar torturador, e não se poderia fazer dele um homem?
+
+ -- 143
+
+ O espaço é um ponto na linha do tempo, na máquina que transforma o futuro em
+ passado. O tempo controla o espaço vivido, mas controla-o do exterior,
+ fazendo-o passar, tornando-o transitório. Contudo, o espaço da vida individual
+ não é um espaço puro, e o tempo que o arrasta não é também uma pura
+ temporalidade. Vale a pena examinar a questão com mais cuidado.
+
+ Cada ponto terminal na linha do tempo é único e particular, e entretanto logo
+ que se acrescenta o ponto seguinte, o seu predecessor desaparece na
+ uniformidade da linha, digerido por um passado que já conhece outros pontos.
+ Impossível distingui-lo. Cada ponto portanto faz progredir a linha que o faz
+ desaparecer.
+
+ [...]
+
+ Por mais que o espaço vivido seja um universo de sonhos, desejos, de
+ criatividade prodigiosa, ele não passa em termos de duração de um ponto que
+ sucede a outro ponto correndo segundo um único princípio, o da destruição. Ele
+ aparece, se desenvolve e desaparece na linha anônima do passado na qual o seu
+ cadáver se torna matéria-prima aos lampejos da memória e aos historiadores.
+
+ [...]
+
+ O espaço cristalino da vida cotidiana rouba uma parcela de tempo exterior
+ graças à qual se cria uma pequena área de espaço-tempo unitário: é o
+ espaço-tempo dos momentos da criatividade, do prazer, do orgasmo. O lugar dessa
+ alquimia é minúsculo, mas a intensidade vivida é tal que exerce na maioria das
+ pessoas um fascínio sem igual. Visto pelos olhos do poder, observando do
+ exterior, esses momentos de paixão não passam de um ponto irrisório, um
+ instante drenado do futuro pelo passado. A linha do tempo objetivo nada sabe –
+ e nada quer saber – do presente como presença subjetiva imediata. E por sua
+ vez, a vida subjetiva apertada no espaço de um ponto – a minha alegria, o meu
+ prazer, as minhas fantasias – não gostaria de saber nada sobre o
+ tempo-que-escoa, o tempo linear, o tempo das coisas. Ela deseja, pelo
+ contrário, aprender tudo do seu presente já que afinal ela nada mais é que um
+ presente.
+
+ -- 148
+
+ O projeto de enriquecimento do espaço-tempo da experiência vivida passa pela
+ análise daquilo que o empobrece. O tempo linear só domina os homens na medida
+ em que lhes impede de transformar o mundo, na medida em que os coage portanto a
+ se adptarem. Para o poder, o inimigo número um é a criatividade individual
+ irradiando livremente. E a força da criatividade está no unitário. Como se
+ esforça o poder para quebrar a unidade do espaço-tempo vivido? Transformando a
+ experiência vivida em mercadoria, lançando-a no mercado do espetáculo, ao sabor
+ da oferta e da procura por papéis e estereótipos (foi isso que discuti nas
+ páginas dedicadas aos papéis, no capítulo XV).
+
+ -- 150
+
+ Como distrair os homens de seu presente a não ser atraindo-os à esfera na qual o tempo
+ escoa? Essa tarefa cabe ao historiador. O historiador organiza o passado, fragmentado-o
+ conforme a linha oficial do tempo, depois arruma os acontecimentos em categorias ad hoc.
+ Essas categorias, de fácil uso, põem os acontecimentos passados em quarentena. Sólidos
+ parênteses os isolam, os contêm, os impedem de tomar vida, de ressuscitar, de rebentar de
+ novo nas ruas da nossa vida cotidiana. O acontecimento está, por assim dizer, congelado. É
+ proibido juntar-se a ele, refazê-lo completá-lo, tentar a sua superação. Aí está ele,
+ conservado para sempre e suspenso para a contemplação dos estetas. Uma leve mudança de
+ ênfase e hei-lo transposto do passado ao futuro. O futuro não é mais que historiadores se
+ repetindo. O futuro que eles anunciam é uma colagem de recordações, das suas
+ recordações. Vulgarizada pelos pensadores stalinistas, a famosa noção do sentido da
+ história acabou esvaziando de toda humanidade tanto o futuro quanto o passado.
+
+ -- 151
+
+ Construir uma arte de viver é hoje uma reivindicação popular. É necessário
+ concretizar em um espaço-tempo apaixonadamente vivido as pesquisas de todo um
+ passado artístico que na verdade foram postas de lado de modo descuidado.
