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| author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-04-20 20:07:53 -0300 | 
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Books: processo civilizador
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Para +    sermos exatos, a burguesia como um todo nele ainda não encontrava expressão. +    Ele começou sendo a efusão de uma espécie de vanguarda burguesa, o que +    descrevemos aqui como intelligentsia de classe média: numerosos indivíduos na +    mesma situação e de origens sociais semelhantes espalhados por todo o país, +    pessoas que se compreendiam porque estavam na mesma situação. Só raramente +    membros dessa vanguarda se reuniam em algum lugar como grupo durante um período +    maior ou menor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sós formando uma elite +    em relação ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristocracia +    cortesã. + +    Repetidamente, encontramos nessas obras a ligação entre tal posição social e os +    ideais nelas postulados: o amor à natureza e à liberdade, a exaltação +    solitária, a rendição às emoções do coração, sem o freio da “razão fria”. No +    Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimentos eram típicos de uma dada +    geração, isto é dito de maneira bem clara e inequívoca. + +    [...] + +    E em 15 de março de 1772: “Rilho os dentes… Após o jantar na casa do conde, +    andamos de um lado para outro no grande parque. Aproxima-se a hora social. +    Penso, sabe Deus sobre nada.” Ele permanece ali, os nobres chegam. As mulheres +    murmuram entre si, alguma coisa circula entre os homens. Finalmente, o conde, +    um tanto embaraçado, pede-lhe que se retire. A nobreza sente-se insultada ao +    ver um burguês entre seus membros. +     +    “‘Sabe’”, diz o conde, “‘acho que os convivas estão aborrecidos em vê-lo +    aqui.’… Afastei-me discretamente da ilustre companhia e me dirigi a M., a fim +    de observar o pôr do sol do alto da colina, enquanto lia no meu Homero o canto +    que celebra como Ulisses foi hospitaleiramente recebido pelos excelentes +    guardadores de porcos.” + +    Por um lado, superficialidade, cerimônia, conversas +    formais; por outro, vida interior, profundidade de sentimento, absorção em +    livros, desenvolvimento da personalidade individual. Temos o mesmo contraste +    referido por Kant, na antítese entre Kultur e civilização, aplicado aqui a uma +    situação social muito específica. + +    No Werther, Goethe mostra também com particular clareza as duas frentes entre +    as quais vive a burguesia. “O que mais me irrita”, lemos na anotação de 24 de +    dezembro de 1771, “é nossa odiosa situação burguesa. Para ser franco, sei tão +    bem como qualquer outra pessoa como são necessárias as diferenças de classe, +    quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Apenas não deviam se levantar diretamente +    como obstáculos no meu caminho.” Coisa alguma caracteriza melhor a consciência +    de classe média do que essa declaração. As portas debaixo devem permanecer +    fechadas. As que ficam acima têm que estar abertas. E como todas as classes +    médias, esta estava aprisionada de uma maneira que lhe era peculiar: não podia +    pensar em derrubar as paredes que bloqueavam a ascensão por medo de que as que +    a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque. + +    Todo o movimento foi de ascensão para a nobreza: o bisavô de Goethe fora +    ferreiro,13 seu avô alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma clientela +    cortesã, e maneiras cortesãs-burguesas. Já abastado, seu pai tornou-se +    conselheiro imperial, burguês rico, de meios independentes, possuidor de +    título. Sua mãe era filha de uma família patrícia de Frankfurt. + +    O pai de Schiller era cirurgião e, mais tarde, major, mal remunerado; mas seu +    avô, seu bisavô e seu tataravô haviam sido padeiros. De origens sociais +    semelhantes, ora mais próximas ora mais remotas, dos ofícios e da administração +    de nível médio vieram Schubart, Bürger, Winkelmann, Herder, Kant, Friedrich +    August Wolff, Fichte, e muitos outros membros do movimento. + +    [...] + +    De modo geral, permaneceram muito altas, segundo os padrões ocidentais, as +    paredes entre a intelligentsia de classe média e a classe superior +    aristocrática na Alemanha. + +    [...] + +    A burguesia comercial, que poderia ter servido como público para os escritores, +    é relativamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemães no século XVIII. +    A ascensão para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse período. +    Até certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemães como que +    flutuam no ar. Mente e livros são seu refúgio e domínio, e as realizações na +    erudição e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente existe para esta classe +    oportunidade de ação política, de metas políticas. Para ela, o comércio e a +    ordem econômica, em conformidade com a estrutura da vida que levam e da +    sociedade onde se integram, são interesses marginais. +    O