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authorSilvio Rhatto <rhatto@riseup.net>2018-06-14 13:16:34 -0300
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Updates books/sociedade/processo-civilizador
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--- a/books/sociedade/processo-civilizador.md
+++ b/books/sociedade/processo-civilizador.md
@@ -937,7 +937,7 @@ Difusão e cristalização:
Interessante como Elias mostra que normas presentes numa edição de um manual de
boas maneiras -- como por exemplo de La Salle, vide _Algumas Observações sobre
os Exemplos e sobre Estas Mudanças em Geral,_ foram omitidas ou simplificadas
-numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas
+numa edição posterior, provavelmente por já estarem internalizadas e naturalizadas
geracionalmente -- de adultos para crianças -- nos indivíduos e difundidas na
sociedade, tornando até indelicada a mera menção de comportamentos
desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
@@ -1022,3 +1022,146 @@ desagradáveis mencionadas na edição anterior ou mesmo em manuais de outras
Há pessoas diante das quais nos sentimos envergonhados e outras com quem isso
não acontece. O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social
modelada segundo a estrutura social.
+
+### Polidez: condicionamento, isolamento e segredo; distância entre adultos e crianças
+
+ Nessa sociedade hierarquicamente estruturada, todos os atos praticados na
+ presença de numerosas pessoas adquiriam valor de prestígio. Por este motivo, o
+ controle das emoções, aquilo que chamamos “polidez”, revestia uma forma
+ diferente da que adotou mais tarde, época em que diferenças externas em
+ categoria haviam sido parcialmente niveladas. O que se menciona aqui é um caso
+ especial de intercâmbio entre iguais (que uma pessoa não deve servir outra), e
+ que mais tarde se torna a prática geral. Em sociedade, todos se servem
+ pessoalmente e todos começam a comer no mesmo momento.
+
+ A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se
+ uma infração repugnante mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de
+ categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo
+ a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se
+ tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em
+ qualquer caso. A referência social à vergonha e ao embaraço desaparece cada vez
+ mais da consciência. Exatamente porque a injunção social de não se mostrar ou
+ desincumbir-se de funções naturais opera nesse momento no tocante a todos e é
+ gravada nesta forma na criança, ela parece ao adulto uma injunção de seu
+ próprio ser interno e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total e
+ automático.
+
+ 5. Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente
+ regulação ou moldagens das necessidades instintivas, porém, só se tornaram
+ possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um
+ aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema
+ de eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais
+ discretos. A situação não foi diferente no tocante às maneiras à mesa. O
+ processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar
+ de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e,
+ decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas
+ científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases
+ sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas
+
+ Uma vez posta em movimento a reformulação das necessidades humanas, devido à
+ transformação generalizada das relações entre os homens, o desenvolvimento de
+ aparelhagem técnica correspondente ao padrão mudado consolidou os novos hábitos
+ em um grau extraordinário. Este aparelho contribuiu para a reprodução constante
+ do padrão e para sua disseminação.
+
+ Não deixa de ser interessante observar que hoje [década de 1930], época em que
+ este padrão de conduta se consolidou tanto que é aceito como inteiramente
+ natural, certa relaxação está começando, sobretudo em comparação com o século
+ XIX, pelo menos no que diz respeito a referências verbais a funções corporais.
+ [...] Mas isto, tal como os costumes modernos de banho e dança, é possível
+ apenas porque o nível habitual de autocontrole, técnica e institucionalmente
+ consolidado, a capacidade do indivíduo de restringir suas necessidades e
+ comportamento de acordo com os sentimentos mais atuais sobre o que é
+ desgostoso, foram atingidos. O que se observa é uma relaxação dentro do
+ contexto de um padrão já firmemente radicado.
+
+ 6. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por
+ uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das
+ crianças. Estas têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de
+ vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva
+ delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem
+ específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão
+ dos séculos. Nisto, os pais são apenas os instrumentos, amiúde inadequados, os
+ agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros
+ instrumentos, é sempre a sociedade como um todo, o conjunto de seres humanos,
+ que exerce pressão sobre a nova geração, levando-a mais perfeitamente, ou
+ menos, para seus fins.
+
+ [...]
+
+ O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior
+ do que o imposto às crianças. Era pequena, medida pelos padrões de hoje, a
+ distância que separava adultos de crianças.
+
+ [...]
+
+ De modo geral, sob as pressões do condicionamento, impulsos desse tipo
+ desapareceram da consciência do adulto no estado de vigília. Só a psicanálise é
+ que os descobre sob a forma de desejos insatisfeitos ou irrealizáveis, que são
+ descritos como o nível inconsciente ou onírico da mente. E estes desejos têm,
+ de fato, em nossa sociedade, o caráter de um resíduo “infantil” porque o padrão
+ social dos adultos torna necessária a completa supressão e transformação dessas
+ tendências, de modo que elas parecem, quando ocorrem em adultos, um “resto” da
+ infância.
+
+ [...]
+
+ A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer
+ positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais
+ exatamente, está tornando esse prazer “privado” e “secreto” (isto é,
+ reprimindo-o no indivíduo), enquanto fomenta emoções negativamente carregadas —
+ desagrado, repugnância, nojo — como os únicos sentimentos aceitáveis em
+ sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos
+ impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do
+ indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da
+ personalidade e o comportamento de adultos e crianças.
+
+ [...]
+
+ Está avançando a “conspiração do silêncio”. Ela se baseia na pressuposição —
+ que evidentemente não podia ser feita à época da edição anterior — de que todos
+ os detalhes são conhecidos dos adultos e podem ser controlados no seio da
+ família.
+
+### Interesse instintivo remanescente
+
+ O uso do lenço tornou-se generalizado, pelo menos entre as pessoas que alegam
+ saber “como se comportar”. Mas o uso das mãos não desapareceu inteiramente.
+ [...] Quase parece que inclinações que ficaram sujeitas a certo controle e
+ comedimento com a adoção do lenço estariam, dessa maneira, procurando uma nova
+ maneira de se manifestar. De qualquer modo, uma tendência instintiva que
+ aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou
+ mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas
+ secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo
+ histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é “normalmente”
+ visível apenas em crianças.
+
+### Culpa e neuroses
+
+ Como em outros hábitos infantis, o aviso médico aparece agora em conjunto ou em
+ lugar do social como instrumento de condicionamento, com referência ao mal que
+ pode decorrer de fazer “tal coisa” com frequência excessiva. Vemos aí um
+ exemplo de mudança na maneira de condicionar alguém, que já havia sido
+ considerada de outros pontos de vista. Até essa ocasião, os hábitos eram quase
+ sempre julgados claramente em sua relação com outras pessoas e se eram
+ proibidos, pelo menos na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos
+ ou embaraçosos para terceiros ou porque revelasse “falta de respeito”. Mas
+ agora, os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que
+ possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações
+ socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao
+ embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está
+ sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral”
+ preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”:
+ condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por
+ esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável,
+ uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do
+ indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria
+ saúde ou dignidade humana. Só com o aparecimento dessa maneira de consolidar
+ hábitos ou, em outras palavras, de condicionamento, que ganha predominância com
+ a ascensão da classe média, é que o conflito entre impulsos e tendências
+ socialmente inadmissíveis, por um lado, e o padrão de exigências sociais feitas
+ ao indivíduo, por outro, assume a forma rigorosamente definida e fundamental às
+ teorias psicológicas dos tempos modernos — acima de tudo, à psicanálise. É bem
+ possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje
+ por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de
+ uma elucidação psicogenética e sociogenética.