+
+ Neste caso as recordações as quais me refiro, são recordações de feridas
+ mortais. Aquilo que não é terminado apodrece. O passado é erroneamente tratado
+ como irremediável. Ironicamente, aqueles que falam dele com um dado definitivo
+ não param de triturá-lo, de falsificá-lo, de arranjá-lo ao gosto do dia. Eles
+ agem como o pobre Winston, em 1984 de George Orwell, reescrevendo artigos de
+ jornais antigos que foram contraditos pela evolução dos acontecimentos.
+
+ [...]
+
+ Existe apenas uma forma valorosa de esquecer : aquela que apaga o passado
+ realizando-o. Aquela que salva da decomposição pela superação. Os fatos, por
+ mais longe que se situem, nunca disseram sua última palavra. Basta uma mudança
+ radical no presente para que desçam das estantes do museu e ganhem vida aos
+ nossos pés.
+
+ -- 152
+
+ Construir o presente é corrigir o passado, mudar a psicogeografia do nosso
+ ambiente, libertar de sua ganga os sonhos e os desejos insatisfeitos, deixar as
+ paixões individuais harmonizarem-se no coletivo. O intervalo de tempo que
+ separa os revoltados de 1525 dos rebeldes muletistas, Spartakus de Pancho Villa
+ só pode ser transposto pela minha vontade de viver.
+
+ Esperar por amanhãs festivos é o que impossibilita as nossas festas de hoje. O
+ futuro é pior que o oceano: ele nada contém. Planejamento, prospecção, plano a
+ longo prazo: é o mesmo que especular sobre o teto da casa quando o primeiro
+ andar não existe mais. E contudo se construíres bem o presente o resto virá por
+ consequência.
+
+ [...]
+
+ Na zona da criação verdadeira o tempo se dilata. No inautêntico, o tempo se
+ acelera.
+
+ -- 153
+
+ A tarefa é sempre resolver as contradições do presente, não parar no meio do
+ caminho, não se deixar distrair, tomar o caminho da superação. Essa tarefa é
+ coletiva, de paixão, de jogo (a eternidade é o mundo do jogo, diz Boehme). Por
+ mais pobre que seja o presente sempre contém a verdadeira riqueza, a da
+ construção possível. Esse é o poema interrompido que me enche de alegria.
+
+ -- 153-154
+
+ A paixão de criar é a base do projeto de realização (2), a paixão do amor é a
+ base do projeto de comunicação (4), a paixão do jogo é a base do projeto de
+ participação (6). Dissociados, esses três projetos reforçam a unidade
+ repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença atualmente observável
+ na maioria das pessoas de uma mesma vontade de construir uma vida apaixonante
+ (3). O erotismo é a coerência espontânea que dá unidade prática à tentativa de
+ enriquecer a experiência vivida. ( 5)
+
+ [...]
+
+ A construção da vida cotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional
+ e do passional. O mistério deliberadamente tecido desde sempre a respeito da
+ vida tem como principal objetivo dissimular a trivialidade da sobrevivência. De
+ fato, a vontade de viver é inseparável de uma certa vontade de organização. O
+ fascínio que a promessa de uma vida rica e multidimensional exerce sobre cada
+ indíviduo adquire, necessariamente, o aspecto de um projeto submetido no todo
+ ou em parte ao poder social encarregado de impedi-lo. Assim como o governo dos
+ homens recorre essencialmente a um tríplice modo de opressão – a coação, a
+ mediação alienante e a sedução mágica – também a vontade de viver encontra
+ força e coerência na unidade de três projetos indissociáveis : a realização, a
+ comunicação, a participação.
+
+ Em uma história dos homens que não se reduzisse à história da sobrevivência,
+ sem por outro lado se dissociar dela, a dialética desse triplo projeto, aliada
+ à dialética das forças produtivas explica a maioria dos comportamentos. Não há
+ motim ou revolução que não revele uma busca apaixonada por uma vida exuberante,
+ por uma transparência das relações humanas e por um modo coletivo de
+ transformação do mundo. De fato, três paixões fundamentais parecem animar a
+ evolução histórica, paixões que são para a vida aquilo que a necessidade de
+ alimento e proteção são para a sobrevivência. A paixão da criação, a paixão do
+ amor e a paixão do jogo interagem com a necessidade de alimento e de proteção,
+ tal como a vontade de viver interfere continuamente na necessidade de
+ sobreviver.