comércio, as comunicações e as indústrias são relativamente subdesenvolvidos +    e ainda necessitam, na maior parte, de proteção e promoção mediante uma +    política mercantilista, e não de libertação de suas restrições. O que legitima +    a seus próprios olhos a intelligentsia de classe média do século XVIII, o que +    fornece os alicerces à sua autoimagem e orgulho, situa-se além da economia e da +    política. Reside no que, exatamente por esta razão, é chamado de das rein +    Geistige (o puramente espiritual) em livros, trabalho de erudição, religião, +    arte, filosofia, no enriquecimento interno, na formação intelectual (Bildung) +    do indivíduo, principalmente através de livros, na personalidade. + +    [...] + +    Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe intelectual +    alemã e sua contrapartida francesa é também encontrada nas conversas de Goethe +    com Eckermann: Ampère chega a Weimar. (Goethe não o conhecia pessoalmente, mas +    com frequência o elogiara para Eckermann) Para espanto de todo mundo, +    descobre-se que o festejado Monsieur Ampère é “um alegre jovem na casa dos 20 +    anos”. Eckermann manifesta surpresa e Goethe responde (quinta-feira, 23 de maio +    de 1827): + +        Não tem sido fácil para você em sua terra nativa, e nós no centro da +        Alemanha tivemos que pagar muito caro pela pouca sabedoria que possuímos. Isto +        porque, no fundo, levamos uma vida isolada, paupérrima! Pouquíssima cultura nos +        chega do próprio povo e todos os nossos homens de talento estão dispersos pelo +        país. Um está em Viena, outro em Berlim, um terceiro em Königsberg, o quarto em +        Bonn ou Düsseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 milhas, de modo que +        é uma raridade o contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias. Sinto o que +        isto significa quando homens como Alexander von Humboldt passam por aqui e +        fazem com que meus estudos progridam mais num único dia do que se eu tivesse +        viajado um ano inteiro em meu caminho solitário. + +        Mas agora imagine uma cidade como Paris, onde as mentes mais notáveis de todo o +        reino estão reunidas num único lugar, e em seu intercâmbio, competição e +        rivalidade diárias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde o melhor +        de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superfície da terra pode +        ser visto em todas as ocasiões. Imagine essa metrópole onde cada ponta que se +        transpõe e cada praça que se cruza evocam um grande passado. E em tudo isto não +        pense na Paris de uma época monótona e embotada, mas na Paris do século XIX, +        onde durante três gerações, graças a homens como Molière, Voltaire e Diderot, +        essa riqueza de ideias foi posta em circulação como em nenhuma outra parte de +        todo o globo, e compreenderá que uma boa mente como a de Ampère, tendo se +        desenvolvido em meio a tal abundância, pode muito bem chegar a ser alguma coisa +        no seu 24o ano de vida. + +    [...] + +    Na França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além +    disso, há séculos é uma arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais +    importante é o livro, e é uma língua escrita unificada, e não uma falada, que +    essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um +    ambiente de rica e estimulante intelectualidade; mas o jovem membro da classe +    média alemã tem que subir a muito custo em relativa solidão e isolamento. + +### Civilização como máquina automática em constante reforma + +    No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que a superabundância +    de dinheiro reduz a população, de modo que aumenta o consumo por indivíduo. +    Acha que esse excesso de dinheiro, caso se torne grande demais, “expulsa a +    indústria e as artes, lançando, desta maneira, os Estados na pobreza e no +    despovoamento”. E continua: “À vista disto, notamos como o ciclo de barbárie a +    decadência, passando pela civilização e a riqueza, poderia ser invertido por um +    ministro alerta e hábil, e nova corda seria dada à máquina antes que ela +    parasse.”28 Esta frase realmente sumaria tudo o que se tornaria característico, +    em termos muito gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a +    concepção de economia, população e, finalmente, costumes como um todo +    inter-relacionado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendência política +    reformista que dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de +    capacitá-los, pela compreensão dessas leis, a orientar os processos sociais de +    uma maneira mais esclarecida e racional do que até então. +     +    [...] + +    A crítica de Mirabeau, nobre proprietário de terras, à riqueza, ao luxo, e a +    todos os costumes vigentes dá uma coloração especial a suas ideias. A +    verdadeira civilização, pensa, situa-se em um ciclo entre a barbárie e a falsa +    civilização, “decadente”, gerada pela superabundância de dinheiro. A missão do +    governo esclarecido é dirigir este automatismo, de modo que a sociedade possa +    florescer em um curso médio entre a barbárie e a decadência. Aqui, toda a faixa +    de problemas latentes em “civilização” já é discernível no momento da formação +    do conceito. Já nessa fase ela está ligada à ideia de decadência ou “declínio”, +    que reemerge repetidamente, em forma visível ou velada segundo o ritmo das +    crises cíclicas. Mas podemos também ver claramente que este desejo de reforma +    permanece sem exceção dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado +    de cima, e que não opõe, ao que critica nos costumes do tempo, uma imagem ou +    conceito absolutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existente, +    desejando melhorá-la: através de medidas hábeis e esclarecidas tomadas pelo +    governo, a “falsa civilização” mais uma vez se tornará boa e autêntica. + +    [...] + +    Nesses mesmos anos, a palavra civilisation surge pela primeira vez como um +    conceito amplamente usado e mais ou menos preciso. Na primeira edição da +    Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des +    Européens dans les deux Indes (1770), do padre Raynal, a palavra não ocorre nem +    uma única vez; na segunda (1774), ela é “usada frequentemente e sem a menor +    variação de significado como termo indispensável e geralmente entendido”.30 + +    No Système de la nature, de Holbach, publicado em 1770, não aparece a palavra +    civilisation. Mas no seu Système sociale, editado em 1774, ela é usada com +    frequência. Diz ele, por exemplo: “Nada há que oponha mais obstáculos no +    caminho da felicidade pública, do progresso da razão humana, de toda a +    civilização dos homens do que as guerras contínuas para as quais príncipes +    estouvados são atraídos a cada momento.”31 Ou, em outro trecho: “A razão humana +    não é ainda suficientemente exercitada; a civilização dos povos não se +    completou ainda; obstáculos inumeráveis se opuseram até agora ao progresso do +    conhecimento útil, cujo avanço só poderá contribuir para o aperfeiçoamento de +    nosso governo, nossas leis, nossa educação, nossas instituições e nossa +    moral.”32 + +    O conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, socialmente +    crítico, é sempre o mesmo: que o aprimoramento das instituições, da educação e +    da lei será realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto não significa +    “erudição” no sentido alemão do século XVIII, porquanto os que aqui se +    expressam não são professores universitários, mas escritores, funcionários, +    intelectuais, cidadãos refinados dos mais diversos tipos, unidos através do +    medium da “boa sociedade”, os salons. O progresso será obtido, por conseguinte, +    em primeiro lugar pela ilustração dos reis e governantes em conformidade com a +    “razão” ou a “natureza”, o que vem a ser a mesma coisa, e em seguida pela +    nomeação, para os principais cargos, de homens esclarecidos (isto é, +    reformistas). Certo aspecto desse processo progressista total passou a ser +    designado por um conceito fixo: civilisation. O que era visível na versão +    individual que Mirabeau tinha do conceito, o que não fora ainda polido pela +    sociedade, e que era característico de todos os movimentos de reforma, era +    encontrado também aqui: uma meia afirmação e uma meia negação da ordem vigente. +    A sociedade, deste ponto de vista, atingira uma fase particular na rota para a +    civilização. Mas era insuficiente. Não podia ficar parada nesse ponto. O +    processo continuava e devia ser levado adiante: “a civilização dos povos ainda +    não se completou.” Duas ideias se fundem no conceito de civilização. Por um +    lado, ela constitui um contraconceito geral a outro estágio da sociedade, a +    barbárie. Este sentimento há muito permeava a sociedade de corte. Encontrara +    sua expressão aristocrática de corte em termos como politesse e civilité. + +    Mas os povos não estão ainda suficientemente civilizados, dizem os homens do +    movimento de reforma de corte/classe média. A civilização não é apenas um +    estado, mas um processo que deve prosseguir. Este é o novo elemento manifesto +    no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre fez a corte acreditar +    ser — em comparação com os que vivem de maneira mais simples, mais incivilizada +    ou mais bárbara — um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de +    moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo, e numerosos +    complexos semelhantes. Nas mãos da classe média em ascensão, na boca dos +    membros do movimento reformista, é ampliada a ideia sobre o que é necessário +    para tornar civilizada uma sociedade. O processo de civilização do Estado, a +    Constituição, a educação e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da +    população, a eliminação de tudo o que era ainda bárbaro ou irracional nas +    condições vigentes, fossem as penalidades legais, as restrições de classe à +    burguesia ou as barreiras que impediam o desenvolvimento do comércio — este +    processo civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e à pacificação +    interna do país pelos reis.  | 
