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author | Silvio Rhatto <rhatto@riseup.net> | 2018-06-14 13:16:34 -0300 |
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O sentimento de vergonha é evidentemente uma função social modelada segundo a estrutura social. + +### Polidez: condicionamento, isolamento e segredo; distância entre adultos e crianças + + Nessa sociedade hierarquicamente estruturada, todos os atos praticados na + presença de numerosas pessoas adquiriam valor de prestígio. Por este motivo, o + controle das emoções, aquilo que chamamos “polidez”, revestia uma forma + diferente da que adotou mais tarde, época em que diferenças externas em + categoria haviam sido parcialmente niveladas. O que se menciona aqui é um caso + especial de intercâmbio entre iguais (que uma pessoa não deve servir outra), e + que mais tarde se torna a prática geral. Em sociedade, todos se servem + pessoalmente e todos começam a comer no mesmo momento. + + A situação é análoga no tocante à exposição do corpo. Inicialmente, torna-se + uma infração repugnante mostrar-se de qualquer maneira diante de pessoas de + categoria mais alta ou igual. Mas, no caso de inferiores, a seminudez ou mesmo + a nudez pode até ser sinal de benevolência. Porém, depois, quando todos se + tornam socialmente mais iguais, a prática lentamente se torna malvista em + qualquer caso. A referência social à vergonha e ao embaraço desaparece cada vez + mais da consciência. Exatamente porque a injunção social de não se mostrar ou + desincumbir-se de funções naturais opera nesse momento no tocante a todos e é + gravada nesta forma na criança, ela parece ao adulto uma injunção de seu + próprio ser interno e assume a forma de um autocontrole mais ou menos total e + automático. + + 5. Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente + regulação ou moldagens das necessidades instintivas, porém, só se tornaram + possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um + aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema + de eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais mais + discretos. A situação não foi diferente no tocante às maneiras à mesa. O + processo de mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar + de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e, + decerto, não pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas + científicas. Muito ao contrário, não seria difícil demonstrar as bases + sociogenéticas e psicogenéticas dessas invenções e descobertas + + Uma vez posta em movimento a reformulação das necessidades humanas, devido à + transformação generalizada das relações entre os homens, o desenvolvimento de + aparelhagem técnica correspondente ao padrão mudado consolidou os novos hábitos + em um grau extraordinário. Este aparelho contribuiu para a reprodução constante + do padrão e para sua disseminação. + + Não deixa de ser interessante observar que hoje [década de 1930], época em que + este padrão de conduta se consolidou tanto que é aceito como inteiramente + natural, certa relaxação está começando, sobretudo em comparação com o século + XIX, pelo menos no que diz respeito a referências verbais a funções corporais. + [...] Mas isto, tal como os costumes modernos de banho e dança, é possível + apenas porque o nível habitual de autocontrole, técnica e institucionalmente + consolidado, a capacidade do indivíduo de restringir suas necessidades e + comportamento de acordo com os sentimentos mais atuais sobre o que é + desgostoso, foram atingidos. O que se observa é uma relaxação dentro do + contexto de um padrão já firmemente radicado. + + 6. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por + uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das + crianças. Estas têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de + vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva + delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem + específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão + dos séculos. Nisto, os pais são apenas os instrumentos, amiúde inadequados, os + agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros + instrumentos, é sempre a sociedade como um todo, o conjunto de seres humanos, + que exerce pressão sobre a nova geração, levando-a mais perfeitamente, ou + menos, para seus fins. + + [...] + + O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior + do que o imposto às crianças. Era pequena, medida pelos padrões de hoje, a + distância que separava adultos de crianças. + + [...] + + De modo geral, sob as pressões do condicionamento, impulsos desse tipo + desapareceram da consciência do adulto no estado de vigília. Só a psicanálise é + que os descobre sob a forma de desejos insatisfeitos ou irrealizáveis, que são + descritos como o nível inconsciente ou onírico da mente. E estes desejos têm, + de fato, em nossa sociedade, o caráter de um resíduo “infantil” porque o padrão + social dos adultos torna necessária a completa supressão e transformação dessas + tendências, de modo que elas parecem, quando ocorrem em adultos, um “resto” da + infância. + + [...] + + A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer + positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais + exatamente, está tornando esse prazer “privado” e “secreto” (isto é, + reprimindo-o no indivíduo), enquanto fomenta emoções negativamente carregadas — + desagrado, repugnância, nojo — como os únicos sentimentos aceitáveis em + sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos + impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do + indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da + personalidade e o comportamento de adultos e crianças. + + [...] + + Está avançando a “conspiração do silêncio”. Ela se baseia na pressuposição — + que evidentemente não podia ser feita à época da edição anterior — de que todos + os detalhes são conhecidos dos adultos e podem ser controlados no seio da + família. + +### Interesse instintivo remanescente + + O uso do lenço tornou-se generalizado, pelo menos entre as pessoas que alegam + saber “como se comportar”. Mas o uso das mãos não desapareceu inteiramente. + [...] Quase parece que inclinações que ficaram sujeitas a certo controle e + comedimento com a adoção do lenço estariam, dessa maneira, procurando uma nova + maneira de se manifestar. De qualquer modo, uma tendência instintiva que + aparece hoje, no máximo, no inconsciente, nos sonhos, na esfera privada, ou + mais conscientemente apenas em locais fechados, ou seja, o interesse pelas + secreções corporais, mostra-se aqui em um estágio mais antigo do processo + histórico, com mais clareza e franqueza, numa forma que hoje é “normalmente” + visível apenas em crianças. + +### Culpa e neuroses + + Como em outros hábitos infantis, o aviso médico aparece agora em conjunto ou em + lugar do social como instrumento de condicionamento, com referência ao mal que + pode decorrer de fazer “tal coisa” com frequência excessiva. Vemos aí um + exemplo de mudança na maneira de condicionar alguém, que já havia sido + considerada de outros pontos de vista. Até essa ocasião, os hábitos eram quase + sempre julgados claramente em sua relação com outras pessoas e se eram + proibidos, pelo menos na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos + ou embaraçosos para terceiros ou porque revelasse “falta de respeito”. Mas + agora, os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que + possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações + socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao + embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está + sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral” + preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”: + condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por + esses meios objetiva a tornar automático o comportamento socialmente desejável, + uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do + indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria + saúde ou dignidade humana. Só com o aparecimento dessa maneira de consolidar + hábitos ou, em outras palavras, de condicionamento, que ganha predominância com + a ascensão da classe média, é que o conflito entre impulsos e tendências + socialmente inadmissíveis, por um lado, e o padrão de exigências sociais feitas + ao indivíduo, por outro, assume a forma rigorosamente definida e fundamental às + teorias psicológicas dos tempos modernos — acima de tudo, à psicanálise. É bem + possível que sempre tenha havido “neuroses”. Mas as “neuroses” que vemos hoje + por toda parte são uma forma histórica específica de conflito que precisa de + uma elucidação psicogenética e sociogenética. |