+
+ -- 155
+
+ A mania cartesiana de fragmentar, e de progredir de forma gradual, produz
+ necessariamente uma realidade coxa e incompleta. Os exércitos da Ordem só
+ recrutam mutilados.
+
+ -- 156
+
+ Mostrei de que maneira a organização social hierárquica constrói o mundo
+ destruindo os homens; de que modo o aperfeiçoamento do seu mecanismo e das suas
+ redes a fez funcionar como um computador gigante cujos programadores são também
+ programados; de que modo, enfim, o mais frio dos monstros frios encontra a sua
+ realização no projeto do estado cibernético.
+
+ Nessas condições a luta pelo pão de cada dia, o combate contra o desconforto, a
+ busca de uma estabilidade de emprego e de uma segurança material são, na frente
+ social, igualmente expedições ofensivas que tomam lenta mas seguramente o
+ aspecto de ações de retaguarda (mas não se deve subestimar a importância
+ delas).
+
+ Apesar de falsos compromissos e de atividades ilusórias, uma energia criadora
+ continuamente estimulada não é absorvida mais depressa suficientemente sob a
+ ditadura do consumo. [...] O que acontecerá a essa exuberância repentinamente
+ disponível, a esse excesso de robustez e de virilidade que nem as coações nem a
+ mentira conseguiram verdadeiramente desgastar?
+
+ Não recuperada pelo consumo artístico e cultural – pelo espetáculo ideológico –
+ a criatividade volta-se espontaneamente contra as condições e as garantias de
+ sobrevivência. Os rebeldes não têm nada a perder a não ser sua sobrevivência.
+ Contudo, podem perdê-la de dois modos : perdendo a vida ou construindo-a. Já
+ que a sobrevivência é uma espécie de morte lenta, existe uma tentação, não
+ desprovida de sentimentos genuínos, de acelerar o movimento e morrer mais
+ depressa como pisar fundo no acelerador de um carro de corrida. “Vive-se”
+ então negativamente a negação da sobrevivência. Ou pelo contrário, as pessoas
+ podem se esforçar por sobreviver como anti-sobreviventes concentrando sua
+ energia no enriquecimento da vida cotidiana. Negam a sobrevivência
+ incorporando-a em uma atividade lúdica construtiva. Essas duas soluções
+ promovem a tendência unitária e contraditória da dialética da decomposição e da
+ superação.
+
+ -- 157
+
+ Nietzsche.
+
+ -- 158
+
+ O fervor dos soldados rasos faz a disciplina dos exércitos: a única coisa que a
+ cachorrada policial aprende é a hora de morder e a hora de rastejar.
+
+ [...]
+
+ Se a violência inerente aos grupos de jovens delinquentes deixasse de se
+ dissipar em ações espetaculares e tornar-se insurrecional, provocaria sem
+ dúvida uma reação em cadeia, uma onda de choque qualitativa. [...] Se os
+ blouson noirs atingiram uma consciência revolucionária pela simples compreensão
+ daquilo que já são e pela simples exigência de querer ser mais, é provável que
+ determinem o epicentro da inversão de perspectiva. Federar os seus grupos seria
+ o ato que simultaneamente manifestaria e permitiria essa consciência.
+
+ -- 159
+
+ Ninguém se desenvolve livremente sem espalhar a liberdade no mundo.
+
+ -- 163
+
+ Os especialistas da comunicação organizam a mentira em proveito dos senhores de
+ cadáveres.
+
+ [...]
+
+ - quanto mais me desligo do objeto do meu desejo, e quanto mais força objetiva
+ dou ao objeto do meu desejo, mais o meu desejo se torna despreocupado em
+ relação ao seu objeto;
+
+ - quanto mais me desligo do meu desejo como objeto e mais força objetiva dou ao
+ objeto do meu desejo, mais o meu desejo encontra sua razão de ser no ser
+ amado.
+
+ -- 165
+
+ A verdadeira escolha é entre a sedução espetacular – a conversa fiada – e a
+ sedução pelo qualitativo – a pessoa que é sedutora porque não se preocupa em
+ seduzir.
+
+ -- 166
+
+ O prazer é o princípio de unificação. O amor é a paixão pela unidade em um
+ momento comum. A amizade é a paixão pela unidade em um projeto comum.
+
+ -- 167
+
+ Sem predizer os detalhes de uma sociedade em que a organização das relações
+ humanas esteja aberta sem reservas à paixão do jogo, podemos no entanto prever
+ que ela apresentará as seguintes características:
+
+ - recusa de chefes e de qualquer hierarquia
+ - recusa de sacrifício
+ - recusa de papéis
+ - liberdade de realização autêntica
+ - transparência das relações sociais
+
+ -- 170
+
+ São, evidentemente, grupos numericamente pequenos, as micrissociedades, que
+ apresentam as melhores condições de experimentação. Nelas, o jogo regulará
+ soberanamente os mecanismos da vida em comum, a harmonização dos caprichos, dos
+ desejos das paixões.
+
+ [...]
+
+ O que aconteceria então se as pessoas começassem a brincar com os papéis da
+ vida real?
+
+ -- 171
+
+ Se alguém entra no jogo com um papel fixo, um papel sério, ou essa pessoa se
+ arruína ou arruína o jogo. É o caso do provocador. O provocador é um
+ especialista em jogo coletivo.
+
+ [...]
+
+ Qual é o melhor provocador? O líder do jogo que se torna dirigente.
+
+ [...]
+
+ Diferentemente do provocador, o traidor aparece espontaneamente em um grupo
+ revolucionário. Ele surge sempre que a paixão do jogo desaparece e junto com
+ ela o projeto de participação real. O traidor é um homem que não encontrando
+ como se realizar autenticamente por meio do modo de participação que lhe é
+ proposto, decide jogar contra essa participação não para corrigi-la mas para
+ destrui-la. traidor é a doença senil dos grupos revolucinarios.
+
+ [...]
+
+ Um exército eficientemente hierarquizado pode ganhar uma guerra, mas não uma
+ revolução. Uma horda indisciplinada não consegue a vitória nem na guerra, nem
+ na revolução. O problema é organizar sem hierarquizar, ou em outras palavras,
+ procurar que o líder do jogo não se torne um chefe. O espírito lúdico é a
+ melhor garantia contra a esclerose autoritária. Nada resiste a criatividade
+ armada. Sabemos que as tropas de Villa e de Makhno derrotaram os mais
+ aguerridos batalhões de exército.
+
+ -- 172
+
+ A organização hierárquica e a completa falta de disciplina são ambas ineficientes.
+
+ [...]
+
+ Como manter a disciplina necessária ao combate numa tropa que se recusa
+ obedecer servilmente a um chefe? Como evitar a falta de coesão? Na maioria das
+ vezes, os exércitos revolucionários sucumbem ao mal da submissão a uma causa ou
+ a busca inconsequente do prazer.
+
+ [...]
+
+ A melhor tática forma uma só unidade com o cálculo hedonista. A vontade de
+ viver, brutal, desenfreada é para o combatente a mais mortífera arma secreta.
+ Essa arma volta-se contra aqueles que a ameaçam: para defender a pele, o
+ soldado tem todo o interesse em atirar nos superiores.
+
+ -- 173
+
+ Quando uma canalização de água arrebentou no laboratório de Pavlov, nenhum dos
+ cães que sobreviveram à inundação conservou o menor traço do seu longo
+ condicionamento. O maremoto das grandes transformações sociais teria menos
+ efeito sobre os homens do que uma inundação sobre cães?
+
+ -- 178
+
+ Aqueles que se aproximam da revolução afastando-se de si mesmos – como todos os
+ militantes fazem – se aproximam de costas para trás às avessas.
+
+ -- 180
diff --git a/books/life/brevidade-da-vida.md b/books/life/brevidade-da-vida.md
new file mode 100644
index 0000000..4e21a25
--- /dev/null
+++ b/books/life/brevidade-da-vida.md
@@ -0,0 +1,209 @@
+[[!meta title="Sobre a brevidade da vida"]]
+
+* [Seneca On The Shortness Of Life](https://archive.org/details/SenecaOnTheShortnessOfLife).
+* [Sobre a Brevidade da Vida - Sêneca](http://lelivros.love/book/baixar-livro-sobre-a-brevidade-da-vida-seneca-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/).
+
+## Trechos
+
+ A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a
+ realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no
+ luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então,
+ finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou (4) por
+ nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida
+ breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores. Tal como
+ abundantes e régios recursos, quando caem nas mãos de um mau senhor,
+ dissipam-se num momento, enquanto que, por pequenos que sejam, se são confiados
+ a um bom guarda, crescem pelo uso, assim também nossa vida se estende por muito
+ tempo, para aquele que sabe dela bem dispor.
+
+ [...]
+
+ Por que nos queixamos da Natureza? Ela mostrou-se benevolente: a vida, se
+ souberes utilizá-la, é longa. Mas uma avareza insaciável apossa-se de, um de
+ outro, uma laboriosa dedicação a atividades inúteis, um embriaga-se de vinho,
+ outro entorpece-se na inatividade; a este, uma ambição sempre dependente das
+ opiniões alheias o esgota, um incontido desejo de comerciar leva aquele a
+ percorrer todas as terras e todos os mares, na esperança de lucro; a paixão
+ pelos assuntos militares atormenta alguns, sempre preocupados com perigos
+ alheios ou inquietos com seus próprios; há os que, por uma servidão voluntária,
+ se desgastam numa ingrata solicitude a seus superiores; (2) a busca da beleza
+ de um outro ou o cuidado com sua própria ocupa a muitos; a maioria, que não
+ persegue nenhum objetivo fixo, é atirada a novos desígnios por uma vaga e
+ inconstante leviandade, desgostando-se com isso; alguns não definiram para onde
+ dirigir sua vida, e o destino surpreende-os esgotados e bocejantes, de tal
+ forma que não duvido ser verdadeiro o que disse, à maneira de oráculo, o maior
+ dos poetas: “Pequena é a parte da vida que (3) vivemos.” Pois todo o restante
+ não é vida, mas tempo.
+
+ [...]
+
+ Finalmente, todos concordam que um homem ocupado não pode fazer nada bem: não
+ pode se dedicar à eloqüência, nem aos estudos liberais, uma vez que seu
+ espírito, ocupado em coisas diversas, não se aprofunda em nada, mas, pelo
+ contrário, tudo rejeita, pensando que tudo lhe é imposto. Nada é menos próprio
+ do homem ocupado do que viver, pois não há outra coisa que seja mais difícil de
+ aprender. Professores das outras artes, há vários e por toda parte, dentre
+ algumas dessas, vemos crianças terem atingido tanta maestria, que chegam até a
+ ensiná-las. Deve-se aprender a viver por toda a vida, e, por mais que tu talvez
+ te espantes, a vida (4) toda é um aprender a morrer. Muitos dos maiores homens,
+ tendo afastado todos os obstáculos e renunciado às riquezas, a seus negócios e
+ aos prazeres, empregaram até o último de seus dias para aprender a viver,
+ contudo muitos deles deixaram a vida tendo confessado ainda não sabê-lo – e
+ muito menos ainda (5) o sabem os que mencionei acima.
+
+ [...]
+
+ Cada um faz precipitar sua vida e (9) padece da ânsia do futuro e de tédio
+ do presente.
+
+ [...]
+
+ Portanto não há por que pensar que alguém tenha vivido muito, por causa de suas
+ rugas ou cabelos brancos: ele não viveu por muito tempo, simplesmente foi por
+ muito tempo. Pensarias ter navegado muito, aquele que, tendo se afastado do
+ porto, foi apanhado por violenta tempestade, errou para cá e para lá e ficou a
+ dar voltas, conforme a mudança dos ventos e o capricho dos furacões, sem
+ contudo sair do lugar? Ele não navegou muito, mas foi muito acossado.
+
+ [...]
+
+ Os homens recebem pensões e aluguéis com muito prazer e concentram neles suas
+ preocupações, esforços e cuidados, mas ninguém dá valor ao tempo; usa-se dele a
+ rédeas soltas, como se nada custasse. Porém, quando doentes, se estão próximos
+ do perigo de morte, prostram-se aos joelhos dos médicos; ou, se temem a pena
+ capital, estão prontos a gastar todos os seus bens para viver.
+ Tamanha é a discórdia de seus (3) sentimentos! Se fosse possível apresentar a
+ cada um a conta dos anos futuros, da mesma forma que podemos fazer com os
+ passados, como tremeriam aqueles que vissem restar-lhes poucos anos e como os
+ poupariam! Pois, se é fácil administrar o que, embora curto, é certo, deve-se
+ conservar com muito cuidado o que não se pode saber (4) quando há de acabar.
+ Contudo não há por que pensar que eles ignoram que coisa preciosa é o tempo:
+ costumam dizer aos que amam muitíssimo que estão dispostos a lhes dar parte de
+ seus dias. E realmente dão, sem se aperceberem disto, mas dão de forma a
+ subtraírem vários anos a si, sem aumentar os daqueles. Mas ignoram o fato mesmo
+ de estarem perdendo seus anos, por isso lhes é tolerável a perda de um bem que
+ não é (5) notado. Ninguém devolverá teus anos, ninguém te fará voltar a ti
+ mesmo. Uma vez principiada, a vida segue seu curso e não reverterá nem o
+ interromperá, não se elevará, não te avisará de sua velocidade. Transcorrerá
+ silenciosamente, não se prolongará por ordem de um rei, nem pelo apoio do povo.
+ Correrá tal como foi impulsionada no primeiro dia, nunca desviará seu curso,
+ nem o retardará. Que sucederá? Tu estás ocupado, e a vida se apressa; por sua
+ vez virá a morte, à qual deverás te entregar, queiras ou não.
+
+ 9 – 1: Pode haver algo mais estúpido que o modo de ver de alguns – falo
+ daqueles que deixam de lado a prudência. Ocupam-se para poder viver melhor:
+ armazenam a vida, gastando-a! Fazem seus planos a longo prazo; no entanto
+ protelar é do maior prejuízo para a vida: arrebata-nos cada dia que se oferece
+ a nós, rouba-nos o presente ao prometer o futuro. O maior impedimento para
+ viver é a expectativa, a qual tende para o amanhã e faz perder o momento
+ presente. Do que está nas mãos da Fortuna, dispões; o que está nas tuas,
+ despedes. Para onde ficas a olhar? Para que tendes? Tudo que está por vir se
+ assenta na incerteza: desde (2) já, vive!
+
+ [...]
+
+ O tempo presente é brevíssimo, tanto que a alguns parece não existir, pois está
+ sempre em movimento; flui e precipita-se; deixa de ser antes de vir a ser; é
+ tão incapaz de deter-se, quanto o mundo ou as estrelas, cujo infatigável
+ movimento não lhes permite permanecer no mesmo lugar. Pertence, pois, aos
+ ocupados, apenas o tempo presente, que é tão breve que não pode ser abarcado; e
+ este mesmo escapa-lhes, ocupados que estão em muitas coisas.
+
+ [...]
+
+ Dentre todos os homens, somente são ociosos os que estão disponíveis para a
+ sabedoria; eles são os únicos a viver, pois, não apenas administram bem sua
+ vida, mas acrescentam-lhe toda a eternidade. Todos os anos que se passaram
+ antes deles são somados aos seus.
+
+ [...]
+
+ Nenhum destes [filósofos] forçará tua morte, todos te ensinarão a morrer,
+ nenhum dissipará teus anos, mas te oferecerá os seus. Nunca a conversação com
+ eles será perigosa, fatal a amizade ou onerosa a deferência. Conseguirás deles
+ tudo o que quiseres: não será deles a culpa (2) se não tiveres exaurido tudo o
+ que desejas. Que felicidade, que bela velhice não aguarda o que se dispôs a ser
+ seu cliente! Ele terá com quem discutir sobre as menores, bem como sobre as
+ maiores, questões, a quem consultar diariamente sobre si mesmo, de quem ouvir a
+ verdade sem ofensa e ser louvado sem adulação, a cuja (3) semelhança se possa
+ moldar. Costumamos dizer que não está em nosso poder escolher os pais que a
+ sorte nos destinou, mas que nos foram dados ao acaso; contudo é nos permitido
+ ter um nascimento segundo a nossa escolha. Existem famílias dos mais nobres
+ espíritos: escolhe a qual delas queres pertencer, e receberás não apenas seu
+ nome, mas também seus próprios bens, que não terás de vigiar miserável e
+ mesquinhamente, pois, quanto mais forem partilhados pelos homens, maiores (4)
+ se tornarão. Estes te darão o acesso à eternidade, te elevarão àquelas alturas
+ de onde ninguém se precipita. Esta é a única maneira de prolongara existência
+ mortal e, até mais, de convertê-la em imortalidade. As dignidades, os
+ monumentos, tudo o que a ambição impôs por decretos, ou construiu com o suor,
+ depressa há de cair em ruínas: não há nada que a longa passagem dos anos não
+ destrua ou desordene. Mas ela não pode tocar nos conhecimentos que a sabedoria
+ consagrou, nenhuma idade os destruirá ou diminuirá, a seguinte e as sucessivas
+ sempre hão de aumentá-los ainda mais: pois a inveja tem olhos apenas para o que
+ está próximo de si, e admiramos com menos malícia o que está (5) distante.
+ Portanto a vida do filósofo estende-se por muito tempo, e ele não está
+ confinado nos mesmos limites que os outros. É o único a não depender das leis
+ do gênero humano: todos os séculos servem-no como a um deus.
+
+ [...]
+
+ É extremamente breve e agitada a vida dos que esquecem o passado, negligenciam
+ o presente e receiam o futuro; quando chegam ao termo de suas existências, os
+ pobres coitados compreendem tardiamente que (2) estiveram por longo tempo
+ ocupados em nada fazer. [...]
+ Não há ainda razão para se pensar que isto também seja uma prova de uma vida
+ longa: – o fato de muitas vezes os dias lhes parecerem longos, ou porque se
+ queixam de as horas custarem a passar até que chegue o momento do jantar; pois,
+ se porventura as ocupações os abandonam, sentem-se desertados e inquietam-se
+ mesmo no lazer, nem sabem como dispor dele ou matá-lo. Portanto anseiam por uma
+ ocupação qualquer, e todo intervalo de tempo entre duas ocupações lhes é um
+ fardo. E – por Hércules – tal é o que acontece quando se fixa a data dos
+ combates de gladiadores, ou quando se aguarda o dia de um outro gênero qualquer
+ de espetáculo ou divertimento: (4) desejam saltar os dias intermediários!
+
+ [...]
+
+ Em meio a grandes labutas, conseguem o que desejam e ansiosos conservam o que
+ conseguiram; entretanto não têm consciência de que o tempo nunca mais há de
+ voltar. Novas ocupações seguem-se às antigas; a esperança suscita esperança; a
+ ambição, ambição.
+
+ [...]
+
+ Portanto, meu caro Paulino, aparta-te da multidão e, já bastante acossado pela
+ duração de tua existência, não te afastes de um porto mais tranqüilo. Pensa
+ quantas vagas já te acometeram, quantas tempestades, de uma parte, já
+ suportaste na vida particular, quantas, de outra, suscitaste contra ti na vida
+ pública. Teu valor já foi suficientemente testado, em fatigantes e atormentadas
+ provas, o teu valor: tenta ver o que pode realizar no ócio. A maior parte de
+ tua vida, e certamente a melhor, foi dada à República, toma (2) também para ti
+ um pouco de teu tempo. Não te convoco a um retiro indolente e inativo, nem
+ a afogar todo o teu vigoroso caráter no sono ou nos prazeres caros à multidão:
+ isso não é estar em sossego. Encontrarás tarefas maiores que todas as que
+ cumpriste devotadamente até aqui, as quais executarás no retiro e livre de (3)
+ preocupações.
+
+ [...]
+
+ Recolhe-te a estas coisas mais tranqüilas, mais seguras, melhores! Acaso tu
+ pensas serem o mesmo estas duas coisas: cuidar que o trigo seja transportado ao
+ celeiro, intacto e a salvo da fraude ou negligência dos carregadores, que não
+ se estrague pela fermentação, que esteja bem seco, que seu peso e medida
+ confiram, e elevar-se às coisas sagradas e sublimes para conhecer qual é a
+ substância de deus, seu prazer, sua condição, sua forma, que destino aguarda
+ tua alma, que lugar a Natureza nos destina após nos separarmos do corpo, qual a
+ razão por que ela mantém os corpos mais pesados no centro do universo, suspende
+ os altos às regiões altas, eleva o fogo à mais alta, impele as estrelas às suas
+ trajetórias e ainda outras coisas cheias de notáveis (2) maravilhas? Abandona o
+ solo e volta-te a esses estudos! Agora, enquanto o sangue ferve, deve-se ir,
+ com determinação, para o melhor.
+
+ [...]
+
+ Portanto, quando vires freqüentemente uma toga pretexta ou um nome célebre no
+ fórum, não o invejes: essas coisas são adquiridas ao custo da vida. Para ligar
+ seu nome a um único ano, consumirão todos os seus anos. A uns, a vida abandonou
+ logo nas primeiras etapas, antes que tivessem atingido as alturas ambicionadas;
+ a outros, após terem galgado o cume das honras através de mil desonestidades,
+ sobrevém o triste pensamento: “ter trabalhado tanto por uma inscrição num
+ túmulo!”